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quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

"Já vi montanhas de cadáveres demais em nome desta civilização [judaico-cristã] esclarecida"

O verdadeiro alvo


*Vladimir Safatle


Afinal de contas, quem exatamente o governo de Israel quer atacar?


“Gostaria de terminar este artigo dizendo que, se o verdadeiro alvo desta invasão é o bloco pacifista e esquerdista judaico que um dia teve peso real na constituição da agenda política da região e que poderia começar a desatar o nó entre política e teologia que parece querer colonizar os dois lados, então cabe a todos realmente interessados na paz lutar por construir uma alternativa política real com forte poder de transformação social. Diria que esta alternativa já havia sido sintetizada de maneira decisiva por um intelectual cuja grandeza faz falta em um momento com este: Edward Said. Sua luta incansável por um Estado bi-nacional entre judeus e palestinos deve nos servir de guia.”


Não há hoje assunto, ao mesmo tempo, mais urgente e mais bloqueado do que o conflito palestino. Mais urgente porque ele há muito deixou de ser um problema regional. Seus desdobramentos influenciam de maneira decisiva a relação entre os árabes e o que convencionamos chamar de ocidente. Esta é uma peça maior não apenas da pauta da política externa mundial. Levando em conta que os árabes e turcos compõem atualmente o conjunto mais expressivo de trabalhadores pobres em países europeus, além de parcela significativa da classe média de países sul-americanos, não é difícil compreender como a "questão árabe" tornou-se ou pode tornar-se, em muitos países, um assunto de política interna.


No entanto, a urgência do assunto só não é maior que seu bloqueio. De fato, encontramos todos os dias textos e mais textos sobre o problema. Mas a grande maioria está bloqueada pela profusão infindável de preconceitos toscos, assim como amálgamas intelectualmente desonestos e apressados produzidos por ambos os lados. Isto quando não se entra no mais raso psicologismo. Assim, os palestinos são muitas vezes apresentados como crianças que não sabem escolher (já que votaram no Hamas nas eleições legislativas de 2006 "contra seus próprios interesses"). Os israelenses por sua vez seriam arrogantes e egoístas.


Não se vai muito longe com análises deste calibre. Muito menos com análises que não cansam de repetir o mantra do "terrorismo islâmico" ou do "Estado assassino". Na verdade, não precisamos de julgamentos sumários nem pregações morais, mas de análises que demonstrem onde falham certos discursos oficiais hegemônicos que tentam definir a interpretação do conflito, onde a argumentação precisa parar a fim de que procedimentos de estigmatização possam começar. Talvez isto nos ajude a compreender como, em pouco mais de dez anos, conseguimos passar de uma situação de paz à vista a uma sucessão de ações militares cada vez mais chocantes.


O argumento do direito de auto-defesa é consistente?


Nos últimos dias, o governo de Israel tem patrocinado uma larga operação militar para, segundo Shimon Perez, "dar uma lição no Hamas". Até agora, o resultado são mais de 700[1] mortos, sendo 257 crianças. Contra críticas internacionais, o governo de Israel afirma ter o direito de agir em defesa de sua integridade territorial e da segurança de seus cidadãos. Tal segurança teria sido colocada em cheque devido a ataques com foguetes arcaicos operados pelo Hamas após uma longa trégua. Que tais ataques não tenham produzido vítimas, isto não significa que o governo de Israel não deveria lutar para evitar vítimas futuras. E, neste caso, lutar consistiria em "quebrar definitivamente a capacidade de ataque do Hamas", como disse o próprio governo.


O raciocínio todo é correto desde que aceitemos que o direito de defesa se aplica à relação entre Israel e Palestina. No entanto, este direito não pode ser aplicado quando se trata de ações referentes à gestão de um território ocupado ilegalmente. Ou seja, não posso alegar direito de defesa quando reajo a ataques vindos de um território que invadi ilegalmente.


Infelizmente, esta é claramente a situação em que Israel se encontra em relação à Palestina (composta, de maneira indissociável, da faixa de Gaza e da Cisjordânia).


O direito internacional, representado pela ONU (diga-se de passagem, a mesma instituição que criou o Estado de Israel, o que lhe dá toda a legitimidade para enunciar uma lei sobre a situação), reconhece à Palestina o estatuto jurídico de "território ocupado", ocupação considerada totalmente ilegal pelas resoluções 242 e 338 há mais de quarenta anos. A decisão é tão claramente aceita por instâncias internacionais que, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal brasileiro deverá indeferir o pedido israelense de deportação de um fanático que cometeu crimes na Cisjordânia e que veio a esconder-se em nosso território, já que a jurisdição de Israel sobre os territórios ocupados não é reconhecida. Ou seja, uma situação ilegal anula a possibilidade de fazer apelo a um direito internacionalmente reconhecido.


Mas é claro que virá a pergunta: não teriam os israelenses a obrigação de assegurar seus cidadãos contra ações de um grupo vergonhosamente anti-semita que assassina civis e prega claramente a destruição do Estado de Israel ao invés de pregar apenas a defesa dos palestinos contra a ocupação? Afinal, a luta dos povos árabes contra o Estado de Israel não é uma invenção paranóica. As guerras de 1967 e de 1973 são prova maior de que toda vigilância é necessária. Ainda mais com o crescimento do caráter beligerante do dito fundamentalismo islâmico, representado na região pelo Hamas. Não estaríamos aí diante de uma situação de exceção, onde os critérios tradicionais de direito e justiça devem ser suspensos?


Aqui, vale a pena fazer duas colocações. Primeiro, o estado contínuo de guerra contra Israel desde sua fundação, em 1948, nunca foi o resultado de algum pretenso ódio milenar irracional entre árabes e judeus provocado por fanatismos religiosos, como muitas vezes se procura vender, mas de um clássico conflito territorial derivado do mais catastrófico processo de descolonização do século XX. Povos que ainda nos anos 20 viam-se como irmãos semitas foram jogados em um conflito fraticida devido a uma descolonização, operada sobretudo pela Grã-Bretanha, que prometia reiteradamente a ambos o direito sobre as mesmas terras.

De qualquer forma, esta situação há muito perdeu força, principalmente depois da antiga OLP de Yasser Arafat reconhecer as fronteiras de 1967. O único país que ainda está em estado de beligerância com Israel é a Síria devido a invasão israelense das Colinas de Golã.


Um histórico processo de negociação iria começar agora, graças a mediação da Turquia, no qual Israel devolveria o território ocupado em troca da normalização das relações. Algo nos moldes do que ocorreu com o Egito e a Península do Sinai. Mas a invasão da faixa de Gaza jogou uma verdadeira pá de cal em tudo isto.


Por outro lado, se a questão gira em torno da implementação de políticas sólidas de segurança nacional, só podemos repetir uma pergunta de Daniel Baremboin, alguém cuja grandeza de espírito só é comparável à sua inteligência musical impar: "Esta é, afinal, a maneira mais eficaz de defender-se?". A resposta é simplesmente: não. Na verdade, não haveria maneira mais eficaz de defesa do que fazer aquilo que disse o Prêmio Nobel da Paz e ex-presidente norte-americano, Jimmy Carter: "negociar diretamente com o Hamas" e suspender o bloqueio a Gaza, que além de ser mais uma afronta ao direito internacional, alimenta o desespero e humilhação dos palestinos: solo fértil para o crescimento do apoio ao grupo islâmico.


Da mesma forma, não haveria atualmente as deploráveis bravatas anti-semitas de Ahmadinejad e o perigo real do Irã transformar-se em potência nuclear descontrolada se a política mundial não tivesse enveredado pelo caminho brutal da administração Bush.


Lembremos que o Irã estava em um claro movimento de abertura de seu regime e normalização de relações internacionais, primeiro com Rafsanjani e depois com o reformista Kathami. Este movimento foi quebrado em 2005 como uma das consequências do recrudescimento das tensões produzidas pela invasão no vizinho Afeganistão. O desejo iraniano de transformação em potência nuclear foi resultado de um cálculo simples: os EUA invadiram o Iraque mesmo sem mandato da ONU e não invadiram a Coréia do Norte (com suas ameaças à "ordem mundial") porque o primeiro não tinha armas nucleares e o segundo tinha. Logo, esta é a condição para a sobrevivência.


Gênese do fundamentalismo islâmico popular Mas voltemos à idéia de que a melhor política de segurança teria sido negociar diretamente com o Hamas. De fato, ele deu claros sinais, desde que venceu as eleições legislativas de 2006, que sentaria à mesa de negociações. O Hamas aceitou longas tréguas, como esta que terminou em 19 de dezembro. Alguns de seus líderes, como o chefe do conselho político Kahled Mechaal, chegaram mesmo a afirmar: "queremos um Estado nas fronteiras de 1967". Outro chegou a propor uma "trégua de cem anos". Ou seja, havia indícios de que poderia acontecer com o Hamas o que aconteceu com o IRA, na Irlanda do Norte: a transformação de um grupo armado em ator político.

De qualquer forma, é oportuno contextualizar um dos dispositivos maiores que fundamentam a recusa do governo de Israel em negociar com o Hamas: "Não é possível negociar com alguém que não reconhece seu direito de existência". Sim, é verdade. Por isto, é muito difícil avançar enquanto existir, em Israel, partidos importantes como o Likud (atualmente na frente nas pesquisas eleitorais) cuja carta programática simplesmente não reconhece o direito à existência de um estado palestino. Ou seja, os palestinos também não têm seu direito a um estado reconhecido por todos os principais atores políticos israelenses.


No entanto, durante o governo do likudista Netanyahu, Arafat negociou com um partido que, em sua carta, não reconhecia o direito a um estado palestino a oeste do Rio Jordão. Se Arafat fez, os políticos israelenses também podem fazer. Diga-se de passagem, mesmo aquilo que o atual partido governista Kadima propõe aos palestinos, além de ignorar frontalmente todas as resoluções da ONU a respeito dos territórios ocupados, dificilmente pode ser chamado de "estado" pois não leva em conta princípios fundamentais de autonomia e auto-determinação.

Mas podemos ainda dizer, juntamente com o atual governo de Israel: "Não negociamos com terroristas". Em uma ironia maior da história, ele repete as mesmas palavras usadas pela administração colonial britânica na Palestina, referindo-se a grupos judaicos de luta armada atuantes nos anos 40, como o Irgun e o grupo Stern. Isto sem falar que foi com o adjetivo de "terrorista" que Albert Einstein e Hannah Arendt trataram o futuro primeiro ministro de Israel, Menachen Begin (carta ao #ew York Times, 4 de dezembro de 1948), líder do futuro Likud do qual saiu o atual primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert. Mas se há algo que a história das lutas de ocupação (Argélia, Vietnã, Irlanda etc.) nos ensina é: chega uma hora em que você terá que negociar com os "terroristas". Por sinal, foi este o destino das relações entre o governo de Israel e os "terroristas" da OLP de Arafat[2].


Pode-se contra-argumentar, no entanto, que entre o Hamas e a antiga OLP há uma diferença maior. Arafat não queria criar um estado islâmico às portas de Israel. Seu grupo era laico. Sim, é verdade mas isto, por si só, não justifica que o conflito palestino seja visto como uma situação de exceção. Pois a pergunta que deve ser respondida é: como um grupo como o Hamas, com um programa minoritário no início dos anos 90, transformou-se hoje no partido mais popular da Palestina? Uma popularidade que irá aumentar significativamente após este conflito, tal como aconteceu com o Hizbollah. Cada palestino morto significa a consolidação de um sentimento de humilhação e descrença em relação à negociação política. E o que é expulso do campo simbólico da política retorna sob a forma de violência real. Por sinal, esta foi a equação que sempre alimentou o Hamas e que continuará a alimentá-lo. Pois não se destrói um grupo armado aumentando seu apoio popular. Quem duvida do aumento do apoio ao Hamas, convido que veja a versão inglesa do canal de TV mais assistido no mundo árabe (Al-Jazeera) e analise a maneira com que seus militantes são retratados. Tudo isto demonstra que o ataque a Gaza não era justificado nem do ponto de vista do direito de defesa, nem sequer do ponto de vista da eficácia de medidas de segurança.


Neste ponto, gostaria de esclarecer minha posição. Robert Kurz, em um artigo profundamente confuso (Folha de São Paulo, 11/01/2008), critica o que ele chama de "esquerda pós-moderna (?)" que estaria disposta a "identificar-se com a administração autoritária da crise mundial [do capitalismo] aceitando como inevitável a guerra islâmica contra os judeus, como se ela fosse um mero flanqueamento ideológico". Como se esta tal esquerda pós-moderna defendesse o Hamas por confundi-lo com uma força dos antigos "movimentos anti-imperialistas" e misturasse isto com tendências culturalistas e relativistas.


Juntar-se-ia a isto um velho neoestatismo [o fantasma clássico a assombrar a vida de Robert Kurz] que crê valer a pena pacificar as massas por meios autoritários de um estado forte, nem que seja um estado islâmico. Contra isto, diz Kurz, deveríamos insistir na necessidade de "aniquilamento" do Hamas e do Hizbollah.


Há tempos não se via uma análise tão fora de esquadro, pois esta esquerda pós moderna que apóia o Hamas e flerta com neoestatismo simplesmente não existe. Talvez Kurz pense em Foucault com seu fascínio inicial equivocado pela revolução iraniana e acredite que os críticos atuais da invasão a Gaza partilhem um erro simétrico. No entanto, se este for de fato o esquema na mente de Kurz, só podemos dizer que ele é delirante. Ninguém está procurando defender um grupo claramente racista e reacionário. Trata-se simplesmente de constatar que todas as tentativas de "aniquilá-lo" militarmente só aumentaram sua força pois tais ações militares criaram o quadro narrativo ideal para que o Hamas aparecesse, aos olhos dos palestinos, como representante legítimo da resistência à ocupação. Basta lembrar que, em 1994, na época dos acordos de Oslo, a popularidade do grupo não passava de 15%.


Hoje, ela é assustadoramente alta. Quer dizer, só há uma maneira de "aniquilar" o Hamas e esta maneira não passa pela vitória militar, seja lá o que isto possa significar[3]. Ninguém está aqui fazendo "vistas grossas" para os perigos do fundamentalismo islâmico, mas procurando a melhor maneira de desativar a bomba que ele representa.


Não esqueçamos que esta recrudescência do sentimento religioso no Oriente Médio é o resultado direto de um longo bloqueio, patrocinado pelo ocidente, de modificações políticas nos países árabes. Desde os anos 50, o ocidente vem sistematicamente minando todos os movimentos políticos árabes de auto-determinação e independência. O caso da conspiração contra o líder nacionalista iraniano Mossadegh é aqui paradigmático. Por outro lado, os regimes mais corruptos e totalitários da região são apoiados de maneira irrestrita pelo ocidente (Paquistão, Arábia Saudita, Jordânia, Tunísia, Egito - cujo "presidente" Hosni Mubarak está no poder há meros 37 anos). Ou seja, a experiência cotidiana de um árabe em relação aos valores modernizadores e democráticos ocidentais é que eles servem apenas para justificar o contrário do que pregam. Os árabes fizeram a prova do caráter formalista e "flexível" dos valores ocidentais. Neste ambiente de cinismo e bloqueio do campo político, o retorno à tradição religiosa com suas promessas de revitalização moral é sempre uma tendência. Foi isto o que aconteceu. Ou seja, não se trata aqui de traço arcaizante algum típico de civilizações refratárias ao nosso "choque civilizatório". Trata-se de um sintoma recente de bloqueio do potencial transformador do campo político. Por isto, os movimentos islâmicos não são apenas, com diz Kurz, "uma ideologia culturalista pós-moderna da crise de uma parte das elites há muito tempo ocidentalizadas nos países islâmicos". Eles são movimentos de forte apoio popular e este é o caráter verdadeiramente dramático da situação. Desmontar este apoio popular só é possível criando alternativas políticas reais e com forte potencial de transformação social. Só que todas as vezes que tais alternativas foram tentadas, elas logo foram abortadas pelo ocidente. O que nos permite acreditar que apenas a construção do campo político no mundo árabe irá, a médio termo, instaurar uma situação na qual o apelo à religião não terá mais ressonância social. Elas podem voltar a ser sociedades indiferentes à religião.


Por outro lado, basta ver a Arábia Saudita para perceber que a criação de um estado islâmico nunca foi realmente problema a tirar o sono do ocidente.


O sócio do Hamas


Mas voltemos à questão principal. Se os ataques não são justificáveis do ponto de vista do direito de defesa, nem são úteis como medidas de segurança, afinal para que eles servem?


Algumas pessoas mal-intencionadas dizem que se trata de estratégia eleitoral para vitaminar os combalidos candidatos da coalização no poder. Tanto a direitista Tizpi Livni quanto o trabalhista Ehud Barak, membros do consórcio governista, estavam predestinados a perder a eleições de fevereiro. O Partido trabalhista de Barak estava condenado a ter uma das participações mais humilhantes de sua história. Como em um passe de mágica, tudo isto mudou. Mas, não. Não é possível que alguém íntegro como o primeiro-ministro Ehud Olmert possa ter tramado isto. É verdade que nenhum governante na história de Israel foi alvo de tantos processos judiciais por corrupção, teve índices tão baixos de popularidade (3% de aprovação em 2007) e foi tão acusado de incompetência como Olmert. Mas isto é certamente uma intriga da oposição.


Ao invés de usar este argumento. que é circunstancial, gostaria, no entanto, de usar um argumento "estrutural". Na verdade, esta incrível ascensão do Hamas só foi possível porque eles têm um sócio poderoso e sempre pronto a fortalecê-lo. Não, este sócio não é o Irã. Este sócio é a direita israelense que está ininterruptamente no poder desde a época de Benjamin Netanyahu (como gostaria de mostrar, o governo do trabalhista Ehud Barak não foi uma exceção) e que nunca acreditou nos acordos de Oslo. A direita israelense é o grande sócio do Hamas porque, graças a ele, ela consegue atingir seu verdadeiro alvo: os judeus esquerdistas, anti-comunitaristas e pacifistas de Israel e do mundo que sempre criticaram duramente e com os melhores argumentos a situação nos territórios ocupados, chegando mesmo às heróicas ações dos refuseniks (israelenses que se recusavam a servir o exército na Cisjordânia e na faixa de Gaza). Tais proposições podem parecer gratuitas e profundamente arbitrárias, fruto de alguma espécie de delírio esquerdista diversionista. No entanto, elas não o são.


Voltemos, por exemplo, à época dos acordos de Oslo. Naquele momento em que a paz parecia possível, um fenômeno extrememante relevante mostrou toda sua amplitude.


Enquanto os governos de Rabin e Arafat tentavam implementar o plano, uma oposição que tudo fazia para minar os acordos foi mostrando sua verdadeira face. No caso do governo de Israel, víamos não apenas colonos judeus que afrontavam o exército israelense em processos de desocupação da assentamentos e discursos incendários de rabinos conservadores contra o próprio governo israelense. Muitos hão de se lembrar, por exemplo, destas inacreditáveis campanhas publicitárias feitas por organizações judaicas fundamentalistas que conclamavam os judeus do mundo, com armas em punho, a impedirem a entrega de terras aos palestinos. O final deste processo foi o chocante assassinato de Rabin por um colono judeu.


Nunca na história de Israel seu povo se mostrou tão dividido. O que levou alguns a acreditar que a unidade do povo israelense poderia ser seriamente ameaçada com o avanço do processo de paz. Pois há uma ambiguidade maior no cerne da concepção israelense de nação.


Por um lado, ela é assentada na criação de um estado moderno e laico onde haveria espaço inclusive para os árabes (mesmo que em número limitado), mas de outro, ela é assombrada por fantasmas religiosos e comunitaristas no interior dos quais um messianismo redentor se mistura perigosamente com a tentativa de criar vínculos orgânicos entre nação, estado e povo.


Poderíamos mesmo dizer que um espectro ronda o Estado de Israel: o espectro do teológicopolítico. Foi ele que ganhou encarnação trágica com o assassinato de Rabin por um colono.


Do lado de Israel, ficou claro que o avanço do processo de paz só seria possível através de uma confrontação corajosa com este núcleo teológico-político que sempre serviu de alimento para uma parte de seu imaginário como nação. No entanto, isto seria simplesmente a morte da direita israelense com seu comunitarismo indisfarçável e seus partidos religiosos que visam colonizar o campo social com narrativas mítico-religiosas. Por isto, para ela, tratava-se no fundo de adiar o processo de paz ad infinitum e retirar qualquer força de pressão social dos grupos pacificistas esquerdistas. E a melhor maneira para isto era alimentando a popularidade de um grupo de fanáticos islâmicos através de uma escalada de provocações, ações militares e humilhações ao governo da Autoridade Palestina. Foi assim que a direita israelense e o Hamas cresceram juntos a partir do final do governo Rabin. Um precisa do outro para existir. Foi assim também que os grupos judaicos pela paz, espalhados pelo mundo, foram impiedosamente esvaziados.


Mas pode-se dizer que o argumento aqui apresentado é falho. Afinal, e o que dizer do Partido Trabalhista, que governou Israel com Ehud Barak e que está atualmente na coalização governista que comanda a invasão? Trata-se também de um membro da direita israelense?


Hoje, certamente sim. O que vemos é um partido que, como seus congêneres sociaisdemocratas na Europa, não tem mais criatividade política alguma nem força suficiente para escapar de uma agenda securitária que foi posta em circulação pela direita e pela extremadireita.


Tanto que hoje ele não passa de um sócio indistinguível do Kadima. Este destino havia ficado muito claro com o governo Barak. Mas não foi Barak que propôs em Camp Davis o melhor plano de paz para os palestinos, com garantias de um estado com 92% da Cisjordânia e a divisão de Jerusalém? Sim, e, diga-se de passagem, foi um erro crasso de Arafat não o ter aceitado. O argumento da recusa é que o acordo não tratava do direito de retorno dos mais de 900.000 refugiados palestinos a Israel, tal como garantido pela resolução 194 da ONU. Em nome de um direito estruturalmente semelhante, a OTAN havia invadido o Kosovo. Mesmo que Arafat tivesse legalmente razão, era hora de pegar o que estava sendo oferecido.


No entanto, vale a pena aqui também uma contextualização. O governo Barak nunca conseguiu escapar de uma agenda securitária e de retaliação militar contínua já então dominante, até porque sua coalização era muito heteróclita para tanto e, de fato, porque talvez ele não tivesse nada mais a oferecer. Pois hoje temos relatos de membros do gabinete Clinton (então mediador do processo) a respeito das negociações de Camp Davies que deixam sérias dúvidas sobre as reais intenções de Barak. Já a situação guardava algo de surreal: uma negociação daquela envergadura sendo feita por um presidente e um primeiro-ministro que iriam sair do cargo meses depois e que por isto, em última instância, não poderiam garantir a implementação do que seria acordado. Na verdade, temos todo o direito de perguntar por que Barak esperou os últimos dias de seu governo para apresentar tal plano.


Dois povos, um estado


Gostaria de terminar este artigo dizendo que, se o verdadeiro alvo desta invasão é o bloco pacifista e esquerdista judaico que um dia teve peso real na constituição da agenda política da região e que poderia começar a desatar o nó entre política e teologia que parece querer colonizar os dois lados, então cabe a todos realmente interessados na paz lutar por construir uma alternativa política real com forte poder de transformação social. Diria que esta alternativa já havia sido sintetizada de maneira decisiva por um intelectual cuja grandeza faz falta em um momento com este: Edward Said. Sua luta incansável por um Estado bi-nacional entre judeus e palestinos deve nos servir de guia.


De fato, os defensores da criação de um estado palestino esquecem de um dado simples: ele não seria viável economicamente e serviria apenas de dormitório para mão-de-obra barata e sem direitos trabalhistas a ser explorada por seus vizinhos. Gaza é uma faixa de terra árida com 11 km de extensão e 44 km de largura. A Cisjordânia é do tamanho do Distrito Federal. Não se constrói um estado com tão pouco.


Mas, para além deste "detalhe" pragmático há uma questão maior. Um Estado binacional criaria uma dinâmica sócio-política realmente transformadora com poder irradiador para toda a região. Muitos rechaçam a idéia dizendo: "No fundo, isto significa dizer que o povo judeu (ou o povo palestino) não tem direito a ter um estado". Bem, neste caso, devemos dizer claramente: nenhum povo tem direito a ter um estado pois o ímpeto fundamental do Estado moderno é a dissociação radical entre estado, nação e povo. O Estado moderno deve ser uma construção que permita aos sujeitos serem reconhecidos para além de suas etnias, religiões e culturas enquanto cidadãos indiferentes a suas diferenças. Por acreditarmos no caráter emancipador desta indiferença, devemos rejeitar radicalmente todo o qualquer nacionalismo com seus motivos de conservação de hábitos e tradições enquanto guia de conduta, assim como devemos rejeitar as armadilhas que procuram nos aprisionar em identidades sociais construídas no bojo de tradições religiosas. Lutemos pois por uma época em que as nações sejam peças políticas do passado.


É verdade que nosso tempo parece particularmente triste para defesas desta natureza.


Pois vivemos em uma era onde belgas se digladiam a fim de se separarem, onde franceses criam Ministérios da identidade nacional, onde estruturas como a Comunidade européia são, na verdade, federações comerciais que só conseguem estabelecer algum acordo político quando é questão de correr atrás de imigrantes. Mas talvez estes sejam sintomas de uma época esgotada que teima em não morrer. Acelerar seu desabamento é nossa tarefa.


Por isto, contra aqueles que vêem no conflito palestino o último capítulo da luta milenar na defesa dos valores da civilização judaico-cristã, devemos afirmar, com um sorriso:


"Então parem o carro porque eu quero descer. Já vi montanhas de cadáveres demais em nome desta civilização esclarecida". Sejamos fiéis à grandeza dos críticos de nossa própria tradição e digamos, junto com eles: a civilização judaico-cristã só foi grande quando teve a força de suspeitar de seus próprios valores, de se auto-criticar impiedosamente, de esquecer suas raízes religiosas. Então ela aprendeu, como disse Nietzsche, a força dos que sabem que é necessário se perder para poder encontrar seu verdadeiro destino. Talvez a criação de um Estado binacional nesta região carregada de tanto simbolismo como é o "oeste do Rio Jordão" seria o começo necessário para esta perda que emancipa. Cabe a estes dois povos igualmente vítimas do exílio, do desterro, da perseguição e da humilhação a tarefa de ser fiel a essa experiência histórica comum e transformá-la na mola mestra de um novo momento de criatividade política. Com a inteligência que transforma sofrimento em criação, diremos: o exílio é nossa verdadeira força.


*Vladimir Safatle, Professor de filosofia da Universidade de São Paulo e autor de, entre outros, Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), Lacan (Publifolha, 2007) e A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006)



[1] (nota da autora deste blog] Antes do cessar-fogo israelense, ao final de janeiro, o número já havia passado de 1300 mortes sendo 410 crianças.


[2] Bush Júnior, quando perguntado sobre a possibilidade de negociar com o Hamas, disse a frase: "Você acredita que venceríamos Hitler com diálogo e diplomacia?". Que este amálgama tenha saído da boca de Bush Júnior, bem, isto não impressiona ninguém, mas que intelectuais inteligentes operem com ele, eis algo de inaceitável.

Primeiro, deveríamos parar de vez com esta tendência nefasta, presente em ambos os lados do conflito, de comparar o opositor aos nazistas. Assim, o Hamas é igual a Hitler e o "estado sionista" age como o "estado nazista". Francamente, esta é uma maneira de simplesmente não querer discutir o problema. E se for para apoiar-se nas infames declarações racistas dos radicais palestinos, deveríamos lembrar da profusão de racismo que ultimamente sai da boca de políticos israelenses influentes, alguns comparando os árabes a "vermes" e "povo que tem a mentira no sangue". Melhor seria assumir o conflito por aquilo que ele é: não um conflito de civilizações, uma reedição das cruzadas ou uma luta do bem contra o mal radical, mas um conflito territorial que assumiu proporções que nunca deveria ter assumido.


[3] Diga-se de passagem, é assustador ver o vocabulário do "aniquilamento" sair da boca de um pretenso leitor da Escola de Frankfurt, mesmo relacionando-se com fanáticos religiosos. Rezemos para que este seja apenas um erro de tradução. Pois, se não for este o caso, poderíamos dizer: sendo a ordem "aniquilar o Hamas" de nada adianta desmantelá-lo como se fez inúmeras vezes com o ETA ou o IRA. Como nestes dois casos, logo ele se recomporá. Melhor seria eliminar fisicamente seus membros, já que eles não se deixam prender facilmente. Mas também de nada adianta eliminar apenas os membros. Tenho todo o direito de acreditar que os filhos e irmãos dos membros alimentarão o ódio contra o inimigo e pegarão em armas na primeira oportunidade. Devemos ter a responsabilidade preventiva de eliminar também os filhos e irmãos. Mas o que dizer também dos vizinhos que cresceram juntos com estes "eliminados" e que podem se ver na obrigação moral de continuar a batalha? Talvez devêssemos também cuidar dos vizinhos. Ou seja, como dizia o "neoestatista" Hegel, as piores catástrofes são normalmente feitas com as melhores razões.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

A crise financeira sem mistérios

Para apresentar os principais encadeamentos da crise financeira é preciso partir dos mecanismos que a desencadearam; a deterioração dos mecanismos e das instituições de regulação, e o papel chave que os Estados Unidos desempenham. Na avaliação dos impactos, quem deverá em última instância pagar pela bancarrota do cassino?

Ladislau Dowbor (Mundo Diplomatique)

(25/01/2009)

“Os benefícios fundamentais da globalização financeira são bem conhecidos: ao canalizar fundos para os seus usos mais produtivos, ela pode ajudar tanto os países desenvolvidos como os em via de desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de vida.” IMF, Finance & Development, March 2002, p. 13.

“Os administradores de fundos enriqueceram e os investidores viram o seu dinheiro desaparecer. E estamos falando de muito dinheiro, em todo esse processo” ­- Paul Krugmann, Folha de São Paulo, 30-12-2008

Tirando a roupa (financeira)

As pessoas imaginam profundas articulações onde, em geral, há mecanismos bastante simples. Nada como alguns exemplos para ver como funciona. Há poucos anos estourou o desastre da Enron, uma das maiores e mais conceituadas multinacionais americanas. Foi uma crise financeira e um dos principais mecanismos de geração fraudulenta de recursos fictícios, foi um charme de simplicidade. Manda-se um laranja qualquer abrir uma empresa laranja num paraíso fiscal como Belize. Esta empresa reconhece por documento uma dívida de, por exemplo, 100 milhões de dólares. Esta dívida entra na contabilidade da Enron como “ativo”, e melhora a imagem financeira da empresa. Os balanços publicados ficam mais positivos, o que eleva a confiança dos compradores de ações. As ações sobem, o que valoriza a empresa, que passa a valer os cem milhões suplementares que dizia ter.

Os executivos da Enron acharam o processo muito interessante. O setor de produção (que produzia efetivamente coisas úteis) foi colocado no seu devido lugar, e os magos da finança se lançaram no filão que apresentava a vantagem de ser menos trabalhoso e mais lucrativo. No momento da falência, a Enron tinha 1600 empresas fictícias na sua contabilidade. A empresa de auditoria Arthur Andersen não percebeu. As empresas de avaliação de risco não perceberam. A primeira tinha a Enron como cliente de consultoria. As segundas são pagas pelas empresas que avaliam.

Partimos deste exemplo da Enron porque é simples, representa um mecanismo de fraude honesto e transparente. Não viu quem não quis. E também para marcar o que é uma cultura da área financeira, onde vale rigorosamente tudo, conquanto não sejamos pegos. Não é o reino dos inteligentes (tanto assim que quebram), mas dos espertos. E os que buscam produzir bens e serviços realmente úteis são levados de roldão, em parte culpados porque toleraram idiotas disfarçados em magos de finanças e marketing. Qualquer semelhança com empresas nacionais que se lançaram em aventuras especulativas é mera coincidência.

O estopim da crise financeira de 2008 foi o mercado imobiliário norte-americano. Abriu-se crédito para compra de imóveis por parte de pessoas qualificadas pelos profissionais do mercado de Ninjas (No Income, No Jobs, no Savings). Empurra-se uma casa de 300 mil dólares para uma pessoa, digamos assim, pouco capitalizada. Não tem problema, diz o corretor: as casas estão se valorizando, em um ano a sua casa valerá 380 mil, o que representa um ganho seu de 80 mil, que o senhor poderá usar para saldar uma parte dos atrasados e refinanciar o resto. O corretor repassa este contrato – simpaticamente qualificado de “sub-prime”, pois não é totalmente de primeira linha, é apenas sub-primeira linha – para um banco, e os dois racham a perspectiva suculenta dos 80 mil dólares que serão ganhos e pagos sob forma de reembolso e juros. O banco, ao ver o volume de “sup-prime” na sua carteira, decide repassar uma parte do que internamente qualifica de “junk” (aproximadamente lixo), para quem irá “securitizar” a operação, ou seja, assegurar certas garantias em caso de inadimplência total, em troca evidentemente de uma taxa. Mais um pequeno ganho sobre os futuros 80 mil, que evidentemente ainda são hipotéticos. Hipotéticos mas prováveis, pois a massa de crédito jogada no mercado imobiliário dinamiza as compras, e a tendência é os preços subirem.

As empresas financeiras que juntam desta forma uma grande massa de “junk” assinados pelos chamados “ninjas”, começam a ficar preocupadas, e empurram os papéis mais adiante. No caso, o ideal é um poupador sueco, por exemplo, a quem uma agência local oferece um “ótimo negócio” para a sua aposentadoria, pois é um “sup-prime”, ou seja, um tanto arriscado, mas que paga bons juros. Para tornar o negócio mais apetitoso, o lixo foi ele mesmo dividido em AAA, BBB e assim por diante, permitindo ao poupador, ou a algum fundo de aposentadoria menos cauteloso, adquirir lixo qualificado. O nome do lixo passa a ser designado como SIV, ou Structured Investment Vehicle, o que é bastante mais respeitável. Os papéis vão assim se espalhando e enquanto o valor dos imóveis nos EUA sobe, formando a chamada “bolha”, o sistema funciona, permitindo o seu alastramento, pois um vizinho conta a outro quanto a sua aposentadoria já valorizou.

Para entender a crise atual, não muito diferente no seu rumo geral do caso da Enron, basta fazer o caminho inverso. Frente a um excesso de pessoas sem recurso algum para pagar os compromissos assumidos, as agências bancárias nos EUA são levadas a executar a hipoteca, ou seja, apropriam-se das casas. Um banco não vê muita utilidade em acumular casas, a não ser para vendê-las e recuperar dinheiro. Com numerosas agências bancárias colocando casas à venda, os preços começam a baixar fortemente. Com isso, o Ninja que esperava ganhar os 80 mil para ir financiando a sua compra irresponsável, vê que a sua casa não apenas não valorizou, mas perdeu valor. O mercado de imóveis fica saturado, os preços caem mais ainda, pois cada agência ou particular procura vender rapidamente antes que os preços caiam mais ainda. A bolha estourou. O sueco que foi o último elo e que ficou com os papéis – agora já qualificados de “papéis tóxicos” – é informado pelo gerente da sua conta que lamentavelmente o seu fundo de aposentadoria tornou-se muito pequeno. “O que se pode fazer, o senhor sabe, o mercado é sempre um risco”. O sueco perde a aposentadoria, o Ninja volta para a rua, alguém tinha de perder. Este alguém, naturalmente, não seria o intermediário financeiro. Os fundos de pensão são o alvo predileto, como o foram no caso da Enron.

Mas onde a agência bancária encontrou tanto dinheiro para emprestar de forma irresponsável? Porque afinal tinha de entregar ao Ninja um cheque de 300 mil para efetuar a compra. O mecanismo, aqui também, é rigorosamente simples. Ao Ninja não se entrega dinheiro, mas um cheque. Este cheque vai para a mão de quem vendeu a casa, e será depositado no mesmo banco ou em outro banco. No primeiro caso, voltou para casa, e o banco dará conselho ao novo depositante sobre como aplicar o valor do cheque na própria agência. No segundo caso, como diversos bancos emitem cheques de forma razoavelmente equilibrada, o mecanismo de compensação à noite permite que nas trocas todos fiquem mais ou menos na mesma situação. O banco, portanto, precisa apenas de um pouco de dinheiro para cobrir desequilíbrios momentâneos. A relação entre o dinheiro que empresta – na prática o cheque que emite corresponde a uma emissão monetária – e o dinheiro que precisa ter em caixa para não ficar “descoberto” chama-se alavancagem.

A alavancagem, descoberta ou pelo menos generalizada já na renascença pelos banqueiros de Veneza, é uma maravilha. Permite ao banco emprestar dinheiro que não tem. Em acordos internacionais (acordos de cavalheiros, ninguém terá a má educação de verificar) no quadro do BIS (Bank for International Settlements) de Basiléia, na Suíça, recomenda-se por exemplo que os bancos não emprestem mais de nove vezes o que têm em caixa, e que mantenham um mínimo de coerência entre os prazos de empréstimos e os prazos de restituições, para não ficarem “descobertos” no curto prazo, mesmo que tenham dinheiro a receber a longo prazo. Para se ter uma idéia da importância das recomendações de Basiléia, basta dizer que os bancos americanos que quebraram tinham uma alavancagem da ordem de 1 para 40.

A vantagem de se emprestar dinheiro que não se tem é muito grande. Por exemplo, a pessoa que aplica o seu dinheiro numa agência verá o seu dinheiro render cerca de 10% ao ano. O banco tem de creditar estes 10% na conta do aplicador. Se emprestar este dinheiro para alguém a 20%, por exemplo, terá de descontar dos seus ganhos os 10% da aplicação. Mas quando empresta dinheiro que não tem, não precisa pagar nada, é lucro líquido. A alavancagem torna-se portanto muito atraente. E a tentação de exagerar na diferença entre o que tem no caixa e o que empresta torna-se muito grande. Sobretudo quando vê que outros bancos tampouco são cautelosos, e estão ganhando cada vez mais dinheiro. É uma corrida para ver quem agarra o cliente primeiro, pouco importa o risco. E os ganhos são tão estupendos...

A ficção da regulação

A “bolha” imobiliária vinha sendo comentada há pelo menos três anos. Greenspan previa um “soft landing”, ou seja, um esvaziamento suave da bolha, e não o “crash landing” que finalmente aconteceu. É interessante comparar a frase ufanista do FMI em 2002, que colocamos em epígrafe no início deste artigo, com a avaliação bastante mais cautelosa e até alarmante que aparece já em 2005: “Ainda que seja difícil ser categórico sobre qualquer coisa tão complexa como o sistema financeiro moderno, é possível que estes desenvolvimentos estejam criando mais movimento procíclicos que no passado. Podem igualmente estar criando uma probabilidade maior (mesmo que ainda pequena) de um colapso catastrófico (catastrophic meltdown). ”

Em dezembro de 2007, o FMI lança um grito: “Global governance: who’s in charge?” diz a capa da publicação, claramente sugerindo que ninguém está “in charge”, ninguém está regulando nada. “Lax, if not fraudulent, underwriting practices in subprime mortgage lending largely explain the rise in the rate of seriously delinquent loans from 6 percent to 9 percent between the second quarter of 2006 and the second quarter of 2007”. Na época já estimava que o lixo tóxico (troubled loans como era ainda chamado) estava corrompendo (disrupting) o mercado financeiro americano de 57 trilhões de dólares. A culpa recai, segundo o Fundo, sobre a globalização do sistema, abandonando as “local depository institutions [which] make loans” em proveito dos “major Wall street banks and securities firms, which employ the latest financial engineering to repackage mortgages into securities through credit derivatives and collateralized debt obligations”. O uso de paraísos fiscais está igualmente bem mapeado: “Securitization involves the pooling of mortgages into a special-purpose vehicle, which is simply a corporation registered in what is usually an off-shore tax-haven country”. Este e outros canais eram utilizados, segundo o Fundo, “to keep the subprime assets off their books and to avoid related capital requirements”. A expressão “keep off their books” nos é familiarmente conhecida como “caixa dois”. Atribuir a crise ao “pânico” e outras manifestações irracionais não tem muito sentido. O pânico existe, pois as pessoas não gostam de perder dinheiro. Mas tem a sua origem no comportamento fraudulento quando não criminoso das principais instituições financeiras. E sobretudo na ausência de qualquer vontade ou capacidade reguladora do FED e do governo norte-americano.

Quando os pequenos bancos locais se transformam em gigantes planetários, a imprensa apresenta a evolução como positiva, dizendo que os bancos ficam ‘mais sólidos”. A realidade é que ficam mais poderosos, logo menos controlados. No conjunto, o que aconteceu com a globalização financeira é que os papéis circulam no planeta todo, enquanto os instrumentos de regulação, os bancos centrais nacionais, estão fragmentados em cerca de 190 nações. Na prática, ninguém está encarregado de regular coisa alguma. E se algum país decide controlar os capitais, estes fugirão para lugares mais hospitaleiros (market-friendly), em processo muito parecido com os mecanismos de guerra fiscal entre municípios. Nas análises das Nações Unidas, isto é chamado de race to the bottom, corrida para o fundo, de quem reduz mais as suas próprias capacidades de controle.

Lembremos aqui que os gigantes globalizados da finança, os chamados Institutional Investors, constituem um grupo pequeno e seleto. Segundo o New Scientist, 66 grupos apenas gerem 75% das movimentações especulativas planetárias que eram da ordem de 2,1 trilhões de dólares por dia na véspera do agravamento da crise em 2008. É fácil imaginar o poder político que corresponde a esta capacidade de irrigar com dinheiro ou desequilibrar com fugas qualquer economia. Stigliz lembra bem que se trata de um clube de pessoas que circulam alternadamente entre Wall Street, o Departamento do Tesouro norte-americano, o FMI e o Banco Mundial. Paulson, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, na gestão Bush, pertencia à Goldman & Sachs. O mecanismo é familiarmente chamado de “porta giratória”.

Haveria ainda de se considerar o papel regulador das agências avaliadoras de risco. O muito conservador The Economist chega a se indignar com o peso que adquiriu este oligopólio de tres empresas – Moody’s, Standard & Poor (S&P) e Fitch – que “fazem face a críticas pesadas nos últimos anos, por terem errado relativamente a crises como as da Enron, da WorldCom e da Parmalat. Estes erros, a importância crescente das agências, a falta de competição entre elas e a ausência de escrutínio externo estão começando a deixar algumas pessoas nervosas”. O The Economist argumenta também que as agências de avaliação são pagas pelos que emitem títulos, e não por investidores que utilizarão as avaliações de risco, com evidentes conflitos de interesse. O resultado é que “a mais poderosa força nos mercados de capital está desprovida de qualquer regulação significativa”.

A pá de cal na capacidade de regulação veio no final dos anos 1990 quando se liquidou a separação entre os bancos comerciais tradicionais, que tipicamente recebiam depósitos de correntistas e faziam empréstimos locais, e os investidores institucionais. Todo mundo passou a fazer o que quisesse, os intermediários financeiros passaram a ser “supermercados” de produtos financeiros e inclusive grandes empresas industriais e comerciais viraram especuladores.

Nesta discrepância entre finanças globais e regulação nacional, jogam um papel complementar importante os paraísos fiscais, cerca de 70 “nações”, ilhas da fantasia onde frequentemente existem mais empresas registradas do que habitantes, e onde não se pagam impostos nem exigem relatórios de atividades. Estes paraísos exercem hoje o papel que no século 18 desempenhavam algumas ilhas do Caribe que constituíam abrigos permanentes de piratas, onde os produtos da ilegalidade podiam ser estocados, trocados e comercializados. Mudou apenas o tipo de produto, encobrindo não só caixa dois, como evasão fiscal, tráfego de armas e lavagem de dinheiro. Não haverá um mínimo de ordem financeira mundial enquanto subsistirem estes off-shores de ilegalidade.

Circo, cassino, ciranda financeira, estes são os termos com os quais já há tempos especialistas têm designado o carnaval econômico que oportunistas dos mais variados tipos desenvolvem com dinheiro que não é deles – se trata de poupanças da população ou de emissão de dinheiro com autorização pública – e que acaba quebrando não os próprios intermediários, mas pessoas, empresas ou países que produzem, poupam e investem.

O papel dos Estados Unidos

O epicentro da atual crise está nos Estados Unidos, e o eixo desencadeador foi o mercado imobiliário. Mas a diferença relativamente às crises dos hedge funds ou do Long Term Capital Management (LTCM) de poucos anos atrás, é a nova fragilidade dos Estados Unidos. A tradição ideológica exige que se considere os EUA à beira do colapso ou como poderoso bastião do capitalismo, segundo as posições. A realidade é que se trata sim de um poderoso bastião, mas impressionantemente fragilizado.

Os Estados Unidos têm uma dívida pública de 10,5 trilhões de dólares. Como ninguém consegue imaginar o que pode representar tal soma, vale a pena lembrar que o PIB mundial é da ordem de 55 trilhões de dólares. Ou seja, a dívida pública norte-americana representa cerca de um quinto do PIB mundial. É um país que vive acima de suas posses. O American Way of Life é amplamente artificial. Sem falar do conteúdo das atividades: os custos advocatícios empresariais são da ordem de 370 bilhões de dólares por ano, e pode-se duvidar se este aumento do PIB gera qualidade no Way of Life.

O endividamento como nação se reflete na situação das famílias. O americano adulto médio tem oito cartões de crédito, e gasta um terço da sua renda com o pagamento de dívidas. Apresentado no momento da concessão, o crédito aparece como um instrumento de dinamização da conjuntura, pois aumenta a capacidade de compra da família. No entanto, cada dívida significa não só reembolso, como pagamento de juros e, na realidade, o que se consegue com endividamento é uma antecipação de consumo, e não o seu aumento. Quando chega a hora de pagar, o efeito se inverte. Até onde irão as famílias norte-americanas no faz-de-conta de prosperidade?

Os dois endividamentos, público e privado, dependem no caso americano de um desequilíbrio entre importações e exportações, da ordem de 1 trilhão de dólares anualmente.8 Este déficit sistemático levou a um acúmulo de reservas em dólares em particular pela China, que detém curiosamente hoje uma capacidade impressionante de desestabilização do sistema monetário norte-americano. Imagina, comenta informalmente Ignacy Sachs, o Partido Comunista da China salvando a economia americana.

Neste final de 2008, as matrizes norte americanas de multinacionais estão comprando dólares nos mercados do mundo para se recapitalizar, e inúmeras empresas com dívidas denominadas em dólar buscam igualmente a moeda, além de especuladores tentando “realizar” papéis podres transformando-os em moeda real, gerando uma valorização. O médio prazo deste processo é simplesmente um ponto de interrogação, em particular considerando a gigantesca massa de dólares que os EUA emitiram quando estes eram – e ainda são em parte – ao mesmo tempo moeda nacional e moeda-reserva mundial.

O efeito desequilibrador que os Estados Unidos geram no planeta é poderoso, e isto torna as responsabilidades do novo governo eleito muito amplas. Os desequilíbrios monetários e financeiros foram-se acumulando durante as décadas da farra neoliberal, e hoje estão gravadas nas estruturas produtivas. Mais importante ainda, a dinâmica recente de concentração de renda nos Estados Unidos, inclusive com a drástica redução de impostos pagos pelos ricos, geraram uma cultura do lucro fácil e uma estrutura de poder que de tudo fará para manter o sistema. Os ajustes terão de ser profundos.

Quem paga a conta?

A conta da irresponsabilidade norte-americana, devidamente imitada em outros países que até ontem nos davam lições, ainda está por ser apresentada. A curtíssimo prazo, e buscando conter o pânico entre eleitores, os governos dos países mais afetados procuraram tranquilizar os milhões de pequenos depositantes. Neste sentido, vários países passaram a assegurar que no caso de quebra de um banco, por exemplo, o governo ressarciria as perdas dos correntistas até 100 mil dólares, ou até sem limite, segundo os países. O processo é interessante, pois o correntista seria ressarcido do seu próprio dinheiro com dinheiro que pagou para o governo sob forma de impostos. A generosidade governamental escapa à compreensão de muitos, que acham que talvez devessem ser debitados os especuladores que afinal especularam precisamente com o dinheiro dos poupadores.

Mas a grande massa de movimentação financeira foi evidentemente no socorro às instituições financeiras que estão quebrando. Neste início de 2009, a conta dos recursos mobilizados está em cerca de 4 trilhões de dólares. Como o ex-presidente Bush explicou candidamente, isto ia contra as suas convicções, mas como uma quebradeira geral iria prejudicar ainda mais a população, e sendo o bem-estar desta a sua preocupação maior, tinha de mobilizar o dinheiro necessário. Dinheiro público, naturalmente, pois se tratava justamente de não prejudicar os bancos ou seguradoras. Aqui também, para o público, ficou um sentimento profundamente ambíguo: alívio porque a quebradeira seria evitada, ou retardada, mas também a amarga constatação de que se estava salvando especuladores com o próprio dinheiro do público. Na primeira reviravolta do “mercado” após o anúncio dos 700 bilhões do governo americano, quando o mercado se recuperou momentâneamente, houve declarações – lamentavelmente públicas – de especuladores: “The happy days are back”. Já não dizem o mesmo, pelo menos por enquanto. Ponto essencial, é preciso lembrar que os trilhões desembolsados pelo governo não estarão disponíveis para políticas públicas em saúde, educação e assim por diante. Alguém tem de pagar.

Um drama que ainda se desenrola, e de dimensões imprevisíveis, é o dos que pouparam a vida inteira para formar um fundo de pensão, e dos próprios grandes fundos que tinham os seus ativos aplicados em ações que perderam valor. É preciso lembrar que os administradores das grandes instituições de especulação trabalham essencialmente com dinheiro de terceiros, e que têm os seus salários – em geral na faixa de dezenas de milhões ao ano – garantidos, foram os primeiros a saber como realocar o que tinham em opções empresariais. Mas os detentores de ações perderam massas avassaladoras de recursos, mais de 30 trilhões neste início de 2009. Quando uma pessoa tem mil dólares em dinheiro, enquanto não houver um surto inflacionário, tem o seu poder de compra garantido. Mas quando os seus dólares foram transformados em papéis que perderam todo valor, estão arruinados. Muita gente procurou dólares para se livrar de ações de empresas perfeitamente produtivas, e que fazem coisas úteis, buscando a segurança do dinheiro vivo, agravando o processo.

Gera-se assim um amplo efeito multiplicador, em que a irresponsabilidade da especulação financeira atinge áreas de atividades produtivas. Note-se aqui que “especulação” é o termo tecnicamente correto. O inglês não tem, como temos em português, a diferença entre investimento e aplicação financeira. Tecnicamente, o investimento é quando alguém constrói uma fábrica, por exemplo, e com o lucro da produção financiará a restituição do empréstimo e os juros correspondentes. À movimentação financeira correspondeu uma atividade produtiva. No caso da aplicação financeira apenas se transfere ativos financeiros de uma área para outra, não se gera produto ou serviço algum. O Economist, que sempre considerou este último tipo de aplicação como “investment”, e durante décadas declarou que a especulação ajudava na mobilidade dos capitais e, portanto, no seu uso mais produtivo, hoje enfrenta grandes dificuldades para sair da saia justa: não querendo acusar os amigos de sempre de especuladores, passou a chamá-los de “speculative investors”. Os doutores sofistas de tempos passados não inventariam melhor.

Temos assim um processo desequilibrado, em que por um lado os impressionantes avanços tecnológicos permitiram fortes aumentos de produtividade sistêmica no planeta, mas por outro lado a apropriação dos excedentes gerados se dá na mão de intermediários, não de produtores, e muito menos dos trabalhadores. Este desvio das capacidades financeiras, do investimento produtivo para as esferas da especulação, está no centro da perversão sistêmica que enfrentamos.

Especulação e concentração de renda

Num plano mais amplo, portanto, o próprio sistema é desequilibrado em termos de alocação e de apropriação de recursos, mesmo quando não há crise. Marjorie Kelly produziu nesta área um estudo particularmente interessante, intitulado “O direito divino do capital”. Analisando o mercado de ações dos Estados Unidos, Kelly constata que a imagem das empresas se capitalizarem por meio da venda de ações é uma bobagem, pois o processo é marginal: “Dólares investidos chegam às corporações apenas quando novas ações são vendidas. Em 1999 o valor de ações novas vendidas no mercado foi de 106 bilhões de dólares, enquanto o valor das ações negociado atingiu um gigantesco 20,4 trilhões. Assim que de todo o volume de ações girando em Wall Street, menos de 1% chegou às empresas. Podemos concluir que o mercado é 1% produtivo e 99% especulativo”. Mas naturalmente, as pessoas ganham com as ações e, portanto, há uma saída de recursos: “Em outras palavras, quando se olha para as duas décadas de 1981 a 2000, não se encontra uma entrada líquida de dinheiro de acionistas, e sim saídas. A saída líquida (net outflow) desde 1981 para novas emissões de ações foi negativa em 540 bilhões”...”A saída líquida tem sido um fenômeno muito real – e não algum truque estatístico. Em vez de capitalizar as empresas, o mercado de ações as tem descapitalizado.

Durante décadas os acionistas têm se constituído em imensos drenos das corporações. São o mais morto dos pesos mortos. É inclusive inexato se referir aos acionistas como investidores, pois na realidade são extratores. Quando compramos ações não estamos contribuindo com capital, estamos comprando o direito de extrair riqueza”.

Esta forma de drenar a riqueza produzida pelas empresas está baseada num pacto de solidariedade nas próprias corporações, em que os acionistas são bem remunerados pelos seus aportes iniciais, e os administradores levam salários nababescos (na faixa de dezenas e frequentemente centenas de milhões de dólares anuais mais opções). Encontramos aqui a boa e velha mais valia, onde a produtividade do trabalho aumenta de forma acelerada graças às novas tecnologias, mas a participação da remuneração do trabalho declina. O FMI apresenta uma tabela bem clara referente aos países mais desenvolvidos (ver tabela abaixo). Constatamos que a parte da renda destinada à remuneração do trabalho cai sistematicamente entre 1980 e 2005 nos países avançados. É o efeito prático mais direto do neoliberalismo. É interessante lembrar que em 1980 se inicia, com Reagan e Margareth Thatcher, a onda neoliberal. E é bom recorrer a estatísticas do Fundo, pouco suspeito no caso.

IMF, Finance&Development, June 2007, p. 21

A compreensão deste “pano de fundo” é importante, pois não se trata apenas de um sistema bom que entrou em crise por movimentos conjunturais: a financeirização dos processos econômicos vem há décadas se alimentando da apropriação dos ganhos da produtividade que a revolução tecnológica em curso permite, de forma radicalmente desequilibrada. Não é o caso de desenvolver o tema aqui, mas é importante lembrar que a concentração de renda no planeta está atingindo limiares absolutamente obscenos.

Fonte: Human Development Report 1998, p. 37

A imagem da taça de champagne é extremamente expressiva, pois mostra quem toma que parte do conteúdo, e em geral as pessoas não têm consciência da profundidade do drama. Os 20% mais ricos se apropriam de 82,7% da renda. Como ordem de grandeza, os dois terços mais pobres têm acesso a apenas 6%. Em 1960, os 20% mais ricos se apropriavam de 70 vezes a renda dos 20% mais pobres, em 1989 são 140 vezes. A concentração de renda é absolutamente escandalosa, e nos obriga de ver de frente tanto o problema ético, da injustiça e dos dramas de bilhões de pessoas, como o problema econômico, pois estamos excluindo bilhões de pessoas que poderiam estar não só vivendo melhor, como contribuindo de forma mais ampla com a sua capacidade produtiva. Esta concentração não se deve apenas à especulação financeira, mas a contribuição é significativa e, sobretudo, é absurdo desviar o capital de prioridades planetárias óbvias. O cassino tornou-se um entrave central no processo de desenvolvimento em geral.

Os lucros financeiros no Brasil

Finalmente, e antes de entrar nas propostas, um comentário sobre a situação particular da intermediação financeira no Brasil. Basicamente, cinco grupos dominam o mercado. A ANEFAC, Associação Nacional de Executivos de Finanças, Administração e Contábeis, apresenta mensalmente a taxa média de juros efetivamente praticada junto ao tomador final, pessoa física ou pessoa jurídica.

Para pessoa jurídica, os juros anuais se mantêm em 68% durante 3 anos, sendo que os juros correspondentes na Europa seriam da ordem de 3% ao ano. É importante lembrar que neste período a taxa básica de juros Selic caiu de 19,75% para 13,75%, ou seja, 6 pontos percentuais (queda de 30,4%), sem que houvesse redução da taxa média para pessoa jurídica ou para pessoa física no mercado financeiro.

A situação aqui é completamente diferente dos bancos dos países desenvolvidos, que trabalham com juros baixos e alavancagem altíssima. Essencial para nós, é que sustentar no Brasil juros que são da ordem de mil por centos relativamente aos juros praticados internacionalmente, só pode ser realizado mediante uma cartelização de fato. Para dar um exemplo, o Banco Real (Santander Brasil) cobra 146% no cheque especial no Brasil, enquanto o Santander na Espanha cobra 0% (zero por cento) por seis meses até cinco mil euros. Os ganhos dos grupos estrangeiros no Brasil sustentam assim as matrizes. Lembremos ainda que a Anefac apresenta apenas os juros, sem mencionar as tarifas cobradas. Os resultados são os spreads fantásticos e lucros impressionantes que o setor apresenta, sobre um volume de crédito no conjunto bastante limitado (39% do PIB) para uma economia como o Brasil. A intermediação financeira tornou-se assim um fator central do chamado “custo Brasil”, e um vetor central da concentração de renda. Os lucros são tão impressionantes, que ao abrigo deste cartel mesmo grupos de comércio, em vez de se concentrar em prestar bons serviços comerciais, hoje se concentram na intermediação financeira.

Em termos de remuneração do trabalho, o processo no caso brasileiro é bastante mais dramático, pois a queda da participação da remuneração do trabalho na renda nacional, durante o período, foi da ordem de 45% para 35%, o que representa ao mesmo tempo uma queda mais acelerada do que os países desenvolvidos vistos anteriormente e um nível absurdamente baixo. Em período mais recente, apesar dos fortes avanços sociais do governo Lula, menos da metade dos ganhos de produtividade do trabalho foi repassada ao trabalhador.

Os números apontam para o bom momento econômico e social do país. Entretanto, é preciso estar atento para o fato de que o mundo do trabalho ainda não é capaz de repassar ao trabalhador parte significativa dos ganhos obtidos nos últimos anos. A Pesquisa Industrial Mensal – Produção Física do IBGE indica, por exemplo, que entre 2001 e 2008, houve aumento de produção física da indústria brasileira na ordem de 28,1%, com ganhos de produtividade do trabalhador de 22,6%. A folha de pagamento por trabalhador, em contrapartida, cresceu, em termos reais, 10,5% no mesmo período de tempo. Por conta disso, o Custo Unitário do Trabalho (CUT) – entendido como a razão entre o rendimento real médio por trabalhador ocupado e a produtividade – apresentou queda de 10,2% no mesmo período de tempo. Noutras palavras, a remuneração dos trabalhadores não tem acompanhado plenamente os ganhos de produtividade da indústria brasileira. Se não são os salários a incorporar completamente os ganhos de produtividade, não podem ser percebidos sinais de pressão sobre os custos de produção, o que poderia sugerir alguma pressão inflacionária. Sem o repasse pleno da produtividade aos trabalhadores, estimula a expansão do estrato superior na distribuição de renda no Brasil.

O Brasil tem evidentemente um grande trunfo na mão, que é a possibilidade de usar os bancos oficiais para reintroduzir concorrência no mercado cartelizado, permitindo ao mesmo tempo dinamizar a economia ao estimular consumo e investimento. Este mecanismo, ao que tudo indica, está sendo progressivamente implantado. O sistema de intermediação financeira dos grandes grupos terá de evoluir para mecanismos de concorrência, inclusive porque a cartelização é ilegal. No curto prazo, no entanto, parece claro que o funcionamento protegido da concorrência de um grupo de gigantes com lucros imensos gera, paradoxalmente, uma situação mais estável do que a da sobre-exposição dos grupos financeiros dos países desenvolvidos. O problema aqui é de que em vez de termos intermediários financeiros que facilitam as iniciativas econômicas, temos atravessadores que as encarecem. A intermediação financeira tornou-se aqui num dos principais instrumentos de concentração de renda e de desequilíbrios sociais.

No geral tanto nos países desenvolvidos, como no Brasil, cada vez mais os lucros corporativos estão alimentando atravessadores financeiros, gerando uma ampla classe de rentistas. A questão, vista do ponto de vista de “quem paga”, tende a deslocar-se, na visão das pessoas, para pensar melhor em “a quem pagamos”. Trata-se de poupanças da população. Este ponto é essencial, pois tratando-se de um cassino gerado com dinheiro da população, proteger os especuladores pode legitimamente ser apresentado como uma proteção à própria população, pois é o dinheiro dela que está em risco. Isto gera, evidentemente, uma posição de chantagem, e uma correspondente posição de poder. E permite deixar de lado o que deve ser a questão central da canalização das poupanças: não se os intermediários estão ganhando ou perdendo dinheiro, mas a que agentes econômicos, a que atividades, a que tipo de desenvolvimento e com que custos ambientais devem servir estas poupanças. Bastará assegurar que não quebre um sistema cujo produto final não está servindo?

Para o Brasil, paradoxalmente, a crise financeira pode representar uma oportunidade. Somos o país da desigualdade. A metade da população ainda precisa ter acesso ao consumo básico diversificado, incluindo nisto não só o alimento e outros bens de primeira necessidade, mas também o consumo de bens sociais como saúde e educação, de infraestruturas sociais como redes de saneamento e redes de banda larga de comunicação e assim por diante. Em outros termos, uma expansão dos programas, em grande parte já desenvolvidos pelo governo, tem a virtude de ao mesmo tempo começar a resgatar a nossa imensa dívida social, e de dinamizar, através da maior demanda agregada (consumo popular e investimento público), as próprias atividades empresariais. Reorientar as nossas capacidades de financiamento cada vez mais neste sentido – ainda que reduzindo a dimensão do rentismo financeiro e das atividades especulativas – faz todo sentido.

As medidas propostas: salvar o sistema ou transformá-lo? Naturalmente, dado o peso político do sistema especulativo mundial engendrado nas últimas décadas, predomina na mídia e nas tomadas públicas de posição a busca de um simples conserto, um “arreglo” como dizem os hispânicos, que permita aos especuladores voltar aos bons dias. Inclusive, quase não se encontram explicações sobre os mecanismos: a mídia se concentra no que se tem chamado de “economia de elevador”, jogando diariamente cifras sobre porcentagens de ganhos e perdas, e entrevistando magos que decifram o futuro dos altos e baixos, sobre os quais em geral não têm a mínima ideia. A palavra chave, que protege o consultor, é sempre que “o mercado está nervoso”, o que implica cientificamente que tudo é possível.

Mas a realidade é que algumas coisas mudaram de forma irremediável, constituindo deslocamentos sistêmicos. Primeiro, há o fato que a credibilidade dos Estados Unidos e o seu papel de liderança planetária, já fortemente abalados pelos golpes desferidos contra as Nações Unidas, as guerras irresponsáveis, o uso escancarado da tortura, e o desprezo geral pela concertação internacional – afundaram de maneira impressionante. Houve um deslocamento geopolítico sistêmico em direção ao mundo multipolar.

Segundo, se já depois do calote de Nixon em 1971, com a desvinculação do dólar da sua cobertura em ouro, já se falava na morte do sistema Bretton Woods, hoje a visão torna-se muito mais ampla, pois houve uma falência generalizada dos mecanismos de regulação que se acreditava serem funcionais. Em particular, a regulação financeira havia sido montada como instrumento destinado a impedir o comportamento irresponsável por parte dos países em desenvolvimento, e a crise surge nos países que se propunham como modelo. Não há instrumentos de regulação multilateral para esta situação. A imagem de um Bretton Woods II, no sentido de uma reformulação sistêmica dos processos regulatórios e das regras do jogo, está no horizonte.

Um terceiro ponto importante, é que diferentemente da crise de 1929, em que cada país se recolheu em posturas defensivas para lamber as suas feridas em mercados protegidos, desta vez há uma atitude concertada e multilateral para se enfrentar a crise. A rapidez com a qual se levantaram recursos para salvar instituições cuja credibilidade é baixíssima, mas cujo poder de estrago é imenso, aponta para uma nova cultura de construção de políticas multilaterais, mas também para o imenso poder político dos especuladores, que tudo farão para conter mudanças estruturais.

Quarto, e particularmente importante para nós, com a reunião do G20 em 15 de novembro de 2008, há pela primeira vez um reconhecimento planetário de que o mundo dito “em desenvolvimento” existe não apenas como fonte de matérias primas e de problemas, mas como fator essencial da construção de soluções.

Finalmente, o abalo planetário da confiança nas instituições financeiras não tem volta, pois são milhões os que foram prejudicados nas suas poupanças ou aposentadorias, e circulam em todos os meios de comunicação as contabilidades duplas, o uso dos paraísos fiscais para fraudar tanto o público como as obrigações fiscais, a falsificação dos dados sobre a situação real das instituições, o compadrio que preside às atividades das agências de avaliação de risco. No caso da Enron, depois da WorldCom e da Parmalat, houve uma ofensiva de propaganda em defesa do sistema, sugerindo a imagem das maçãs podres (bad apples) num sistema saudável. Hoje, esta imagem mudou, e a reconstrução da confiança só se dará no quadro de mudanças sistêmicas. São muitas bad apples. Esta mudança de contexto ainda não chegou a Basiléia.

Não é o caso aqui de entrar no detalhe da enxurrada de propostas que surgem, veremos apenas os rumos gerais. É interessante consultar as 47 propostas elencadas na sequência da reunião do G20 em novembro de 2008, a bateria de sugestões desenvolvidas por Barack Obama para reequilibrar a economia norte-americana (indo bastante além do mercado financeiro), a consulta organizada por Eichengreen a um conjunto de especialistas dias antes da reunião do G20, as propostas preliminares do Comitê de Supervisão Bancária de Basileia. Trata-se por enquanto de propostas, não mais do que isto.

Da mesma forma como Bretton Woods exigiu dois anos de preparação por equipes técnicas, não se fará uma reformulação real em pouco tempo. Trata-se, até agora, de uma ampla lista de idéias. E não devemos perder de vista que os responsáveis (e beneficiários) do sistema jogarão a carta do tempo, esperando que a crise amaine para que nada mude. Elencamos a seguir alguns elementos destas primeiras propostas, sabendo que ainda carecem do arcabouço técnico de sua sistematização e do poder político de sua implementação.

Agrupando as propostas segundo os seus eixos de impacto, as mais significativas vêm na área da governança, já que claramente ninguém estava governando coisa alguma.22 A principal questão envolve a existência ou não de um instrumento supranacional de regulação financeira global, na linha de uma World Financial Organization (WFO) análoga à Organização Mundial do Comércio (WTO na sigla inglesa). Dado o caráter internacional dos processos especulativos, a sua evolução para sistemas racionais de canalização de capitais em função de necessidades reais do desenvolvimento terá de alguma forma ser coordenada ao nível mundial. Na reunião do G20, qualquer opção neste sentido foi vetada pelos Estados Unidos, que colocaram nas resoluções a afirmação de que os problemas serão resolvidos antes de tudo pelos “reguladores nacionais”. Os Estados Unidos assim preservam a sua capacidade de agir mundialmente, mas de se regularem nacionalmente. Com esta visão, evidentemente, simplesmente não haverá regulação.

Sobra então a cosmética relativa às organizações multilaterais existentes. Isto envolve a capitalização do Fundo Monetário Internacional, cujos recursos, da ordem de 250 bilhões de dólares, são ridículos frente à dimensão dos rombos financeiros gerados pelos bancos. Propõe-se igualmente a redistribuição dos votos no Fundo, retirando o poder de veto dos EUA. O BIS deveria também passar a ser administrado de forma mais ampla e receber maiores poderes e assim por diante. Continuamos, no entanto, no quadro destas propostas, com o dilema central: a finança se tornou mundial, mas não há nada que se pareça com um banco central mundial. Fluxos mundiais versus regulação nacional; processos globais versus gestão fragmentada. Who’s in charge?

Neste plano tem sido ainda colocado um argumento central: com a regulação fragmentada atual, qualquer país que passe a exercer algum controle sobre o movimento de entrada e saída de capitais, visando assegurar o seu uso produtivo e evitar os movimentos pró-cíclicos, passa imediatamente a ser discriminado nos movimentos, tanto pelos investidores institucionais como pelas agências de risco. A regulação, nestas condições, ou é planetária ou ineficiente.

Os conteúdos da regulação reforçada proposta são relativamente óbvios, e não muito misteriosos: trata-se antes de tudo de limitar a alavancagem, que atingiu conforme vimos níveis absurdos. Trata-se também de assegurar a transparência dos processos, e de organizar o acesso às informações não apenas individualmente, mas em termos sistêmicos.24 Uma exigência igualmente óbvia é o controle da dupla contabilidade, que se generalizou, bem como o controle dos paraísos fiscais e das fraudes associadas ao “off-shore” financeiro. As agências de avaliação de risco ganhariam um quadro regulatório (“regulatory framework”) e não poderiam ser financiadas por quem avaliam.

Este tipo de recomendações constitui uma visão de que o sistema deve se manter, mas a sua governança deve melhorar. O problema básico, naturalmente, é o das próprias condições da governança. O elefante no meio da sala – o que não dá para não ver, e que é grande demais para mover – é o pequeno clube de gigantes mundiais que maneja todo este processo, que desencadeou o caos e que chamamos por alguma razão misteriosa de “forças de mercado”. A delicadeza com que se trata este grupo comove. Na declaração do G20 de 15 de novembro, merece apenas três linhas: “As instituições financeiras também (!) devem arcar com a sua parte da responsabilidade na confusão (turmoil), e deveriam fazer a sua parte para superá-la, inclusive reconhecendo as perdas, melhorando a informação (disclosure) e fortalecendo a sua governança e práticas de gestão de risco”.

Claessens é dos poucos que coloca com clareza a necessidade de “um novo regime para os grandes bancos internacionais”: “One internally consistent approach, perhaps the only one, is to establish a separate regime for large, internationally active financial institutions. This would mean an ‘International Bank Charter” with accompanying regulation and supervision, liquidity support, remedial actions as well as post-insolvency recapitalisation fund in case things go wrong. The idea is that a separate international college of supervisors, with professionals recruited internationally, would regulate, license and supervise these institutions" Em troca destas mudanças, os grupos poderiam “agir livremente”.

No conjunto, é óbvio que um sistema onde um país detém o poder de emitir uma moeda cujo uso é internacional, é estruturalmente desequilibrado. Qualquer proposta de se regular gigantes planetários sem haver um sistema supranacional efetivo é estruturalmente ineficaz. Na realidade, estamos aqui no reino do “wishful thinking”, de propostas destinadas a negociar a transição até sairmos magicamente do fundo do poço, para saudar a volta dos happy days e esperar a próxima crise. A grande incógnita neste início de 2009, é o próximo presidente dos Estados Unidos, que recebe um país profundamente desmoralizado e caótico nos planos político, militar, econômico e sobretudo ético. O caos gerado nesta presidência Bush, em que o poder de fato foi exercido não por um presidente, mas por corporações, políticos corruptos e fundamentalistas religiosos, abre espaço para mudanças profundas. Se as forças que estão se agregando em torno a Barack Obama terão dinamismo suficiente para gerar mudanças institucionais, é um ponto de interrogação, mas em todo caso é um potencial e uma oportunidade. Aliás a crise, ao cimentar a eleição de Obama, algo de positivo já trouxe.

A convergência das crises: um outro desenvolvimento, outras instituições

Tivemos portanto de imediato numerosas propostas de consertos do sistema, sem mexer na sua lógica. A intenção é claramente mostrar que no futuro será diferente, pois teremos governos severos e austeros que cobrarão resultados. Haverá postura e ética no sistema reformado. E os grupos responsáveis por tudo isto, que aliás aparecem tão pouco na mídia quando os dias são bons, passarão a se comportar de maneira socialmente responsável. As propostas surgem mesmo sem muita base institucional ou elaboração técnica, porque uma massa de poupadores no planeta está sendo atingida diretamente – da classe média para cima – pelo derretimento das suas poupanças e das suas esperanças de aposentadoria.28 E na medida em que o caos financeiro gerado pelos especuladores está atingindo os produtores efetivos de bens e serviços, é o povo em geral que passa a sofrer as consequências. Dentro do sistema, há uma clara consciência da volatilidade política da situação. Propostas, em consequência, surgem rapidamente. A sua implementação – a não ser os trilhões demandados pelos grandes grupos – obedecerá a outros ritmos.

O caos sistêmico gerado e a clara perda de governança econômica, frente ao desespero de uma imensa massa de pessoas prejudicadas, estão gerando um novo clima político. Estão se abrindo possibilidades de se colocar na mesa propostas mais amplas no sentido de um desenvolvimento que tenha pé e cabeça. Mais precisamente, gera-se um espaço para que surjam alternativas de desenvolvimento, e para que – não parece um objetivo exorbitante – o nosso próprio dinheiro sirva para fins úteis. Não se deve sonhar excessivamente – muito do espaço político gerado dependerá da profundidade da crise – e esta é uma incógnita. Mas é importante sim organizar alternativas sistêmicas, pois o que estamos sofrendo é uma crise estrutural de curto e médio prazos dentro de um quadro de crises mais amplas que se avizinham, particularmente nos planos social, climático, energético, alimentar, de água e outros.

As propostas que estão surgindo vêm de pessoas como Jeffrey Sachs, que propõe que o uso dos recursos financeiros seja formalmente vinculado à construção das Metas do Milênio. Stiglitz trabalha com uma visão de fazer os objetivos de qualidade de vida nortearem a alocação de recursos, e não apenas o chamado Produto Interno Bruto. Hazel Henderson resgata a importância da taxa Tobin, que cobraria um imposto sobre transações internacionais especulativas para financiar um desenvolvimento socialmente mais justo. Ignacy Sachs trabalha com a visão de uma convergência da crise financeira com a crise energética e a necessidade de repensarmos de forma sistêmica o nosso modelo de desenvolvimento. Não se trata aqui de um idealismo excessivo, e sim de uma apreciação fria dos nossos desafios.

O gráfico que apresentamos abaixo constitui um resumo de macro-tendências, num período histórico de 1750 até a atualidade. As escalas tiveram de ser compatibilizadas, e algumas das linhas representam processos para os quais temos cifras apenas mais recentes. Mas no conjunto, o gráfico permite juntar áreas tradicionalmente estudadas separadamente, comodemografia, clima, produção de carros, consumo de papel, apropriação da água e outros. A sinergia do processo torna-se óbvia, como se torna óbvia a dimensão dos desafios ambientais. O comentário do New Scientist é igualmente significativo:

The science tells us that if we are serious about saving the Earth, we must reshape our economy. This, of course, is economic heresy. Growth to most economists is as essential as the air we breathe: it is, they claim, the only force capable of lifting the poor out of poverty, feeding the world’s growing population, meeting the costs of rising public spending and stimulating technological development – not to mention funding increasingly expensive lifestyles. They see no limits to growth, ever. In recent weeks it has become clear just how terrified governments are of anything that threatens growth, as they pour billions of public money into a failing financial system. Amid the confusion, any challenge to the growth dogma needs to be looked at very carefully. This one is built on a long standing question: how do we square Earth’s finite resources with the fact that as the economy grows, the amount of natural resources needed to sustain that activity must grow too? It has taken all of human history for the economy to reach its current size. On current form, it will take just two decades to double. Fonte: New Scientist, 18 October 2008, p 40.

Estamos aqui entre pessoas que entenderam que se trata de um sistema que sem dúvida deixou de funcionar, e que está portanto em crise, mas que sobretudo é um sistema que quando funciona é inviável. As soluções têm de ser mais amplas. Esta visão mais ampla pode – e apenas pode – viabilizar mudanças mais profundas.

A crise financeira tem esta particularidade de ser pouco transparente em termos de dinâmicas e de soluções, para a população em geral. Não é muito viável se colocar na rua grandes manifestações relativas à mudança dos mecanismos de regulação do BIS de Basileia. A grande defesa do sistema absurdo de especulação que enfrentamos, é que pouquíssimas pessoas entendem o que se passa. Mas se os mecanismos são obscuros, os impactos são visíveis, e estes sim podem mobilizar.

A perda de empregos por parte de gente que estava cumprindo bem as suas funções produtivas, porque uns irresponsáveis gostam de ganhar dinheiro com poupança dos outros, gera indignação. A perda da base de sobrevivência de cerca de 300 milhões de pessoas no planeta que viviam de pesca artesanal, porque grandes empresas de pesca oceânica estão acabando com a vida nos mares, está gerando outra faixa de irritações políticas. O caos climático está trazendo as primeiras amostras do seu potencial, e está gerando outros desesperos, além de tomadas mais amplas de consciência. A contaminação da água doce por excessos de quimização, insuficiências clamorosas de saneamento, e esgotamento de lençóis freáticos, está levando a um conjunto de crises setoriais que envolvem desde a redução da pesca até à tragédia de 1,8 milhão de crianças que morrem anualmente por não ter acesso à água limpa, e à ameaça de regiões rurais que dependiam de uma segunda safra com irrigação.

Não é o caso aqui de fazer um elenco das nossas tragédias. Mas o fato é que, com um pouco de recuo, já não são crises setoriais, e representam sim uma crise mais ampla de governança local, nacional, regional e planetária. Há uma convergência de problemas que se avolumam, cuja sinergia os torna mais ameaçadores, e cuja raiz comum encontra-se ao fim e ao cabo no fato que os nossos mecanismos atuais de governança não são suficientes. Com a globalização, financeirização e oligopolização de grandes eixos de atividades econômicas, o mercado perde de forma acelerada as suas funções reguladoras. E as alternativas, particularmente a capacidade de planejamento e de intervenção organizada, foram desativadas.

Ignacy Sachs resume bem o dilema: que desenvolvimento queremos? E para este desenvolvimento, que Estado e que mecanismos de regulação são necessários? Não há como minimizar a dimensão dos desafios. Com 6,7 bilhões de habitantes – e 70 milhões a mais a cada ano – que buscam um consumo cada vez mais desenfreado, e manejam tecnologias cada vez mais poderosas, o nosso planeta mostra toda a sua fragilidade. A questão básica que se coloca para a reformulação do sistema de intermediação financeira é que é criminoso o desperdício das nossas poupanças e do potencial mundial de financiamento no cassino global, quando temos desafios sociais e ambientais desta dimensão e urgência, e que necessitam vitalmente de recursos.

O desperdício de recursos financeiros nas dinâmicas atuais é avassalador. Segundo as Nações Unidas, “medidos em termos de paridade de poder de compra do ano 2000, o custo de se liquidar a pobreza extrema – o montante necessário para puxar 1 bilhão de pessoas para cima da linha de pobreza de $1 por dia – é de $300 bilhões”.30 A realidade é que a utilidade marginal do dinheiro, em termos de sua capacidade de gerar qualidade de vida, decresce rapidamente quanto mais se eleva a renda. Em outros termos, quanto mais os recursos são orientados para a baixa renda, maior é a utilidade. Em termos prosáicos, rendem mais. Assegurar a renda mínima planetária faz todo sentido, é uma forma simples, com as tecnologias atuais, de multiplicar o valor real dos recursos. Como, além do mais, os recursos que chegam à base da pirâmide são transformados em demanda efetiva, e não em especulação, estimulando portanto a produção e o emprego, é a própria produtividade sistêmica dos recursos que aumenta. A solução que permite enfrentar simultâneamente os dramas sociais, os desafios ambientais e a racionalidade no uso de recursos econômicos está na resposta organizada às necessidades mais prementes da base da pirâmide. Estamos vivendo a era do desperdício. É tempo de orientar os recursos para os seus usos mais produtivos.

As alternativas não serão construídas da noite para o dia. Algumas medidas são óbvias, e já estão sendo amplamente discutidas: controlar os paraísos fiscais, taxar os movimentos especulativos, organizar sistemas de controle e regulação sobre os intermediários financeiros, voltar a separar as atividades propriamente bancárias dos investidores institucionais, criar sistemas locais de financiamento e assim por diante. Mas numa visão mais abrangente, temos de estar conscientes de que estamos enfrentando a construção de uma nova institucionalidade. O planeta não sobrevive – e muito menos o bípede curiosamente chamado de homo sapiens – sem amplos processos colaborativos, visão de longo prazo, planejamento e intervenções sistêmicas. O papel do Estado precisa ser resgatado, já não como socorro de iniciativas corporativas irresponsáveis, mas como articulador de um desenvolvimento mais justo e mais sustentável, e com forte participação da sociedade civil organizada.

Um outro mundo não é apenas possível, é necessário. O desafio para o mundo progressista é aproveitar as janelas de oportunidade que a crise financeira nos abre, para sistematizar uma visão alternativa. Temos de mostrar que uma outra gestão é possível.

Viável? Lamentavelmente, esta não é a questão. As medidas terão de ser tomadas. O aquecimento global, por exemplo, está se dando, e a opção de se queremos ou não enfrentá-lo não está na mesa, e sim o como. A crise financeira representa apenas uma oportunidade – e não uma garantia – para organizarmos uma convergência de forças da sociedade interessadas num desenvolvimento que tenha um mínimo de viabilidade econômica, de equilíbrio social e de sustentabilidade.