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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Caçadas de Pedrinho e parecer do CEN, a falsa polêmica

Por Sônia Aranha, em seu blog

Anda circulando pela imprensa que o Conselho Nacional de Educação quer banir as aventuras do Sítio do Pica-pau Amarelo das salas de aula.

Será que é isso mesmo que o CNE está pliteando ?

Antes de uma análise ligeira e uma conclusão precipitada é importante que leiamos o Parecer CNE/CEB n°.15/2010 (aguardando homologação pelo Ministério de Educação), relatado por Nilma Lino Gomes, cujo assunto “orientações para que a Secretaria de Educação do Distrito Federal se abstenha de utilizar material que não se coadune com as políticas públicas para uma educação antirracista” foi originado em 30 de junho de 2010, por uma denúncia de autoria do Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, mestrando da UNB cujos estudos concentram-se na área de Gênero, Raça/Etnia e Juventude, na linha de pesquisa em Educação das Relações Raciais.

Histórico:
o Sr. Antonio ao ler Caçadas de Pedrinho verificou que o conteúdo do livro é racista, sobretudo, no trato com a personagem Tia Nastácia. Diante desta constatação ele observou também que no livro (3ª edição, 1ª reimpressão, de 2009) já consta a nova ortografia de acordo com o Decreto nº 6.583/2008 e um texto de apresentação alertando os leitores sobre a época na qual o livro foi escrito em relação a lei que protege os animais silvestres. Concluiu que os editores tiveram cuidado de adaptar o livro (ortografia e problemas ambientais) ao novo contexto histórico, mas negligenciaram “em relação aos estereótipos raciais presentes na obra, mesmo que estejamos em um contexto no qual têm sido realizados uma série de estudos críticos que analisam o lugar do negro na literatura infantil, sobretudo, na obra de Monteiro Lobato e vivamos um momento de realização de políticas para a Educação das Relações Étnico-Raciais pelo MEC, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação.” (p.3 do Parecer) O solicitante , portanto, quer que a Secretaria de Educação do Distrito Federal se prive do uso do livro Caçada de Pedrinho, e de todos os demais que “contenham expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual na Educação Básica e na Educação Superior do Distrito Federal”.

De modo que, o Sr. Antonio Gomes da Costa Neto encaminhou denúncia para a Ouvidoria da SEPPIR – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República - mas antes de ser protocolado no Conselho Nacional de Educação, a denúncia passou pela chefia de gabinete do Ministro da Educação, pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC) e ainda pelo Conselho Estadual do Distrito Federal, além da Coordenação Geral de Material Didático do MEC.

Cada um desses órgãos ponderou a favor do solicitante sem, no entanto, deixar de ressaltar a importância da leitura da obra com a supervisão do professor que saberá discutir os processos históricos que geram o racismo no Brasil. Desta forma o processo chegou até o CNE.

O CNE à luz da legislação vigente: Constituição Federal de 1988, que prevê no seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível. Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), são orientadas legalmente, tanto no artigo 26 quanto no artigo 26A (alterado pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008), a implementarem nos currículos do Ensino Fundamental e no Ensino Médio o estudo das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígena, africana e européia, assim como a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

Diretrizes Curriculares Nacionais emanadas do Conselho Nacional de Educação, tais como: o Parecer CNE/CP nº 3/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1/2004, que instituem e regulamentam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, aprovado em 13 de maio de 2009, o qual apresenta atribuições elencadas por ente federativo, aos sistemas educacionais e instituições envolvidas, necessárias à implementação de uma educação adequada às relações étnico-raciais.

E à luz dos estudos recentes sobre a representação do negro na literatura infantil :Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica de Maria Cristina Soares. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, nº 1, p.77-89, janº/abr.2005; A figura do negro em Monteiro Lobato de Marisa Lajolo. Presença Pedagógica. vol. 4, nº 23, p. 23-31, set/out. 1998; de Zinda Maria Carvalho de Vasconcelos.

Considerou que “ as ponderações feitas pelo Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, conquanto cidadão e pesquisador das relações raciais, devem ser consideradas (…) coerentes . A partir delas, algumas ações deverão ser desencadeadas”

“a) a necessária indução de política pública pelo Governo do Distrito Federal junto às instituições do ensino superior – e aqui acrescenta-se, também, de Educação Básica – com vistas a formar professores que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais. (grifo meuleia mais no Parecer);


b) cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros indicados para o PNBE, de que os mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras clássicas ou contemporâneas com tal teor;


c) caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto e pela Ouvidoria da SEPPIR, a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante. (grifo meu– leia mais no Parecer aqui;

d) Secretaria de Educação do Distrito Federal deverá orientar as escolas a realizarem avaliação diagnóstica sobre a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, inserindo como um dos componentes desta avaliação a análise do acervo bibliográfico, literário e dos livros didáticos adotados pela escola, bem como das práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial dele decorrentes;

e) que tais ações sejam realizadas como cumprimento do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (grifo meu–leia mais no Parecer aqui)

“A literatura pode ser vista como uma das arenas mais sensíveis para que tomemos providências a fim de superar essa situação. Portanto, concordando com Marisa Lajolo (1998, p. 33) analisar a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre seu aquém e seu além”

O Parecer termina constatando a necessidade de “formulação de orientações mais específicas às escolas da Educação Básica e aos sistemas de ensino na implementação da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos. Estas deverão ser formuladas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Portanto, uma das atribuições do CNE deverá ser a elaboração das Diretrizes Operacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.”

O Parecer foi aprovado por unanimidade, mas ainda está aguardando homologação pelo Ministério de Educação.

Após o exposto, dá para ser leviano , como a imprensa tem sido ultimamente, e concluir que o Conselho Nacional de Educação banirá as aventuras do Sitio do Pica-Pau Amarelo ou especificamente o livro Caçadas de Pedrinho das salas de aula Não, não dá.
Vejam as manchetes:

· As Caçadas de Pedrinho censuradas pelo MEC – O Globo

· Livro de Lobato pode ser banido por racismo – O Dia- Online-Rio

· Caçadas de Pedrinho na Mira – Gazeta do Povo

· Reinações do CNE – Folha de São Paulo em editorial

Retomando:

O CNE acatou uma denúncia por ser pertinente e legal e prescreveu ações que atendem a legislação brasileira sem, no entanto, eliminar do acervo literário infantil de nossas escolas autor da importância de Monteiro Lobato.

O Parecer do CNE sobre o livro Caçadas de Pedrinho

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

INTERESSADA: Presidência da República/Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR)
UF: DF
ASSUNTO: Orientações para que a Secretaria de Educação do Distrito Federal se abstenha de utilizar material que não se coadune com as políticas públicas para uma educação
antirracista.
RELATORA: Nilma Lino Gomes
PROCESSO Nº: 23001.000097/2010-26
PARECER CNE/CEB Nº: 15/2010
PARECER CNE/CEB Nº: 1º/9/2010


I – RELATÓRIO

1. Histórico

Em 30 de junho de 2010, foi protocolado no Conselho Nacional de Educação (CNE), pela Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da (SEPPIR/PR), o Ofício nº 041761.2010-00, relativo ao Processo 00041.000379/2010-51.

Trata-se de processo formalizado por aquela Ouvidoria, mediante denúncia de autoria do Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, brasileiro, Técnico em Gestão Educacional da Secretaria do Estado da Educação do Distrito Federal, matrícula nº 68.586-0, atualmente lotado na EAPE, em razão de afastamento para estudos por interesse da Administração, no Mestrado em Educação, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (UnB), na área de concentração em Educação e Políticas Públicas: Gênero, Raça/Etnia e Juventude, na linha de pesquisa em Educação das Relações Raciais.

O solicitante encaminha denúncia no sentido de se abster a Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal de utilizar livros, material didático ou qualquer outra forma de expressão que, em tese, contenham expressões de prática de racismo cultural, institucional ou individual na Educação Básica e na Educação Superior do Distrito Federal. Por se tratar de questão envolvendo interesse público, a Ouvidoria da SEPPIR solicita que sejam procedidas consultas de estilo, bem assim enviadas as providências adequadas por parte do Conselho

Nacional de Educação.

Em 22 de julho de 2010, foi protocolado no CNE o Ofício nº 047217.2010-63, contendo cópia da resposta encaminhada pelo presidente do Conselho de Educação do Distrito Federal, Sr. Luiz Otávio da Justa Neves, ao Sr. Antônio Gomes Costa Neto referente ao mesmo processo administrativo. Considerando-se que a temática em questão envolve interesse público, a Ouvidoria da SEPPIR novamente solicitou que sejam procedidas, também, consultas de estilo, bem assim envidadas as providências adequadas por parte do Conselho Nacional de Educação.

2. Análise

O Ofício nº 041761.2010-00, de 30/6/2010, relativo ao processo 00041.000379/2010- 51, e encaminhado pela Ouvidoria da SEPPIR ao CNE, apresenta, no seu conjunto, resposta da chefia de gabinete do Ministro da Educação, pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), encaminhada por meio do Ofício nº 1552-2010-GAB/SECAD/MEC, de 4/6/2010, acompanhado pela Nota Técnica nº 044/2010, subscrita pela técnica Maria Auxiliadora Lopes e aprovada pelo Diretor de Educação para a Diversidade, Sr. Armênio Bello Schimdt.
De acordo com a Nota Técnica, “as colocações instadas pelo solicitante da consulta, Senhor Antônio, são coerentes”. A nota ainda adverte:

Sendo assim, é necessária a indução dessa política pública, pelo Governo do Distrito Federal, junto às instituições de ensino superior, com vistas a formarem professores que sejam capazes de lidar com esse tipo de situação no cotidiano escolar.

A obra CAÇADAS DE PEDRINHO só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Isso não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam ser esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre eles, o negro.

A postulação do requerente, que resultou em tal resposta, se deu em razão de utilização do livro intitulado Caçadas de Pedrinho de Monteiro Lobato, o qual se encontra como referência em escola do sistema de ensino particular do Distrito Federal e conforme se infere das informações catalogadas da obra em comento, trata-se de “edição (..) como base a publicação das Obras Completas de Monteiro Lobato da Editora Brasiliense de 1947”. De acordo com o Sr. Antônio Gomes Costa Neto, a sua denúncia baseia-se em análise da obra tão somente em relação à temática das relações étnico-raciais na escola, que se constitui na sua área de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Educação da UnB, já citado neste relatório.

O Sr. Antônio Gomes Costa Neto apresenta no processo análise da situação do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato, destacando que a edição referida (3ª edição, 1ª reimpressão, ano de 2009), contém 71 (setenta e uma) páginas com ilustrações de Pedro Borges e, inclusive, informação em sua capa de que a mesma já se mostra adaptada à nova ortografia da Língua Portuguesa (Decreto nº 6.583/2008). A crítica realizada pelo requerente foca de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas. Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado. A crítica feita pelo denunciante baseia-se na legislação antirracista brasileira, a partir da promulgação da Constituição de 1988, na legislação educacional em vigor e em estudos teóricos que discutem a necessidade e a importância do trabalho com uma literatura antirracista na escola superando a adoção de obras que fazem referência ao negro com estereótipos fortemente carregados de elementos racistas.

Segundo o requerente, a publicação em análise toma alguns cuidados em relação à contextualização da obra de Monteiro Lobato diante de alguns avanços e das mudanças sociais acontecidas ao longo da nossa história. Como exemplo, cita o cuidado da editora ao destacar na capa da publicação a adoção da nova ortografia da língua portuguesa, bem como de esclarecimentos em relação ao contexto em que a obra foi produzida e os atuais avanços políticos e sociais da preservação do meio ambiente constantes do texto de apresentação.

Nesta, Márcia Camargos e Valdimir Sacchetta apresentam a seguinte explicação transcrita do processo:

Caçadas de Pedrinho teve origem no livro A caçada da onça, escrito em 1924 por Monteiro Lobato. Mais tarde resolveu ampliar a história que chegou às livrarias em 1933 com o novo nome. Essa grande aventura da turma do Sitio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje. (p. 19).

Todavia, o mesmo cuidado tomado com a inserção de duas notas explicativas e de contextualização da obra não é adotado em relação aos estereótipos raciais presentes na obra, mesmo que estejamos em um contexto no qual têm sido realizados uma série de estudos críticos que analisam o lugar do negro na literatura infantil, sobretudo, na obra de Monteiro Lobato e vivamos um momento de realização de políticas para a Educação das Relações Étnico-Raciais pelo MEC, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação.

Em prosseguimento, foi encaminhado pela Ouvidoria da SEPPIR um segundo ofício ainda referente ao tema. Este último de nº 047217.2010-63 apresenta cópia da resposta encaminhada pelo presidente do Conselho de Educação do Distrito Federal, Sr. Luiz Otávio da Justa Neves, ao Sr. Antônio Gomes Costa Neto referente ao processo administrativo nº 00041.000379/2010-51 Ouvidoria/SEPPIR/PR.

Segundo a resposta, o processo foi encaminhado ao gabinete da Secretaria de Educação do Distrito Federal, com vistas à Subsecretaria de Gestão Pedagógica e Inclusão Educacional/SEDF, para conhecimento e correção de fluxo. Como forma de subsidiar o setor competente da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, a assessoria do referido Conselho efetuou pesquisas relativas ao teor da denúncia e anexou ao processo parecer pedagógico de especialistas referente à obra Caçadas de Pedrinho, objeto de questionamento.

Considerando-se que a análise e a avaliação de obras de literatura indicadas às escolas públicas brasileiras é de competência do Ministério da Educação, o ofício transcreve a informação enviada por e-mail, pela Coordenação Geral de Material Didático do MEC, como resposta à consulta feita pelo referido Conselho. De acordo com a Coordenação Geral, a avaliação das obras é feita por especialistas de maneira cuidadosa:

(...) naturalmente, como toda leitura escolar, o livro será lido sob a supervisão de um professor que, como leitor maduro, saberá mostrar que trechos isolados não compõem uma obra e que na literatura não é a soma das partes que fazem o todo. Também não deixará de aproveitar para discutir com os seus alunos os aspectos da realidade que a obra busca representar, articulando a leitura do livro com outras leituras e com o próprio cotidiano da escola, do bairro, da cidade e do país. São critérios de avaliação: a qualidade textual, a adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a qualidade gráfica e o potencial de leitura considerando o público-alvo.

Afirma ainda que:

...a obra Caçadas de Pedrinho, da Global Editora, faz parte da coleção selecionada para o Programa Nacional Biblioteca da Escola PNBE/2003 – Literatura em minha casa. Também foi selecionada para compor o acervo do PNBE/98 editada pela Editora Pallotti. Ambas as edições foram distribuídas às escolas públicas de ensino fundamental.

Diante do exposto, conclui-se que as discussões pedagógicas e políticas e as indagações apresentadas pelo requerente ao analisar o livro Caçadas de Pedrinho estão de acordo com o contexto atual do Estado brasileiro, o qual assume a política pública antirracista como uma política de Estado, baseada na Constituição Federal de 1988, que prevê no seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível. É nesse contexto que se encontram as instituições escolares públicas e privadas, as quais, de acordo com a Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), são orientadas legalmente, tanto no artigo 26 quanto no artigo 26A (alterado pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008), a implementarem nos currículos do Ensino Fundamental e no Ensino Médio o estudo das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígena, africana e européia, assim como a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.

Além disso, as instituições escolares públicas e particulares de todo o país já possuem, hoje, orientações e Diretrizes Curriculares Nacionais emanadas do Conselho Nacional de Educação, tais como: o Parecer CNE/CP nº 3/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1/2004, que instituem e regulamentam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. No caso dos sistemas de ensino e do próprio Ministério da Educação, estes são orientados pelo Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, aprovado em 13 de maio de 2009, o qual apresenta atribuições elencadas por ente federativo, aos sistemas educacionais e instituições envolvidas, necessárias à implementação de uma educação adequada às relações étnico-raciais.

Entende-se que a escolha do livro Caçadas de Pedrinho, dentre a vasta obra literária de Monteiro Lobato, como parte integrante do Programa Nacional Biblioteca da Escola segue a tradição de colocar os estudantes e professores em contato com obras consideradas clássicas da literatura infantil. Todavia, sendo coerentes com a própria Coordenação-Geral de Material Didático do MEC, quando consultada pelo Conselho de Educação do Distrito Federal sobre o tema da denúncia, deve-se considerar se a adoção de tal livro é coerente com os critérios de avaliação que orientam a escolha das obras: (...) a qualidade textual, a adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a qualidade gráfica e o potencial de leitura considerando o público-alvo.

Não se pode desconsiderar todo um conjunto de estudos e análises sobre a representação do negro na literatura infantil (Gouveia, 2005; Lajolo, 1998; Vasconcelos, 1982; entre outros)1, os quais vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos do seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização do negro.
____________________________________________________
GOUVEIA, Maria Cristina Soares de. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historiográfica. In: Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, nº 1, p.77-89, janº/abr.2005.

LAJOLO, Marisa. A figura do negro em Monteiro Lobato. In: Presença Pedagógica. vol. 4, nº 23, p. 23-31, set/out. 1998.

SOUZA, Ana Lucia, SOUSA, Andréia Lisboa e PIRES, Rosane de Almeida. Afro-literatura brasileira: o que é? Para quê? Como trabalhar? In: http://www.gruhbas.com.br/publicacoes, extraído da internet em 19-out-2005.

VASCONCELOS, Zinda Maria Carvalho de. O universo ideológico da obra infantil de Monteiro Lobato. São Paulo: Traço, 1982.


Portanto, as ponderações feitas pelo Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, conquanto cidadão e pesquisador das relações raciais, devem ser consideradas. A escola, a rede pública e privada de educação do Distrito Federal e a Secretaria de Educação devem considerar que as críticas aos estereótipos raciais presentes no livro Caçadas de Pedrinho e apontadas pelo requerente não se referem a trechos isolados. Antes, fazem parte da análise do todo, do contexto histórico e social da obra e vivido pelo autor, da ideologia racial, das representações negativas sobre a cultura popular, o negro e o universo afro-brasileiro presentes não só no livro Caçadas de Pedrinho, mas, também, em outras publicações de Monteiro Lobato.

Conforme alertam estudiosos do campo da literatura, é possível utilizar autores da literatura brasileira que tratam direta ou indiretamente da temática racial, porém, deve-se tomar cuidado com os textos que podem reforçar preconceitos, e que dão a possibilidade de interpretações negativas. É importante que o professor tenha criatividade para destacar os pontos interessantes do texto e trabalhar a intertextualidade (Souza, Sousa e Pires, 2005)2.

O alerta e a denúncia em relação à adoção desse livro e de outras obras que apresentem estereótipos raciais devem ser entendidos como parte do processo democrático e integra o debate público e o exercício do controle social da educação realizado pela comunidade escolar em relação à política e às práticas educacionais adotadas, quer seja nos níveis federal, estadual, municipal ou distrital.

Diante do exposto, e concordando com a Nota Técnica da SECAD, a denúncia do Sr. Antônio Gomes Costa Neto deve ser considerada coerente. A partir dela, algumas ações deverão ser desencadeadas:

a) a necessária indução de política pública pelo Governo do Distrito Federal junto às instituições do ensino superior – e aqui acrescenta-se, também, de Educação Básica – com vistas a formar professores que sejam capazes de lidar pedagogicamente e criticamente com o tipo de situação narrada pelo requerente, a saber, obras consideradas clássicas presentes na biblioteca das escolas que apresentem estereótipos raciais. Nesse caso, serão sujeitos dessas políticas não só os docentes da rede pública de ensino, mas, também, aqueles que atuam narede particular. É importante lembrar que, de acordo com o requerente, a obra literária em questão está sendo adotada por uma escola da rede particular de ensino e, de acordo com a Coordenação-Geral de Material Didático do MEC, o mesmo título faz parte do acervo distribuído pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola;

b) cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros indicados para o PNBE, de que os mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras clássicas ou contemporâneas com tal teor;

c) caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto e pela Ouvidoria da SEPPIR, a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante. Tal procedimento está de acordo com o Parecer CNE/CP nº 3/2004 e a Resolução CNE/CP nº 1/2004, que instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, as quais afirmam:

...os sistemas de ensino e os estabelecimentos da Educação Básica, nos níveis de Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos, Educação Superior, precisarão providenciar edição de livros e de materiais didáticos para diferentes níveis e modalidades de ensino que atendam ao disposto neste parecer, em cumprimento ao disposto no art. 26A da LDB, e para tanto, abordem a pluralidade cultural, e a diversidade étnico-racial da nação brasileira, corrijam distorções e equívocos em obras já publicadas sobre história, cultura, a identidade dos afrodescendentes, sob o incentivo e supervisão dos programas de difusão de livros educacionais do MEC – Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE). (p. 25);

d) a Secretaria de Educação do Distrito Federal deverá orientar as escolas a realizarem avaliação diagnóstica sobre a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, inserindo como um dos componentes desta avaliação a análise do acervo bibliográfico, literário e dos livros didáticos adotados pela escola, bem como das práticas pedagógicas voltadas para a diversidade étnico-racial dele decorrentes;

e) que tais ações sejam realizadas como cumprimento do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, o qual reza como uma das atribuições dos sistemas de ensino da educação brasileira a incorporação de conteúdos previstos nas referidas Diretrizes Curriculares em todos os níveis, etapas e modalidades de todos os sistemas de ensino. Portanto, deverão ser discutidas e realizadas em conjunto com o corpo docente e com a comunidade escolar.
A literatura pode ser vista como uma das arenas mais sensíveis para que tomemos providências a fim de superar essa situação. Portanto, concordando com Marisa Lajolo (1998, p. 33) analisar a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre seu aquém e seu além.

Diante do exposto, constata-se a necessidade de formulação de orientações mais específicas às escolas da Educação Básica e aos sistemas de ensino na implementação da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos.

Estas deverão ser formuladas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). Portanto, uma das atribuições do CNE deverá ser a elaboração das Diretrizes Operacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

II - VOTO DA RELATORA

Nos termos deste parecer, à vista do disposto no Parecer CNE/CP nº 3/2004 e na Resolução CNE/CP nº 1/2004, é essencial considerar o papel da escola no processo de educação e (re)educação das (e para as) relações raciais, a fim de superar o racismo, a discriminação e o preconceito racial. A despeito do importante caráter literário da obra de Monteiro Lobato, o qual não se pode negar, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa própria época, porém, ao mesmo tempo, somos responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que vivemos. Nesse sentido, a literatura em sintonia com o mundo não está fora dos conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza. São situações que estão presentes nos textos literários, pois estes fazem parte da vida real. A ficção não se constrói em um espaço social vazio.

Responda-se ao requerente, a saber, a Ouvidoria da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República (SEPPIR/PR), nos termos deste Parecer, com cópia ao denunciante, Sr. Antônio Gomes da Costa Neto, ao Conselho de Educação do Distrito Federal, à Secretaria de Educação do Distrito Federal, à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC) e à Coordenação Geral de Material Didático do MEC.

Brasília, (DF), 1º de setembro de 2010.

Conselheira Nilma Lino Gomes – Relatora

III – DECISÃO DA CÂMARA

A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto da Relatora.

Sala das Sessões, em 1º de setembro de 2010.

Conselheiro Francisco Aparecido Cordão – Presidente

Conselheiro Adeum Hilário Sauer – Vice-Presidente

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Vladimir Aras: sobre Mayra Petruso e Monteiro Lobato

Quase uma “Emília”

por Vladimir Aras, em seu blog

"Mas a partir do momento que aprendeu a andar, Emília tomou uma pílula e tagarelou, tagarelou a falar" (Baby Consuelo). Desenho: Google Imagens

A boneca de pano Emília é muito desaforada. “Esperta e atrevida”, diria Baby Consuelo, que compôs uma divertida canção infantil em sua homenagem. Mas, quem estudou a fundo a literatura de Monteiro Lobato (1882-1948) crê que Emília foi utilizada mais de uma vez para vocalizar o racismo de Lobato. É o caso de Marisa Lajolo. Em certo trecho do livro “Histórias de Tia Nastácia” (1937), vem este revelador diálogo, por ela pinçado:

“Pois cá comigo – disse Emília- só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto !”.

Por esta e outras, há poucos dias (out/2010), o Conselho Nacional de Educação (CNE), classificou de racista o livro “Caçadas de Pedrinho” (1933), do mesmo autor, e, por meio do Parecer CNE/CEB 15/2010, pediu que o MEC o enquadre num index livrorum prohibitorum para os fins do Programa Nacional de Biblioteca na Escola (PNBE). A Academia Brasileira de Letras (ABL) foi contra a rotulação. Na verdade, o CNE pretende impedir a inclusão de tal obra no PNBE ou, alternativamente, contextualizá-la para que não induza crianças ao racismo. Nesta hipótese, este objetivo seria alcançado mediante a inserção de nota explicativa do editor sobre os estereótipos raciais na literatura.

Muda o século, muda o meio, mas a mensagem discriminatória é a mesma. Do século XX para o XXI; dos livros para a Internet; de Lobato para Mayara Petruso. Quem? Mayara, vocês sabem, aquela estudante de Direito nascida em Bragança Paulista que disse no Twitter que “Nordestisto não é gente” (sic) e incitou: “Faça um favor a SP: mate um nordestino afogado!

Não satisfeita com sua “produção literária” no microblog, a Srta. Petruso publicou seus pensamentos também no Facebook: “Afunda Brasil. Dêem direito de voto pros nordestinos e afundem o país de quem trabalha pra sustentar os vagabundos que fazem filhos pra ganhar obolsa 171”. Somos todos uns estelionatários…

Essa jovem se referia à eleição de Dilma Roussef e aos programas sociais do governo federal. Os culpados pelas desgraças do Brasil seriam os nordestinos. Sem querer, Mayara Petruso tornou-se conhecida em todo o País. Sua tagarelice rendeu-lhe fama repentina, muitos tendo visto em suas falas explícitas manifestações de preconceito contra os brasileiros do Nordeste.

Aprendemos uma coisa com Mayara. Ao navegar na internet com a boca muito aberta, corre-se o risco de morrer afogado num oceano de críticas. Foi o que lhe sucedeu. A tuiteira@MayaraPetruso foi vítima de seu próprio desconhecimento. Uma mensagem na rede socialTwitter tem um efeito multiplicador que muitos ignoram. Um pequeno grupo de seguidores (os“followers”) pode multiplicar uma despretensiosa mensagem (“tuíte” para os familiarizados)milhares de vezes, difundindo-a de tal modo a ponto de transformá-la num trend topic (TT),isto é, num dos assuntos mais comentados na rede. Ela conseguiu! Foi matéria até no jornal The Telegraph, de Londres. Veja aqui. Depois disso, a moça teve de deletar seu avatar, sumiu do Facebook e seu contrato de estágio foi rescindido.

É uma pena que uma candidata a bacharel, – e potencialmente uma futura advogada, promotora, juíza ou delegada -, aparentemente tenha incorrido na legislação penal. Não a julgo. Todos são inocentes… Isto tudo vai ser apurado. Mas, teoricamente falando, quem age assim pode praticar o crime de discriminação previsto no art. 20, §2º, da Lei 7.716/89, uma das formas de racismo. Este crime é inafiançável e imprescritível, segundo o art. 5º, inciso XLII, da Constituição de 1988.

Conforme a lei de 1989, quem pratica discriminação de raça, cor, etnia, religião ou “procedência nacional” comete crime e sofre pena de 1 a 3 anos de reclusão, e multa. A sanção penal pode chegar a 5 anos de reclusão e multa, se a infração for cometida “por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza”.

Primeiro problema. O preconceito manifestado pela estudante atingiu os nordestinos de maneira geral. A ofensa não teve em mira uma raça, etnia, cor ou religião em particular. Quando o legislador referiu-se a “procedência nacional” pretendeu apenas reprimir a xenofobia em sentido estrito, ou seja, o preconceito contra estrangeiros (cidadãos de outras nações), ou também incluiu entre as possíveis vítimas os brasileiros de outras regiões da nossa própria nação? Se a resposta for restritiva, a conduta da estudante será atípica, não constituindo crime.

Segundo problema. A conduta poderia ser enquadrada no art. 140, §3º, do CP, que prevê a chamada injúria racial ou por preconceito? Não. O agir da universitária só poderia ser amoldado a esta norma, se o seu alvo fosse uma pessoa determinada. “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: Pena – reclusão de 1 a 3 anos, e multa”, com a causa de aumento de um terço, prevista no art. 141, inciso III, do CP.

Contudo, este dispositivo não é aplicável neste caso. Em out/2006, ao julgar o RHC 19.166/RJ, a 5ª Turma do STJ decidiu que “O crime do art. 20, da Lei nº 7.716/89, na modalidade de praticar ou incitar a discriminação ou preconceito de procedência nacional, não se confunde com o crime de injúria preconceituosa (art. 140, §3º, do CP). Este tutela a honra subjetiva da pessoa. Aquele, por sua vez, é um sentimento em relação a toda uma coletividade em razão de sua origem (nacionalidade)”.

Terceiro problema. O Twitter e o Facebook podem ser considerados “meios de comunicação social”? Ou podem ser tidos como “publicações de qualquer natureza”. Aparentemente a resposta é afirmativa e tem relevância para verificar a maior ou menor gravidade da conduta. Tanto pior será o crime quanto maior for sua “audiência”.

Quarto problema. A quem cabe julgar o suposto delito? Segundo o STJ, no caso de racismo pela Internet, a competência é da Justiça Federal, cabendo ao juízo do local de onde foram enviadas as manifestações racistas julgar a causa (STJ, 3ª Seção, CC 102.454/RJ, rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, julgado em 25/03/2009). A ser assim, o MPF em São Paulo deverá cuidar do caso. Contudo, há controvérsias. Qual o interesse federal atingido (art. 109, CF)? É de se esperar um pingue-pongue processual, entre a Justiça Federal e a Estadual.

Semelhanças e coincidências

Não conheço outras ideias de Mayara Petruso, mas todo mundo sabe que o genial Monteiro Lobato, o criador de Emília, tinha pretensões eugênicas; queria tornar o Brasil uma nação racialmente pura, pelo seu branqueamento progressivo. Em um trecho do seu romance de ficção científica, “O Choque das raças ou o presidente negro” (1926), um exercício de futurologia sobre o primeiro afroamericano a ser eleito presidente dos Estados Unidos no longínquo ano de 2228, Lobato pontifica: “A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável penhora de caráter”.

Numa carta ao médico paulista Renato Kehl (1889-1974), fundador do Comitê Central de Eugenismo e da Sociedade Eugênica de São Paulo, Lobato escreveu: “Renato. Tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo […] Precisamos lançar, vulgarizar essas idéias.A humanidade precisa de uma coisa só: poda. É como a vinha. Lobato

Coincidentemente, o escritor paulista defendeu algo semelhante ao que essa sua conterrânea enunciou em menos de 140 caracteres. Segundo o antropólogo Edgar Smaniotto, também em “O presidente negro”, Lobato sonha que no futuro as regiões Sul e Sudeste se uniriam ao Uruguai e à Argentina para formar a “grande República Branca do Paraná”, enquanto as regiões Norte e Nordeste seriam entregues aos índios, aos negros e aos mestiços.

Será que Mayara Petruso leu Lobato? “Reinações de Narizinho” ou “Memórias da Emília”, um desses aí. Sei não! Vai ver o Conselho Nacional de Educação tem razão. Daqui a pouco alguém vai querer colocar “O presidente negro” na lista negra. E nada disso é politicamente correto.

Enem da homofobia ao trabalho escravo

Acho impressionante as críticas que a mídia velha e algumas webcelebrities fazem ao ENEM sem nenhuma responsabilidade, sem nenhum compromisso.

Lendo a blogosfera sobre as temáticas do exame e ouvindo relatos de alunos que o prestaram vejo o quão distante a mídia grande e velha é da realidade.

Este ano até mesmo uma questão sobre a homofobia foi tema, veja aqui

Fiquem com o belíssimo texto do Leonardo Sakamoto, em seu blog

ENEM: uma camisa furada e um passarinho

O Enem usou um texto da Repórter Brasil (parte de uma explicação antiga sobre escravidão contemporânea), para fomentar a reflexão sobre o trabalho na construção da dignidade humana – tema da redação deste ano. Para ilustrar, publicou uma imagem também: a de um senhor de costas, de cabelos brancos, com a camisa esburacada pelo excesso de tempo e a falta de recursos, que fingia proteger suas costas de um escaldante sol amazônico.



Ainda lembro de quando bati aquela foto. Era dezembro de 2001 e eu estava fazendo uma reportagem sobre uma operação do governo federal que verificava denúncias de trabalho escravo em Eldorado dos Carajás, Sul do Pará. O nome não é estranho porque esse é o mesmo município onde cinco anos antes ocorrera o massacre de 19 trabalhadores rurais sem-terra em confronto com a polícia militar. Garimpeiro, passava uma parte do ano remexendo a terra e outra roçando-a, para limpar o pasto do patrão – desenvolvendo o Estado na pata do boi, como gostam de dizer por lá. Assim como ele, havia vários na região. Cada um com a mesma história.

“A água parecia suco de abacaxi, de tão suja, grossa e cheia de bichos.” / “Se não tivesse me defendido com a mão, o golpe [de facão, do capataz da fazenda] tinha pegado no pescoço” / “Todo mundo viu, mas não pôde fazer nada. Macaco sem rabo não pula de um galho para outro.” / “Em Serra Pelada é melhor [do que ma fazenda] porque a gente tem nosso barraquinho.” / “Com terra para plantar não teria ido embora. Além disso, pessoa bem estudada não precisa sair, arruma emprego. Os outros têm de ir para o machado mesmo”. E depois dizem que dezembro é mês de festa.

De lá para cá, a legislação foi alterada e o conceito sofreu mudanças. O cerceamento de liberdade não precisa mais estar presente para ser configurada uma situação análoga à de escravo. Há casos em que o trabalhador está submetido a condições tão degradantes de serviço ou é levado aos limites físicos de sua vida que, alijado de sua dignidade, acaba transformado em coisa, mero instrumento descartável. Nesse momento, mesmo que tenha liberdade de sair e possa receber alguma remuneração, isso acaba não fazendo diferença. Muita gente reclama, diz que é injusto com o empregador, que condições de trabalho obscenas e desumanas são coisa normal. Querem ver correntes prendendo mãos ou similares para ter o crime atestado. Mal sabem eles que as amarras que não existem são aquelas que mais apertam.

Toda essa discussão, na verdade, é uma grande confusão que não passava pela lógica simples e direta do senhor de camisa rasgada e dos seus amigos que ganharam a liberdade por aqueles dias. Um dos resgatados, Raimundo Nonato, após nove meses sem receber, me mostrou uma gaiola de madeira vazia, pendurada em uma árvore ao lado do apertado alojamento na fazenda. Contou que um rapaz havia capturado um passarinho na roça.

- Um galo-de-campina. Mas ele não cantava. Quando está solto, ele canta. Mas passarinho preso não canta, não – acrescentou Joel Mourão Costa, três meses sem salário.- Se está preso, não tem liberdade. Todos têm de viver livres – retrucou, na hora, Nonato.

E, depois de uma rápida deliberação entre os trabalhadores, abriram a gaiola e o passarinho voou para longe, bem longe.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Heloísa Pires e a polêmica MEC versus Lobato

Lobato e a caçada ao racismo verde-amarelo


Por: Heloisa Pires Lima* no Cicla Brasília



"A polêmica em torno das personagens lobatianas, após o parecer emitido pelo Conselho Nacional de Educação (set 2010), ganha qualidade se considerar os vários ângulos dessas construções. Primeiramente, o contexto original criador dos enredos. O escritor nascido em 1882 cresceu numa fazenda de café do Vale do Paraíba, na província de Taubaté. Quando moço é para lá que voltaria, durante os estudos na faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital.

O guri branco vivenciou as dinâmicas escravistas pouco alteradas na República que engatinhava. Nesse tempo, esteve exposto aos argumentos racialistas que ganharam status de ciência para a vida intelectual e artística da qual se tornou freqüentador. Suas biografias não deixam de mencionar a importância do pensamento eugenista de Le Bon, como lentes para ele rever o ambiente rural onde encontra, inclusive, seus Jeca Tatus. E foi como colaborador da Revista do Brasil que Lobato levou o empurrão do folclore, das lendas, dos mitos populares para suas aventuras junto ao setor editorial.

Ele descobre uma fonte rica de temas que afirmará como particularidade nacional frente ao incômodo com a excessiva presença de figuras da mitologia européia oferecidas às crianças do país.

E é para o Saci, que em 1917, ele desenvolve um questionário e um concurso de pintura como tarefa em busca de uma nova mentalidade nacional, nos seus termos. Mais tarde transformado em livro, lá estarão o tio Barnabé dando voz às lendas de origem africana que, segundo ele, povoavam o imaginário popular.

Da mesma forma, a tia Nastácia com seu inventário culinário. Por um lado, a condução de Lobato dá status e integra personagens negros que a sociedade excluía deixando uma peculiar presença negra no universo da literatura infanto-juvenil. O mote também é uma crítica à literatura estrangeira e à produção elitista disponibilizada, na época. Por outro, o material é testemunha ocular de uma espécie de abordagem na arquitetura de figuras negras e o lugar onde foram posicionadas na lógica interna das narrativas. As imagens dos tipos ficcionais, sempre carregadas de sinais, embutem modelos de humanidade que por sua vez, constroem identidades sociais.

O ponto de vista de Lobato pode ser acompanhado na redação das histórias que ele assina. Mas também nos desenhos que as interpretam e que acabaram selecionadas para as publicações produzidas em seus poços literários e que continuam a abastecer bibliotecas, videotecas, acervos de brinquedos e brincadeiras no país. A perspectiva dos ilustradores dos livros de Lobato facilita observar o tema racismo, de modo mais distanciado. Ou seja, é uma estratégia para diminuir a resistência característica para a questão em obras consagradas. O treino minucioso pode começar delimitando a postura corporal das personagens, a expressão facial, o tratamento na cor da pele, o relacionamento entre demais figuras em cena, a qualificação atribuída ao cenário das quais participam. Estes, entre outros, são fios a compor o ponto de vista que o analista quer conhecer.

Por exemplo, o assunto tratado em Narizinho Arrebitado (1920) aparece implicado às noções de saberes, o erudito e o popular, encarnados em duas mulheres representadas pelo traço de Voltolino (figura 1, de cima para baixo). Desta primeira edição dá até para afirmar a existência de uma relativa equanimidade de tratamento para ambas o que pode ser observado na forma como ele vestiu as mulheres, moldou a expressão da face, a hierarquia na estatura, a composição que comunique afetividade. Isto se acompanharmos o que ocorreu, posteriormente, com interpretações de alguns outros ilustradores da mesma redação.


A Nastácia pode se tornar monstrenga ou suja como nas seguintes versões (figura 4 - Villin, 1934 e figura 6 - André Blanc, 1955). Na figura 5, elaborada por Manoel Victor Filho em Trabalhos de Hércules (1972), a estrutura do rosto da mulher negra aparece co-relacionada com a do porco Rabicó. Contraposta aos demais personagens insuflados de humanidade, sua Nastácia recebe uma expressão facial mais idiotizada a acompanhar a bestialização a ela imposta. Portanto, nessas páginas nem mesmo como modelo de humanidade ela é oferecida ao leitor. O que a desumaniza também a coloca mais próxima da chacota. Se o resultado perfila a hierarquia social entre os personagens, a vertente negra africana que ela representa, também estará sendo desqualificada e ridicularizada.


O narrador da visualidade julga e desvaloriza a origem social com o tratamento que dá ao tema. Estas breves ocorrências relacionadas à Lobato seriam suficientes para ponderar acerca das imagens que circularam para leitores juvenis d´outros tempos. Os sinais positivos ou negativos que acompanham as ilustrações fizeram parte de uma rede simbólica que atingiu diretamente a percepção não apenas das pessoas reais de outrora. Tais identidades espelhadas nessa descendência repercutem até os dias atuais. Oras o passado! O que foi atrás vivenciado desapareceu ou permanece em algum lugar do imaginário social? Lá, nem sempre tão lá atrás assim, as formas lúdicas sustentaram criadouros de correntes de pensamento a identificar parcelas da população.


O aparato simbólico para a origem européia que valoriza positivamente os traços fenotípicos não deixa de informar como contraponto, uma origem africana. A composição foi uma arma a fomentar estigmas. A representação do Saci lobatiano pode ser explorada para demonstrar os vínculos entre a resposta particular numa autoria e o circuito cultural que a gerou. O detalhe da primeira capa do livro O Saci pererê: resultado de um inquérito, com ilustrações internas de Voltolino, expõe a interpretação do desenhista para o qual poderiam caber inúmeras leituras.

Talvez o barrete com o qual vestiu a cabeça da figurinha preta pudesse estar associado aos ícones revolucionários radicais europeus ou ao trickster africano símbolo de dinamismos e liberdade irrestrita. É mais provável que um brasileirinho lesse a demonização da figura recolhida do folclore. Lá estão os chifres e a ferocidade estampada no rosto assustador com dentes vampirescos. O próprio Lobato assina a obra com o pseudônimo de Um Demonólogo Amado. O discurso visual com o Saci poderia ter a intenção de resgate cultural (figuras 2 e 3 - capa assinada por J. Wash Rodrigues, 1918). No entanto, hoje, o saci preto e imbricado às idéias cristãs de maldade é material que promove desqualificações culturais associativos à origem negra. Cada elemento visual ou seu conjunto sintetiza e emaranha crenças no momento de sua criação. Todavia, não há leitura única na recepção da mensagem.


Se num contexto a capa pode significar ruptura e avanço, noutro pode facilitar desvalorização e conservadorismo. E haveria diferença ou tanto faz a capa ser percebida por um adulto ou uma criança a partir da simples exposição do livro numa prateleira? Seria possível levantar fatores para como cada qual processaria a instauração do recado valorativo e suas conseqüências de ordem afetiva nessa comunicação? Portanto, toda a busca de compreensão da obra infantil ou juvenil como espelho para elaborações de ordem emocional presume o fato de ali haver um espaço para o leitor reconhecer a si mesmo ou o outro.


O apreço auxilia na promoção da auto-estima e a dos afetos a elaborar alteridades. Por isso há de haver sensibilidade para considerar o poder de difusão de preconceitos e estereotipias que uma imagem pode conter. Para a habilidade do analista, se já foi lançada a hipótese do leitor das imagens ser uma criança, acrescentemos a circunstância social de ser ela uma criança negra em processo de elaborar sua origem numa escola da época de Lobato. A via literária estaria fornecendo elementos para uma auto- percepção e de suas raízes negras. Além do mais, esse leitor negro teria que lidar com outras crianças, que o perceberiam com o auxílio de uma biblioteca que o constrangeria.


A exposição a tamanha violência, nesse caso simbólica, faz saltar aos olhos o destrato hipotético de um preceito educacional e de alto valor nos nossos dias: a eliminação de constrangimentos para o pleno desenvolvimento das personalidades em formação. Os preceitos educacionais atuais responsabilizariam o dos velhos tempos pelo incômodo imposto ao educando. As Nastácias desqualificadas lá atrás trazem para cá nuanças que dizem respeito, às idéias associadas de superioridade e inferioridade racial.


A figura feminina boçalizada e o saci demonizado serviriam perfeitamente para qualquer manual de nossos tempos que discorresse a respeito de como se formam os pensamentos xenófobos. O mesmo exercício de leitura dos trechos visuais renderia caso o alvo fosse as imagens construídas por meio da escrita de Lobato. Todavia, vale deslocar a ênfase nos textos pioneiros do autor. Para não correr o risco de etiquetar toda a obra por um de seus aspectos, mais importante é fazer notar o leitor inserido numa e outra sociedade. É o ambiente social que promove ou impede a circulação de fórmulas racistas para a geração a ser formada. Por sua vez, um público com pouca maturidade. O jovem exposto à agressão é quem merece destaque.


Pouca idade e poucos elementos para se defender do ataque violento. É ao adulto e à sociedade madura a quem cabe a proteção e a responsabilidade frente a circulação desatenta do ataque físico ou moral da pessoa jovem. O treino de perceber a particularidade de um jovenzinho negro submetido à agressões inclui a singular via literária. A questão atinge em cheio o setor editorial com a demanda vinda dos meios educacionais, sobretudo a partir da conquista histórica da Lei 10639/2003 que integra o tema racismo no debate pedagógico maior. Pois embora algumas teorias racistas tenham sido banidas do mundo adulto e refutadas por acadêmicos maduros, veja que podem adquirir, nos aparentemente ingênuos formatos de livro infantis, canais para fixar preconceitos, estimular estereotipias e evocar atitudes discriminatórias.


Todo projeto editorial tem seus propósitos. Quando relançam obras do passado surge a pergunta implacável: O que significa reaplicá-las hoje para um público juvenil? Se mostrar alheio ao fato de algumas obras se aliarem à condenação da religiosidade de matriz africana, ou à facilitação de apelidos promovidos pelos compêndios é reificar a invisibilidade, por que não dizer a irrelevância da recepção racista para o leitor negro.


Caso propuséssemos ao adulto de hoje que buscasse a memória de personagens que habitaram a literatura a qual teve acesso, aqueles que preencheram afetivamente, sua infância seria uma chave para dimensionar o que ocorre com a criança de hoje. Da mesma forma que esse percurso pessoal, a sociedade acumula repertórios assentados como camadas de um imaginário coletivo a intervir na identidade histórica que esta imagina para si. Vale alertar, ainda, para a desproporção entre referências oferecidas ao leitor numa e noutra origem continental, seja asiática, indígena americana, do oriente, dos pólos da terra oferecidos nas antigas bibliotecas dos brasileiros.


Sobretudo ao cotejarmos com universos temáticos que esbanjam a origem européia. Isto quer dizer que a presença negra nas foi rara e quando ocorreu foi marcada por abordagens ficcionais pouco positivas para elaboração de identidades acerca da parcela negra da população real. Perceber o racismo verde-amarelo em sua dimensão editorial talvez seja a oportunidade que a polêmica em torno de Lobato ofereça para escaparmos de uma armadilha reflexiva.


Evocar a época da produção não pode se tornar autorização para fecharmos os olhos às agressões que ela possa conter. Se eliminar o passado é inviável enquanto historia do livro no país, também o é reconhecer a estrutura criativa dos textos. Todavia, a visão parcial elege as exaltações que o mundo literário confere ao consagrado Lobato e promove uma espécie de impedimento para a compreensão da obra em sua totalidade. E nega a presença de estereótipos. Ao invés do temor, de transformar em tabu qualquer análise, voltar aos Lobatos do passado pode propiciar ângulos inéditos a enriquecer a relação atual com essa literatura.


Significa apostar no dinamismo da leitura que uma obra propicia e viabilizar a crítica sadia. Se realidade e representação são faces de uma mesma moeda, se uma influencia a outra e vice-versa ao contrário, poderia dizer uma personagem desse cenário, o fato é que há uma demanda educacional interlocutora da produção editorial. Se o diagnóstico sobre o excesso de representações pejorativas desqualificando insistentemente as referências à população negra no Brasil o que fazer quando estas voltam ao futuro? Como entraremos nessa aventura? Caçadas de Pedrinho (original de1933) é o título analisado com a responsabilidade que o Conselho Nacional de Educação chama para si.


A relatora Nilma Gomes perfila a questão do racismo na Educação Nacional para o parecer que atrela uma série de medidas cautelares para a circulação da obra. O objetivo de promover uma educação anti-racista prevê a formação do educador para a introdução de tais conteúdos. Há de se aplaudir a iniciativa. Pois quando o inquestionável, aquilo que sempre passou despercebido cessa de sê-lo, quando a agressão deixa de ser naturalizada e a negação perde força para assumir enfrentamentos temos uma pista de saúde social e uma chance para conviver com a arte de outros tempos. Pois um dos limites à liberdade irrestrita dessa circulação é o racismo dirigido à tenra idade. A caça é aos racismos ignorados e não à obra ou seu autor. O desafio está colocado para a sociedade. E sobretudo, aos circuitos editoriais que terão que encontrar formas de respondê-lo".


*Heloísa Pires Lima é Antropóloga doutora titulada pela USP, criou e foi editora da Selo Negro Edições e é autora, entre outros, de Histórias da Preta (1998, Cia das letrinhas) e Lendas da África Moderna (2010, Elementar).



terça-feira, 2 de novembro de 2010

Sobre intolerâncias, Mec e Monteiro Lobato

O equivocado ataque ao MEC por causa do Monteiro Lobato

Por Sérgio Leo, em seu blog

TIA NASTACIA NO CEU.JPG

Foi tópico de sucesso no Twitter: "MEC veta livro de Monteiro Lobato". E centenas de tweets indignados falavam em obscurantismo, babaquice políticamente correta, exagero.

Suspeito que grande parte sequer leu as obras de Lobato; conheceu o gênio pela adaptação do Sítio do Picapau Amarelo na TV. Perderam as delciiosas ilustrações de André Le Blanc, o texto maravilhoso do autor e... seu mórbido racismo. Na adaptação da obra para a TV, caparam o texto de Lobato para eliminar o racismo (e não só isso), e ninguém reclamou.

O que o MEC diz: o livro distribuído tem até um prefácio alertando para as impropriedades ambientais de Pedrinho, mas nada para alertar sobre o racismo. Só deve ir para as escolas se ese tema for tratado com a atenção que merece. Alguém contra isso por aí? Caramba, essa obra é para educar as crianças!

(Vi depois, claro, os críticos de sempre aproveitando o escândalo para apontar "jequice" no governo. É hilariante ver gente citando o Jeca Tatu de Lobato, outro fruto do preconceito do autor. Esse, Lobato corrigiu ainda em vida: num texto posterior ao Urupês, pede desculpas ao jeca, porque seu texto original e preconceituoso o culpava pelo atraso e, depois, o escritor descobnriu que sua aparente indolência era doença, resultado do péssimo sistema de saúde pública)

Do racismo, falei no post anterior. Vamos falar de outra coisa que mencionaram sem ler, o parecer do MEC. Muito lidas foram as matérias de jornal, que simplificaram ao ponto de desfigurar o parecer. Ele recomendou não incluir o livro "Caçadas de Pedrinho" entre as obras distribuídas à rede escolar, ou, distribuindo, acrescentar textos chamando atenção para o racismo embutido no texto, explicável pelas circunstãncias da época em que foi escrito.

Não é um arrazoado medieval o parecer do MEC, pelo contrário. Está repleto de referências elogiosas ao Lobato, e há comentários sobre como não se trata de banir seus livros das bibliotecas. Diz a nota técnica, segundo o parecer do MEC:

"A obra CAÇADAS DE PEDRINHO só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Isso não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam ser esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre eles, o negro."

Mas tem mais.

O parecer nota, ainda, que a edição bem cuidada do livro incluiu até uma introdução para chamar atenção sobre os avanços da legislação ambiental _ que já não permitiria Pedrinho nem seus fãs sairem caçando animais silvestres por aí. Mas sobre os estereótipos preconceituosos do negro e da África, não há nada. Está no livro:

"Caçadas de Pedrinho teve origem no livro A caçada da onça, escrito em 1924 por Monteiro Lobato. Mais tarde resolveu ampliar a história que chegou às livrarias em 1933 com o novo nome. Essa grande aventura da turma do Sitio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje. (p. 19)."

Nota o parecer:

Todavia, o mesmo cuidado tomado com a inserção de duas notas explicativas e de contextualização da obra não é adotado em relação aos estereótipos raciais presentes na obra, mesmo que estejamos em um contexto no qual têm sido realizados uma série de estudos críticos que analisam o lugar do negro na literatura infantil, sobretudo, na obra de Monteiro Lobato e vivamos um momento de realização de políticas para a Educação das Relações Étnico-Raciais pelo MEC, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação."

Segue o texto:









"Não se pode desconsiderar todo um conjunto de estudos e análises sobre a representação do negro na literatura infantil (Gouveia, 2005; Lajolo, 1998; Vasconcelos, 1982; entre outros)1, os quais vêm apontando como as obras literárias e seus autores são produtos do seu próprio tempo e, dessa forma, podem apresentar por meio da narrativa, das personagens e das ilustrações representações e ideologias que, se não forem trabalhadas de maneira crítica pela escola e pelas políticas públicas, acabam por reforçar lugares de subalternização do negro."

A questão foi levantada por um pesquisador da UnB que trata da temática racista em obras literárias. Não duvido que haja exageros na crítica do pesqusiador; reclamar contra o tratamento dado aos "animais da África" nos textos é ir um pouco além do combate ao racismo. Mas o fato é que há, sim, racismo nas obras de Lobato, e o drama do MEC é como lidar com isso. Não se pode simplesmente derramar o racismo de um fazendeiro paulistano genial dos anos 30 sobre a cabeça das crianças negras, brancas e pardas do século XXI.

Pela lei Afosno Arinos, aliás, se Emília dissesse as barbaridades que diz dos "beiços" e da feiúra de "preta" de tia Nastácia, ela iria para a cadeia de Taubaté com a velocidade de quem cheira pó de pirlimpimpim. (Aliás, o bom senso impediu até hoje que se perseguissem os livros de Lobato como incentivadores do uso da droga. mas ninguém reclamou também que a versão da TV tenha expurgado o pó mágico que dá charme à narrativa lobatiana: não tem crianças cheirando nada para viajar nas Reinações de Narizinho televisivas).

Mais parecer:
"
b) cabe à Coordenação-Geral de Material Didático do MEC cumprir com os critérios por ela mesma estabelecidos na avaliação dos livros indicados para o PNBE, de que os mesmos primem pela ausência de preconceitos, estereótipos, não selecionando obras clássicas ou contemporâneas com tal teor;

c) caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados pelo Sr. Antônio Gomes Costa Neto e pela Ouvidoria da SEPPIR, a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante."

E, ainda:

"A literatura pode ser vista como uma das arenas mais sensíveis para que tomemos providências a fim de superar essa situação. Portanto, concordando com Marisa Lajolo (1998, p. 33) analisar a representação do negro na obra de Monteiro Lobato, além de contribuir para um conhecimento maior deste grande escritor brasileiro, pode renovar os olhares com que se olham os sempre delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, na página literária, fica entre seu aquém e seu além.

Diante do exposto, constata-se a necessidade de formulação de orientações mais específicas às escolas da Educação Básica e aos sistemas de ensino na implementação da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos."

OK, o texto do MEC mereceria surra com vara de marmelo de tia Nastácia; "olhares com que se olham" e "laços que enlaçam" são de amargar. Mas vejamos o voto da relatora Nilma Lino Gomes:
"Nos termos deste parecer, à vista do disposto no Parecer CNE/CP nº 3/2004 e na Resolução CNE/CP nº 1/2004, é essencial considerar o papel da escola no processo deeducação e (re)educação das (e para as) relações raciais, a fim de superar o racismo, adiscriminação e o preconceito racial. A despeito do importante caráter literário da obra de Monteiro Lobato, o qual não se pode negar, é necessário considerar que somos sujeitos da nossa própria época, porém, ao mesmo tempo, somos responsáveis pelos desdobramentos e efeitos das opções e orientações políticas, pedagógicas e literárias assumidas no contexto em que vivemos.

Nesse sentido, a literatura em sintonia com o mundo não está fora dos conflitos, das tensões e das hierarquias sociais e raciais nas quais o trato à diversidade se realiza. São situações que estão presentes nos textos literários, pois estes fazem parte da vida real. A ficção não se constrói em um espaço social vazio."

Em resumo, um pesquisador sensibilizado pela luta anti-racista denunciou o livro como contrário ás diretrizes estabelecidas pelos professores para o livro didático, os especialisats do MEC analisaram a denúncia e tiveram de admitir que a obra tem elementos racistas e concluíram que, do jeito que está, não deve constar da lista de distribuição, a menos que tenha uma orientação ao professor e aos pequenos leitores, mostrando que lá em 1933 havia mais racismo no Brasil e que não se deve tomar como padrão de conduta e valor o tipo de referência depreciativa que Lobato faz a negros.

Quem ainda discorda disso, tente, só por alguns minutos, imaginar-se negro, com um filho negro, ouvindo na escola seus herois personagens dizerem que bonito mesmo é só louro de olhos azuis e cabelos cacheados, e que os negros podem até ter uma bela sintonia com a sabedoria popular, mas a ciência está com a branca Dona Benta e seus netos brancos. Ah, e aqueles grossos lábios negros que você tem não são bem lábios, são beiços. Como os do gado.

A leitura de Lobato não fará de ninguém um racista. Mas seu racismo lido sem crítica em sala de aula não seria nada educativo.

(P.S. NO Globo, um "especialista" em Lobato reclama: "na época dele er diferente; estão lendo o Lobato com olhos de 2010". É, compadre, são esses os olhos das crianças que recebem os livros didáticos distribuídos pelo MEC. Abra o seu)