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terça-feira, 26 de maio de 2009

O MONOPÓLIO ESTATAL DO PETRÓLEO NO BRASIL

A CRIAÇÃO DA PETROBRÁS

Por Wladmir Tadeu Silveira Coelho*


O Estatuto do Petróleo


As ideologias constitucionalmente adotadas nas constituições de 1934, 1937 e 1946 possibilitaram ao Estado brasileiro a execução de políticas econômicas que incluíssem a criação de empresas estatais e o monopólio de qualquer setor da economia. No caso específico da Constituição de 1946 esta possibilidade - presente em seu artigo 146 - somava-se ao poder do Estado em oferecer concessões para exploração mineral (artigo 153) a empresas constituídas no país.

Utilizando este elemento ideológico presente na Constituição o presidente Eurico Dutra envia ao Congresso Nacional, em 1947, o anteprojeto do Estatuto do Petróleo. A leitura do citado documento permite observar a preocupação do governo em manter a política econômica do petróleo nas mesmas bases observadas a partir do final do Estado Novo, ou seja, garantir a presença do capital estrangeiro na exploração do petróleo e regulamentar o abastecimento interno.

Como justificativa para ampliação da abertura do setor petrolífero ao capital internacional o governo Dutra utiliza como argumento a necessidade de "colaboração" externa para o desenvolvimento deste ramo da indústria no Brasil cuja ação estaria impedida em função da legislação instituida a partir da Constituição de 1937.

Desta forma em mensagem que acompanhava o Estatatuto do Petróleo afirmava o ex-ministro da Guerra do Estado Novo:

É fora de dúvida que a legislação ainda em vigor, resultante dos princípios exageradamente contrários ao capital estrangeiro contidos na Lei Magna de 1937, tem sido o grande obstáculo a antepor-se ao desenvolvimento da indústria de refinados no Brasil, por isso que não permite a colaboração desse capital em atividade dessa natureza. Indispensável se torna a remoção de embaraços legais que até aqui têm impossibilitado a conjugação de capitais e esforços de brasileiros e estrangeiros, particularmente se atentarmos no espiritoo liberal da Constituição de 1946 (DUTRA apud VICTOR 1991).

O argumento da necessidade de liberalização da exploração petrolífera no Brasil - com destaque para as atividades relacionadas ao refino - coincidem com a modificação da prática das empresas estadunidenses que, diante do aumento da oferta e facilidades de transporte, optam pela criação de refinarias nas áreas produtoras como forma de baratear o combustível. Orell (1973).

O governo brasileiro busca, deste modo, adequar a legislação ao cenário econômico do pós-guerra associando ao "espirito liberal" as garantias intervencionistas necessárias á sua concretização. Assim utilizando o artigo 146 da Constituição determina no texto do anteprojeto do Estatuto do Petróleo em seu artigo 60, que:

A União poderá construir e manter em funcionamento usinas para refinação de petróleo e tratamento de gases naturais, bem como redes de condutos e frotas de navios-tanques para o transporte de petróleo e derivados, seja por administração direta ou contratada ou por via de concessões na forma da lei (SMITH 1978).

O envio ao Congresso Nacional de um anteprojeto, cuja principal característica seria a manutenção de uma política econômica do petróleo, marcada pela abertura ao capital externo - ficando o Estado como elemento regulamentador do abastecimento- apresenta como efeito a reação dos setores nacionalistas que passam a defender uma política econômica amparada no principio do monopólio estatal.


A Campanha do Petróleo é Nosso: O nacionalismo de Arthur Bernardes


Encontraremos na figura do Deputado Arthur Bernardes uma das primeiras vozes a defender, no Congresso Nacional, a instituição do monopólio estatal do petróleo. Através de seus discursos Bernardes incluía, na pauta do legislativo, o debate em torno de um modelo de política energética ainda não experimentado no Brasil, além de abrir a Câmara dos Deputados para entidades - em principio distanciadas umas das outras - como União Nacional dos Estudantes (UNE), grupos de militares nacionalistas, associações de empresários dentre outros.

A postura nacionalista do ex-presidente da república acabou por conduzi-lo à condição de principal opositor , na Câmara dos Deputados, ao anteprojeto do Estatuto do Petróleo afirmando:

Todos os brasileiros devem tomar vivo interesse pelo destino que se possa dar ao nosso petróleo, para que não se consinta que ele caia, total ou parcialmente, em mãos de trustes estrangeiros, através de 'testas de ferro' que os mesmos possuem em toda parte, inclusive no Brasil (BERNARDES apud VICTOR 1991).

Ao realizar esta afirmativa o deputado republicano proporcionava um entendimento do conflito de interesses existente no período quando observa-se - por parte dos trustes internacionais do petróleo - a elaboração de meios que possibilitavam a continuidade do controle deste setor da economia, mesmo com a existência de uma legislação com apelo "nacionalista".

No legislativo brasileiro estes meios ficam evidentes considerando-se a influência que exercia - principalmente - a Standard Oil sobre grande parte dos deputados e senadores cujo mandato era financiado de forma direta pela companhia estadunidense. Fonseca (1955). Considerando esta realidade uma parcela importante dos parlamentares brasileiros manifestavam o seu apoio à apresentação de propostas cujo conteúdo evidenciava a liberalização do setor petrolífero. No sentido contrário às propostas originárias da sociedade civil - em oposição à postura governamental - tornam-se objeto de perseguições e passam a ser tratadas como ameaça à segurança nacional.


A segurança continental de Juarez Távora


O General Juarez Távora destacou-se na defesa da tese que associava a política nacionalista (monopólio estatal) à idéia de isolamento político e comercial, características que - segundo o ex-ministro da agricultura - ampliariam o atraso social brasileiro possibilitando o surgimento de "esquemas políticos e econômicos-sociais estranhos" (TÁVORA 1955).

Estava criada a associação entre defesa do monopólio estatal do petróleo e comunismo, fator suficiente para iniciar a perseguição aos defensores da estatização do mineral. Estes - por sua vez - apareciam classificados em graus diferenciados como "perigosos", "inocentes" ou "apaixonados" atribuindo aos defensores da idéia do monopólio estatal um caráter de desordem e carência de fundamento teórico. Na posição contrária, os defensores da abertura ao capital estrangeiro eram apresentados como brasileiros de pensamentos "lúcidos", "sadios" ou "modernos" (Fonseca 1955).

A forma de legitimação desta estratégia era muito simples e, ao contrário da fórmula utilizada desde o século XIX, admitia a existência de petróleo no Brasil, mas apontava para as dificuldades de sua exploração que incluíam aspectos financeiros, técnicos e, principalmente, os problemas geográficos responsáveis pela inacessibilidade das áreas com potencial presença petrolífera.

Considerando estes pontos o General Juarez Távora passa a defender - como membro da comissão responsável pela elaboração do anteprojeto do Estatuto do Petróleo - o mapeamento das áreas sedimentares com a divisão destas em províncias sedimentares classificadas de 1 (provincia produtora) a 4 (provincias com menores possibilidades) de acordo com o potencial de produção. Estas áreas seriam subdivididas em quadriculas de 1grau de latitude por 1grau de longitude e posteriormente oferecidas - em forma de concessão - aos grupos privados interessados em sua exploração.

Em conferência realizada no Clube Naval em 1947 Távora acaba por apontar o real objetivo do Estatuto do Petróleo, ou seja, a abertura da exploração aos interesses dos Estados Unidos afirmando:

(...) Os nossos irmãos do continente - especialmente os norte-americanos, dispondo de amplos recursos e interessados, como nós mesmos, nesse reforço da segurança continental - devem ajudar-nos em nossas necessidades iniciais, proporcionando-nos, sem preocupações de imperialismo ou de monopólio, os capitais, os equipamentos de que necessitamos, para cumprir, com oportunidade e eficiência, a tarefa nacional e continental que nos cabe (TÁVORA 1955).

Completando seu pensamento o General Távora defendia uma maior flexibilidade por parte dos trustes estadunidenses que deveriam "aceitar" a presença do Estado brasileiro no setor de refino e distribuição do combustível. Este aspecto caracterizaria - no entendimento do General - uma renúncia dos trustes aos propósitos monopolistas e imperialistas.

Távora vislumbrava um futuro sombrio para a economia e a paz continental caso o modelo de exploração petrolífera proposto pelo governo não lograsse êxito. Desta forma anunciava como efeito:

Uma possível diminuição, no tempo de paz, da facilidade de crédito para o desenvolvimento rápido de nossa economia; e, na eventualidade de nova guerra, uma severa restrição, ou mesmo a supressão de racionamento de combustíveis para atender às nossas necessidades internas (TÁVORA 1955).

Conforme podemos observar, a proposta do Estatuto do Petróleo apresentou-se como um elemento a mais de subordinação do Brasil à condição de economia periférica. Diante do discurso liberal o país voltava-se para o principio determinista que tanto agrada suas elites desde o período colonial, mantendo-se estas em sua postura preguiçosa diante de qualquer atitude que implique na mínima possibilidade de modificação da estrutura social.

A manutenção do modelo de fundamentação "colonial" assume no Brasil uma postura quase sagrada da qual tomam parte diferentes instituições que, em nome da "liberdade", passam a defender - apoiadas no discurso da tradição - a continuidade de um processo natural de crescimento cujo resultado chegaria em seu devido tempo.

Considerando estas observações seria importante destacar a ação dos defensores do monopólio estatal do petróleo para a quebra do paradigma naturalista predominante até então no pensamento econômico brasileiro.


A Campanha do petróleo é nosso nas ruas


O rompimento com este paradigma - conforme demonstramos neste trabalho - apresenta como elemento detonador uma reação à radicalização dos trustes internacionais do petróleo cujo objetivo - desde o final do século XIX - estava em controlar o maior número possível de áreas com potencial produtivo.

O predomínio desta prática, seguida do estabelecimento do oligopólio no setor petrolífero, apresenta-se como principal elemento para fundamentação do discurso nacionalista na defesa da intervenção do Estado como forma de garantir a criação de uma política econômica para a energia.

O anteprojeto do Estatuto do Petróleo apresenta-se- neste contexto - como uma proposta de regulamentação das relações do Estado brasileiro com os trustes internacionais - prática predominante desde o Código de Minas de 1934 - estando os setores nacionalistas preocupados em estabelecer uma política objetivando a auto-suficiência.

A concretização deste objetivo determinaria a necessidade de entender o petróleo como um bem natural e econômico da nação, ponto omitido pela Constituição de 1946, mas defendido por diferentes setores sociais. Este aspecto pode ser verificado através da posição adotada pela União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais que publica - em 1948 - a seguinte nota:

A Comissão Estudantil de Defesa do Petróleo, composta por representantes de todas as escolas superiores e entidades estudantis, integrada no movimento da União Estadual dos Estudantes, hipoteca o seu integral apoio à campanha em defesa do petróleo, lançada em nome da União Nacional dos Estudantes, por seu presidente, e lavra o seu veemente protesto contra o "Estatuto do Petróleo", o recente e antipatriótico projeto de lei encaminhado ao Congresso Nacional pelo Presidente da República (Jornal Geração 1948).

Na publicação dos estudantes mineiros o petróleo é claramente entendido como um bem a ser defendido, ficando os propositores da abertura do setor petrolífero ao capital internacional classificados como antipatriotas. Neste ponto a campanha do "Petróleo é Nosso" apresenta o fundamento que vai garantir a sua unidade - ou seja - a defesa dos interesses e dos bens brasileiros.

A leitura da proclamação dos estudantes também aponta uma associação de conteúdo nitidamente econômico a idéia de "patriotismo" oferecendo a possibilidade de pensar o Brasil a partir de suas características particulares buscando - ao modo proposto por List - um modelo de crescimento amparado na proteção de seus recursos minerais.

A campanha do Petróleo é Nosso marca também o estabelecimento de uma disputa de caráter ideológico ao propor a restrição da livre iniciativa através da instituição do monopólio estatal. A repercussão desta medida implicaria, necessariamente, em um choque com as empresas petrolíferas e os países que as utilizavam como meio de internacionalizar a sua política econômica.

Acrescenta-se, assim, ao debate, mais um aspecto ideológico fundamentado, desta vez, em torno da "soberania nacional" considerando a hipótese de modificação na política econômica brasileira como um fator de desequilíbrio internacional – seguindo o pensamento de Adam Smith justificando uma ação do país mais forte em defesa da "natureza" da economia.

A campanha em defesa do monopólio na imprensa


No caso brasileiro a ação em defesa de "uma natureza da economia" e restritiva da soberania nacional pode ser observada com clareza a partir da postura adotada pela imprensa. O deputado Arthur Bernardes entendia que esta postura não resultava somente de uma opção ideológica dos meios de comunicação e afirmava:

A imprensa, em tese, vive ao serviço dos trustes do petróleo. O jornal é uma empresa que se funda para explorar a indústria de publicidade, e tem a publicidade quem pode pagá-la. A nação fica prejudicada na defesa de suas riquezas naturais porque nós que a defendemos contamos com o silêncio da imprensa (..) Por isso todo dia os trustes mandam anunciar que o Brasil precisa desenvolver-se, que precisamos do auxílio do capital estrangeiro etc. São os próprios interessados que assim agem para criar entre nós uma falsa opinião pública (BERNARDES 1977 p. 277).

A influência dos trustes do petróleo na imprensa também pode ser notada no setor radiofônico quando a Companhia Esso de Petróleo cria em 1941 um informativo cuja redação funcionava nas dependências de sua empresa de publicidade. O Repórter Esso - título do jornal radiofônico - aplicava a mesma metodologia utilizada pela empresa no setor petrolífero - ou seja- buscava monopolizar a informação ocupando espaços em diferentes emissoras nos estados mais importantes do território nacional. Para legitimação de suas notícias criou-se em torno do programa uma mística (fruto de uma bem montada campanha publicitária) segundo a qual : "se o Repórter Esso ainda não deu, não deve ser verdade. Vamos aguardar". (TAVARES 1997).

A campanha do Petróleo é Nosso foi solenemente ignorada pelos redatores do Repórter Esso mas tornou-se - assim mesmo - uma verdade. Uma pesquisa pelos jornais da época indicam a mesma postura em torno do tema confirmando, deste modo, a denúncia de Arthur Bernardes.

Fechadas as portas da imprensa a discussão em torno do Monopólio do Petróleo continua ganhando força nos meios acadêmicos, militares e empresariais. Neste último setor a questão recebe uma atenção especial por parte de uma entidade de classe, a Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais que posiciona-se favorável ao monopólio estatal do petróleo através da elaboração da Tese Mineira do Petróleo.


A TESE MINEIRA DO PETRÓLEO

A Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais e o projeto de lei número 1516

A pressão dos movimentos organizados contra o anteprojeto do Estatuto do Petróleo consegue impedir a sua aprovação. Surge assim a necessidade de uma nova proposta para organização do setor , desta vez a partir de um novo governo que havia assumido em campanha o compromisso de nacionalizar e estatizar o petróleo nacional.

Em 6 de dezembro de 1951 o Presidente Getúlio Vargas envia ao Congresso Nacional os projetos 1516, criando a Sociedade por Ações Petróleo Brasileiro S.A. (PETROBRÁS) e o 1517, apontando as formas de financiamento do setor petrolífero. A proposta do governo possibilita ao Estado tomar parte em uma sociedade de capital aberto, que controlaria todo o processo de exploração do petróleo desde a pesquisa à comercialização.

No citado projeto, registra-se como diferencial, a criação de uma empresa mista para imediata exploração do petróleo nacional, entretanto, a estrutura de controle acionário permite observar a manutenção da tradicional política de regulação, transferindo para a empresa a ser criada, inclusive a pesquisa, esvaziando o poder de intervenção estatal efetivada através do Conselho Nacional do Petróleo cuja função passaria a ser - aprovado o projeto - de mero emissor de autorizações e concessões.

A proposta governamental também desconsiderava a principal reivindicação dos grupos nacionalistas, ou seja, a instituição do monopólio estatal do petróleo criando dúvidas a respeito do compromisso de Vargas com o desenvolvimento de uma indústria petrolífera nacional. Entretanto, na mensagem que acompanha o citado projeto, afirmava o presidente:

O governo e o povo brasileiro desejam a cooperação da iniciativa estrangeira no desenvolvimento econômico do país, mas preferem reservar à iniciativa nacional o campo de petróleo, sabido que a tendência monopolística internacional dessa indústria é de molde a criar focos de atrito entre povos e entre governos. Fiel, pois, ao espírito nacionalista da vigente legislação do petróleo, será essa empresa genuinamente brasileira, com capital e administração nacionais (VARGAS apud VICTOR 1991 p. 299).

Em Belo Horizonte o presidente da Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais - Renato Falci - observa a incoerência entre o conteúdo da mensagem presidencial e, principalmente, a alínea IV do artigo 13 do projeto de criação Petróleo Brasileiro S.A. que autorizava a participação - na administração da empresa - de pessoas jurídicas de direito privado "brasileiras" abrindo assim a possibilidade de intervenção dos chamados "testas-de-ferro", além da ausência de qualquer referência ao monopólio estatal ( O Globo - 3/10/1973 p.22).

Temos assim uma curiosa situação na qual uma associação representativa de empresários - do conservador estado de Minas Gerais - critica uma proposta de lei - de um governo considerado nacionalista - por este não incluir, no texto, limitações a liberdade de livre iniciativa.

De forma concreta a Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais - através de seu departamento de Estudos Econômicos dirigidos pelo professor Washington Peluso Albino de Souza - elabora um projeto propondo a estatização de todo processo de exploração e comercialização do petróleo brasileiro através de um documento denominado de "Tese Mineira do Petróleo".


A proposta dos empresários mineiros

A proposta da Associação Comercial de Minas Gerais foi apresentada publicamente durante a realização da "IV Reunião Nacional da Federação das Associações Comerciais do Brasil" realizada no Rio de Janeiro durante os dias 24, 25 e 26 de março de 1952.

O conteúdo da Tese Mineira do Petróleo apresentava uma nítida preocupação com a questão da auto-suficiência do petróleo, ponto negligenciado pelos projetos governamentais desde 1934, e entendia esta condição como fundamental para a construção de uma soberania econômica. A proposta dos empresários mineiros amparava-se na intervenção do Estado na economia, entendendo este não somente como uma entidade controladora dos órgãos burocráticos de regulação, mas como um agente econômico podendo apresentar ação direta na economia.

Para a concretização deste princípio o Conselho Nacional do Petróleo seria fortalecido, tornando-se o órgão direcionador da política econômica do petróleo estabelecendo - dentre outras funções - o levantamento e mapeamento das províncias com potencial petrolífero definindo, inclusive, a quem entregar as áreas para lavra, pois entendiam os defensores do projeto que: (grifo original): "Todo trabalho de pesquisa deva competir exclusivamente a iniciativa estatal" (FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES COMERCIAIS DE MINAS GERAIS 1952 p.2).

Na fase da lavra o Estado também assumiria mais uma tarefa no setor produtivo através de uma grande "companhia estatal de propriedade da União, Estados e Municípios destinada a figurar nas demais sociedades como a maior acionista" (FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES COMERCIAIS DE MINAS GERAIS 1952 p.3). Estas sociedades, ao contrário da proposta governamental, seriam integralmente nacionais não admitindo - inclusive - a participação de empresas nacionalizadas.

A criação de uma companhia com a responsabilidade de iniciar, em termos comerciais, a exploração do petróleo brasileiro naturalmente esbarra na questão relativa à forma de financiamento. No projeto governamental criava-se a abertura ao capital externo - art. 13 do projeto de lei 1516 - optando-se assim pela clássica prática de "abertura ao capital internacional" entretanto, basta uma simples leitura do documento elaborado pela Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais para perceber que esta condição foi descartada.


O tributo como elemento financiador da política de auto-suficiência do petróleo.


Quebrando com a tradição liberal de entendimento do tributo como forma de aumento de custo os empresários mineiros defendiam a idéia de retribuição dos usuários do petróleo entendendo que a nacionalização deste seria responsável pela estabilidade do abastecimento e redução futura de seu preço. Para legitimar este pensamento afirmavam que a tributação proposta encontrava-se:

(...) em termos superiores ao da esfera imediata dos interesses particulares dos homens de negócios, transferindo-a para o plano mais elevado da necessidade de garantir a soberania nacional e de oferecer às classes produtoras brasileiras uma posição real de independência na sua missão de trabalhar pelo fortalecimento econômico do país (FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES COMERCIAIS DE MINAS GERAIS 1952 p.6).

A proposta da classe empresarial - como é possível concluir - caracteriza-se pela defesa de uma unidade produtiva nacional tendo como elemento direcionador a política econômica estatal fundamentada, em grande parte, na utilização do poder econômico do petróleo.

A cobrança de tributos justificar-se-ia como garantia para o financiamento desta estratégia, estabelecendo a proteção do elemento econômico "recurso mineral" cuja utilização seria ordenada de acordo com as necessidades da produção nacional. Ousavam os defensores da Tese Mineira do Petróleo ao propor um rompimento com a tradição colonialista de um modo ainda não experimentado no Brasil combinando elementos estatizantes com a livre iniciativa na qual o Estado apresenta-se também como ente produtivo.


A Tese Mineira do Petróleo e a consolidação da PETROBRÁS

A fórmula utilizada para a fundação da Petrobrás - lei 2004 de 3 de outubro de 1953 - não seguiu a estrutura na qual criava-se uma empresa estatal como controladora de companhias mistas para exploração de petróleo, modelo aliás, implantado neste início de século XXI na Venezuela e Bolívia. Todavia a preocupação em garantir a utilização do bem natural petróleo através da instituição do monopólio exercido a partir de uma empresa nacional com participação estatal foi vitoriosa.

Assim a lei 2004 utilizava a possibilidade prevista desde a Constituição de 1934 e determinava:

Art 1º Constituem monopólio da União:

I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e outros hidrocarbonetos fluidos e gases raros, existentes no território nacional;

II - A refinação do petróleo nacional e estrangeiro;

III - O transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados de petróleo bruto e seus derivados, assim como de gases raros de qualquer origem (BRASIL 1954).

Vitoriosa a tese de nacionalização do petróleo, através da promulgação da Lei 2004, torna-se necessária a criação dos meios para a implementação de uma política econômica do petróleo pautada pelo uso deste bem natural como elemento propulsor da economia.

A consolidação da Petrobrás torna-se, deste modo, o principal objetivo dos grupos nacionalistas e constitui outro elemento pouco explorado na literatura relativa ao tema. Uma simples análise dos discursos das lideranças contrárias à nacionalização permite observar a intenção de criar obstáculos para a continuidade da empresa associando a sua criação a interesses ideológicos "estranhos" ao Brasil ou mesmo antecipando o fracasso diante - e exatamente por isso - da impossibilidade da presença do capital estrangeiro.

O General Juarez Távora, em conferência na Escola Superior de Guerra em 4 de junho de 1954, resume bem esta postura afirmando:

[O] monopólio estatal e imediato , suprimindo-se qualquer participação da iniciativa e do capital privados, nacionais ou estrangeiros, nas explorações petrolíferas (...) é a fórmula preconizada por alguns nacionalistas jacobinos, com o aplauso dos comunistas, e já adotada com a Petrobrás (TÁVORA 1955 p.300).

Temos neste ponto a clara resistência dos defensores da abertura ao capital estrangeiro ao monopólio estatal do petróleo. Esta postura determina uma ação voltada para cobrança do inicio imediato da produção criando uma sensação de inoperância da Petrobrás justificando a necessidade de mudanças na estrutura econômica da empresa. Como "porta-voz" desta corrente continuava o General Juarez Távora:

(...) se tal solução [ a criação da Petrobrás] não puder proporcionar-nos, em tempo útil e em proporções satisfatórias [o petróleo] tenhamos dobrada autoridade para reclamar do poder público que adote outro caminho, mais consetâneo com os interesses superiores do Brasil (TÁVORA 1955 p.302).

A postura do General Távora, quanto à Petrobrás, pode ser interpretada como uma posição do próprio governo tendo em vista a influência que este militar exerceu no período posterior ao suicídio de Vargas. Esta afirmativa recebe maior nitidez diante da posição do então Ministro da Fazenda, Eugênio Gudin, que afirmava à revista Time: "o maior flagelo do Brasil, depois da inflação, é o nacionalismo" (FONSECA 1955 p.71).

Estava clara a linha do governo Café Filho quanto á política econômica, ficando a Petrobrás como a personificação do "flagelo". Diante deste quadro a postura da Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais surge como um importante elemento em defesa do cumprimento da lei 2004.

Através do jornal Informador Comercial a Associação coloca novamente nas ruas a defesa do monopólio estatal, tendo o artigo "maus brasileiros conspiram contra a nossa independência econômica", publicado em 21 de setembro de 1954, provocado reação da direção da Petrobrás.

Em carta ao representante dos empresários mineiros - Renato Falci - o presidente da Petrobrás, coronel Arthur Levy, reconhecia a importância da Federação Mineira para o processo que culminou na criação da empresa petrolífera e procura tranqüilizar os empresários afirmando: "A Petrobrás, cumprindo o desejo do governo e do povo do Brasil, tudo fará para solucionar, nas bases nacionalistas da lei que a criou, o importante e sempre momentoso problema do nosso petróleo."

A disputa entre nacionalistas e defensores da abertura ao capital externo para a exploração petrolífera no Brasil - como foi possível observar - não encontrou na promulgação da Lei 2004 o seu encerramento. Após 1953 a defesa e consolidação da Petrobrás, como empresa nacional e responsável pela concretização do projeto de auto-suficiência, transforma-se na principal bandeira de luta dos setores nacionalistas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDES, Arthur da Silva. Discursos e pronunciamentos políticos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1977.
BRASIL, Constituição (1946) Constituição dos Estados Unidos do Brasil: Brasília, Câmara dos Deputados, 1961.
BRASIL. Lei nº 2004. 03 out. 1953. Estabelece a politica nacional do petróleo. Coleção das Leis. Rio de Janeiro, p.13-23, 1954.
FONSECA, Gondin da. Que sabe você sobre petróleo ? Rio de Janeiro: Livraria São José, 1955.
LIST, Friedrich. Sistema nacional de economía política. Cidade do México: Editora Fondo de Cultura, 1997.
ODEL, Peter. Petróleo a mola do mundo. São Paulo: Record, 1974
SMITH, Adam. Inquérito sobre a natureza e a causa da riqueza das nações. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
SMITH, Peter Seaborn. Petróleo e política no Brasil moderno. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1978.
TAVARES, Reynaldo. Histórias que o rádio não contou. São Paulo: Negócio Editora, 1997.
TÁVORA, Juarez. Petróleo para o Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1955.
VICTOR, Mário. A batalha do petróleo brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.



Wladmir Tadeu Silveira Coelho*: Mestre em Direito, Historiador, Conselheiro da Fundação Brasileira de Direito Econômico


Este texto foi gentilmente enviado pelo autor para a publicação no blog História em Projetos.


segunda-feira, 25 de maio de 2009

ONGs denunciam exploração sexual de jovens indígenas gays e travestis em Roraima

A homossexualidade em grupos indígenas é um assunto pouco abordado nos meios de comunicação.

Esta reportagem sensível e premiada, retirada do site da Agência Brasil merece ser conhecida, pois como afirma Kátia Januário de Souza, coordenadora da Organização de Mulheres Indígenas de Roraima: educação é a maior rival da exploração sexual.

“Não queremos ver nossos filhos na prostituição. A gente quer ver nossos filhos estudando, se formando. Também somos capazes de ser doutor, advogado e tudo mais." (Kátia Januário de Souza, coordenadora da Organização de Mulheres Indígenas de Roraima)

ONGs denunciam exploração sexual de jovens indígenas gays e travestis em Roraima

Karina Cardoso*
Repórter da Rádio Nacional da Amazônia

Brasília - “Acho que meu pai tinha preconceito de mim, porque ele me chamava de gay. Ele dizia que ia me matar. Quem me ajudou a fugir foi minha mãe. Eu tinha treze anos de idade."

A travesti Paulina Janine, hoje com 24 anos, relembra os momentos tristes da adolescência, quando ainda vivia com a família em uma aldeia indígena em Normandia. Paulina é macuxi e vive atualmente em Boa Vista onde ganha a vida como garota de programa.

Esta é a realidade de muitos jovens indígenas que migram para as capitais na tentativa de fugir do preconceito nas aldeias. E é nesta busca que grande parte desses jovens é vítima da rede de exploração sexual.

Em geral, os jovens explorados sexualmente em Boa Vista são homossexuais ou travestis. Alguns deles já foram contaminados pelo vírus HIV. E alguns faleceram por terem desenvolvido a Aids.

Para conscientizar esses jovens sobre doenças sexualmente transmissíveis e sobre a importância da camisinha e do tratamento médico surgiu, em 2003, o Grupo Diversidade.

O presidente do grupo, Sebastião Diniz Neto, afirma que a instituição atua diretamente com 50 jovens de 16 a 25 anos por meio de encontros, palestras e ações, como distribuição de camisinhas. Todos os integrantes são homossexuais ou travestis. Alguns, portadores do vírus HIV.

Diniz afirma que há preconceito nas aldeias e até mesmo entre as lideranças indígenas.

“O próprio tuxaua já é machista. Ele entende que aquilo não pode acontecer. Entende que o índio do sexo masculino tem que gerar crianças. Principalmente os travestis são postos na rua. Então eles ficam isolando, isolando, até a pessoa se isolar de vez e sair da comunidade."

O presidente do Grupo Diversidade acrescenta, ainda, que a rede de exploração sexual se coloca como única opção de sobrevivência para esses jovens.

“A gente encontra uma certa dificuldade por falta de opção de emprego. Quando o mercado de trabalho abrir as portas elas vão sair da prostituição. Vontade elas têm. Fizemos uma pesquisa sobre o que fariam a não ser prostituição, deu enfermagem, cabeleireira."

A travesti indígena Simone da Silva Santos, de 28 anos, também deixou Normandia ainda adolescente e foi tentar a vida em Boa Vista. Foi na rede de exploração sexual que encontrou meios para ajudar financeiramente a mãe.

“As vezes mamãe liga pra mim. As vezes ela chora por mim também. Eu sofri mas eu ajudei ela também. Ajudei mamãe a comprar uma casa para ela.”

Por meio das ações do Grupo Diversidade, Simone tenta mostrar para as amigas a importância do sexo protegido.

“As vezes eles me dão um pacote de camisinha para eu entregar para as pessoas que estão precisando. Eu ajudo elas também. Como eles estão me ajudando eu tenho que, pelo menos, ajudar as pessoas também.”

Na tentativa de afastar a rede de exploração sexual, o Grupo Diversidade oferece curso de cabeleireiro para que os jovens aprendam uma profissão. Foi o caso do indígena Eduardo Macuxi que, mesmo com o preconceito, não ingressou na prostituição e hoje trabalha em um salão de Boa Vista.

“A minha primeira experiência foi através de lá [do grupo]. Porque eu conhecia vários cabeleireiros e eles falavam pra entrar na área. Eu disse que um dia ia tomar uma decisão e entrar.”

A presidente da Organização Indígena Positiva do Estado de Roraima, Nívea Pinho, explica que, além do preconceito existente nas aldeias, há também a dificuldade dos próprios indígenas de pedir e conseguir ajuda quando um dos integrantes da família, por exemplo, está infectado com o vírus do HIV ou quando é vítima de abuso sexual.

“Geralmente as famílias preferem sair da comunidade. Não resolver o problema e vir morar em Boa Vista. Passar por dificuldades e uma série de coisas."

O administrador substituto da Fundação Nacional do Índio (Funai) de Roraima, Petrônio Barbosa, disse desconhecer o problema vivido por indígenas homossexuais e travestis nas comunidades.

“A Funai não tem conhecimento de casos como este. Até agora não chegou nenhum caso."

Para o conselheiro do Conselho Tutelar de Boa Vista, Rony da Silva, a rede de exploração sexual se beneficia da falta de estrutura familiar. Por isso, ele explica que o órgão municipal, responsável pela defesa dos direitos de crianças e adolescentes, atua para desenvolver a estrutura da família.

“Nós vemos hoje uma grande deficiência dentro da estrutura familiar. E nós procuramos trabalhar na estrutura da família, fazer encaminhamentos para rede de acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Então temos toda uma rede onde nós podemos trabalhar com a estrutura da criança e da família."

A Organização de Mulheres Indígenas de Roraima também atua na conscientização dentro das aldeias indígenas. Para a coordenadora do órgão, Kátia Januário de Souza, a educação é a maior rival da exploração sexual.

“Não queremos ver nossos filhos na prostituição. A gente quer ver nossos filhos estudando, se formando. Também somos capazes de ser doutor, advogado e tudo mais."


*O projeto que deu origem a esta reportagem foi o vencedor da categoria rádio do 4ºConcurso Tim Lopes para Projetos de Investigação Jornalística, realizado pela ANDI e Instituto WCF-Brasil, com o apoio do UNICEF, da OIT, da FENAJ e da ABRAJI.

Pesquisas registram a desigualdade racial nos sistemas de ensino

De acordo com a última a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2007, 49,4% da população brasileira se autodeclarou da cor ou raça branca, 7,4% preta, 42,3% parda e 0,8% de outra cor ou raça. A população negra é formada pelos que se reconhecem pretos e pardos. Esta multiplicidade de identidades nem sempre encontra, no âmbito da educação, sua proporcionalidade garantida nas salas de aula de todos os níveis e modalidades.

O Brasil conta com mais de 53 milhões de estudantes em seus diversos sistemas, níveis e modalidades de ensino. Mas o atendimento às populações branca e negra revelam desigualdades. De acordo com a Pnad 2006, na educação infantil apenas 13,8% das crianças declaradas como negras estavam matriculadas em creches. O número sobe para 17,6% na população branca. Na pré-escola a desigualdade persiste, embora seja menor, 65,3% das crianças brancas matriculadas, enquanto 60,6% da população infantil negra frequentava a escola.

Segundo o Censo Escolar de 2007, a distorção idade-série de brancos é de 33,1% na 1ª série do ensino fundamental e de 54,7% na 8ª, enquanto a distorção idade-série de negros é de 52,3% na 1ª série e de 78,7% na 8ª série. Entre os jovens brancos de 16 anos, 70% haviam concluído o ensino fundamental obrigatório. Na população negra dessa faixa etária, apenas 30% alcançaram essa escolaridade. Entre as crianças brancas de 8 e 9 anos na escola, a taxa de analfabetismo é da ordem de 8%. Para essa mesma faixa etária das crianças negras o índice é o dobro.

Ensinos médio e superior – No ensino médio o quadro não é diferente. Ainda com base na Pnad 2007, 62% dos jovens brancos de 15 a 17 anos frequentavam a escola; na população negra o índice cai pela metade. Se o recorte etário for para 19 anos, os brancos apresentam uma taxa de conclusão do ensino médio de 55%, enquanto os negros, uma taxa de apenas 33%.

As desigualdades persistem no ensino superior. A Fundação Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que 12,6% da população branca acima de 25 anos concluiu o curso superior. Dentre os negros, a taxa é de 3,9%. Em 2007, os dados coletados pelo censo do ensino superior indicavam a frequência de 19,9% de jovens brancos entre 18 e 24 anos no ensino superior. Já para os negros o percentual é de somente 7%.

Plano nacionalPara reverter esse quadro, o governo federal lança, nesta quarta-feira, 13, o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e Ensino da Cultura e História Afro-Brasileira e Africana. O objetivo é reduzir desigualdades na educação, tornar a escola um ambiente mais acolhedor, sem reproduzir preconceitos e valorizar a cultura e história do povo negro na formação da sociedade brasileira.

A iniciativa é do Ministério da Educação, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O lançamento será realizado na solenidade Ações Afirmativas no Brasil, em Brasília. Também serão apresentados projetos dos ministérios da Ciência e Tecnologia e do Trabalho e Emprego, em parceria com a Seppir.

Assessoria de Imprensa da Secad

domingo, 24 de maio de 2009

Algumas visões sobre os piratas da Somália

Há alguns meses os 'piratas da Somália' vêm tomando as manchetes dos jornais e chamadas dos telejornais. Abaixo três visões sobre esta questão.



Estão-nos mentindo sobre os piratas

5/1/2009, Johann Hari: The Independent, UK


Quem imaginaria que em 2009, os governos do mundo declarariam uma nova Guerra aos Piratas? No instante em que você lê esse artigo, a Marinha Real Inglesa – e navios de mais 12 nações, dos EUA à China – navega rumo aos mares da Somália, para capturar homens que ainda vemos como vilãos de pantomima, com papagaio no ombro. Mais algumas horas e estarão bombardeando navios e, em seguida, perseguirão os piratas em terra, na terra de um dos países mais miseráveis do planeta. Por trás dessa estranha história de fantasia, há um escândalo muito real e jamais contado. Os miseráveis que os governos 'ocidentais' estão rotulando como "uma das maiores ameaças de nosso tempo" têm uma história extraordinária a contar – e, se não têm toda a razão, têm pelo menos muita razão.

Os piratas jamais foram exatamente o que pensamos que fossem. Na "era de ouro dos piratas" – de 1650 a 1730 – o governo britânico criou, como recurso de propaganda, a imagem do pirata selvagem, sem propósito, o Barba Azul que ainda sobrevive. Muita gente sempre soube disso e muitos sempre suspeitaram da farsa: afinal, os piratas foram muitas vezes salvos das galés, nos braços de multidões que os defendiam e apoiavam. Por quê? O que os pobres sabiam, que nunca soubemos? O que viam, que nós não vemos? Em seu livro Villains Of All Nations, o historiador Marcus Rediker começa a revelar segredos muito interessantes.

Se você fosse mercador ou marinheiro empregado nos navios mercantes naqueles dias – se vivesse nas docas do East End de Londres, se fosse jovem e vivesse faminto –, você fatalmente acabaria embarcado num inferno flutuante, de grandes velas. Teria de trabalhar sem descanso, sempre faminto e sem dormir. E, se se rebelasse, lá estavam o todo-poderoso comandante e seu chicote [ing. the Cat O' Nine Tails, lit. "o Gato de nove rabos"]. Se você insistisse, era a prancha e os tubarões. E ao final de meses ou anos dessa vida, seu salário quase sempre lhe era roubado.

Os piratas foram os primeiros que se rebelaram contra esse mundo. Amotinavam-se nos navios e acabaram por criar um modo diferente de trabalhar nos mares do mundo. Com os motins, conseguiam apropriar-se dos navios; depois, os piratas elegiam seus capitães e comandantes, e todas as decisões eram tomadas coletivamente; e aboliram a tortura. Os butins eram partilhados entre todos, solução que, nas palavras de Rediker, foi "um dos planos mais igualitários para distribuição de recursos que havia em todo o mundo, no século 18 ".

Acolhiam a bordo, como iguais, muitos escravos africanos foragidos. Os piratas mostraram "muito claramente – e muito subversivamente – que os navios não precisavam ser comandados com opressão e brutalidade, como fazia a Marinha Real Inglesa." Por isso eram vistos como heróis românticos, embora sempre fossem ladrões improdutivos.

As palavras de um pirata cuja voz perde-se no tempo, um jovem inglês chamado William Scott, volta a ecoar hoje, nessa pirataria new age que está em todas as televisões e jornais do planeta. Pouco antes de ser enforcado em Charleston, Carolina do Sul, Scott disse: "O que fiz, fiz para não morrer. Não encontrei outra saída, além da pirataria, para sobreviver".

O governo da Somália entrou em colapso em 1991. Nove milhões de somalianos passam fome desde então. E todos e tudo o que há de pior no mundo ocidental rapidamente viu, nessa desgraça, a oportunidade para assaltar o país e roubar de lá o que houvesse. Ao mesmo tempo, viram nos mares da Somália o local ideal onde jogar todo o lixo nuclear do planeta.

Exatamente isso: lixo atômico. Nem bem o governo desfez-se (e os ricos partiram), começaram a aparecer misteriosos navios europeus no litoral da Somália, que jogavam ao mar contêineres e barris enormes. A população litorânea começou a adoecer. No começo, erupções de pele, náuseas e bebês malformados. Então, com o tsunami de 2005, centenas de barris enferrujados e com vazamentos apareceram em diferentes pontos do litoral. Muita gente apresentou sintomas de contaminação por radiação e houve 300 mortes.

Quem conta é Ahmedou Ould-Abdallah, enviado da ONU à Somália: "Alguém está jogando lixo atômica no litoral da Somália. E chumbo e metais pesados, cádmio, mercúrio, encontram-se praticamente todos." Parte do que se pode rastrear leva diretamente a hospitais e indústrias européias que, ao que tudo indica, entrega os resíduos tóxicos à Máfia, que se encarrega de "descarregá-los" e cobra barato. Quando perguntei a Ould-Abdallah o que os governos europeus estariam fazendo para combater esse 'negócio', ele suspirou: "Nada. Não há nem descontaminação, nem compensação, nem prevenção."

Ao mesmo tempo, outros navios europeus vivem de pilhar os mares da Somália, atacando uma de suas principais riquezas: pescado. A Europa já destruiu seus estoques naturais de pescado pela superexploração – e, agora, está superexplorando os mares da Somália. A cada ano, saem de lá mais de 300 milhões de atum, camarão e lagosta; são roubados anualmente, por pesqueiros ilegais. Os pescadores locais tradicionais passam fome.

Mohammed Hussein, pescador que vive em Marka, cidade a 100 quilômetros ao sul de Mogadishu, declarou à Agência Reuters: "Se nada for feito, acabarão com todo o pescado de todo o litoral da Somália."

Esse é o contexto do qual nasceram os "piratas" somalianos. São pescadores somalianos, que capturam barcos, como tentativa de assustar e dissuadir os grandes pesqueiros; ou, pelo menos, como meio de extrair deles alguma espécie de compensação.

Os somalianos chamam-se "Guarda Costeira Voluntária da Somália". A maioria dos somalianos os conhecem sob essa designação.

Pesquisa divulgada pelo site somaliano independente WardheerNews informa que 70% dos somalianos "aprovam firmemente a pirataria como forma de defesa nacional".

Claro que nada justifica a prática de fazer reféns. Claro, também, que há gângsteres misturados nessa luta – por exemplo, os que assaltaram os carregamentos de comida do World Food Programme. Mas em entrevista por telefone, um dos líderes dos piratas, Sugule Ali disse: "Não somos bandidos do mar. Bandidos do mar são os pesqueiros clandestinos que saqueiam nosso peixe." William Scott entenderia perfeitamente.

Por que os europeus supõem que os somalianos deveriam deixar-se matar de fome passivamente pelas praias, afogados no lixo tóxico europeu, e assistir passivamente os pesqueiros europeus (dentre outros) que pescam o peixe que, depois, os europeus comem elegantemente nos restaurantes de Londres, Paris ou Roma? A Europa nada fez, por muito tempo. Mas quando alguns pescadores reagiram e intrometeram-se no caminho pelo qual passa 20% do petróleo do mundo... imediatamente a Europa despachou para lá os seus navios de guerra.

A história da guerra contra a pirataria em 2009 está muito mais claramente narrada por outro pirata, que viveu e morreu no século 4º AC. Foi preso e levado à presença de Alexandre, o Grande, que lhe perguntou "o que pretendia, fazendo-se de senhor dos mares." O pirata riu e respondeu: "O mesmo que você, fazendo-se de senhor das terras; mas, porque meu navio é pequeno, sou chamado de ladrão; e você, que comanda uma grande frota, é chamado de imperador." Hoje, outra vez, a grande frota europeia lança-se ao mar, rumo à Somália – mas... quem é o ladrão?


Piratas da Somália e a política externa dos EUA

14/4/2009, Rebecca Macaux e Philip Primeau*, Counterpunch



Com a explosão da pirataria na Somália, os EUA estão colhendo o que plantaram. Por várias vias, os EUA só podem culpar-se, eles mesmos, pela emergência desse tipo de crime de alto-mar que ameaça interromper importantes vias comerciais.

Os EUA deram integral apoio a um governo despótico e violento durante os anos pós-coloniais na Somália, anos de formação. Esse apoio deturpou o desenvolvimento de instituições políticas estáveis e minou gravemente a capacidade de constituir governo estável e crescimento sustentável.

Os mercados nacionais também são vítimas da intromissão estrangeira, desastres dessa 'caridade' com ás escondido na manga, que tanto contribuiu para o descrédito de atores ocidentais, sobretudo para o descrédito dos EUA, em todo o Terceiro Mundo.

Tornados economicamente impotentes pelos desvios nas 'ajudas' e no assistencialismo que receberam dos governos dos EUA e de inúmeras ONGs, não surpreende que os somalianos tenham acabado por recorrer à pirataria, na luta para sobreviverem.

As ações às quais o mundo assiste hoje não são resultado de cobiça, mas do desespero. São o pecado, como recurso derradeiro.

* * *

A Somália que vemos hoje foi formada em 1960, da união de duas ex-colônias europeias, uma inglesa, a outra italiana. O que começou como exercício de democracia constitucional rapidamente se converteu em ditadura, sob o comando de Maxamed Siyaad Barre.

Embora Barre tenha-se aproximado inicialmente da URSS, esse relacionamento azedou em 1977-79. Moscou acabou por abandonar a Somália à sua própria sorte; e passou a apoiar a vizinha Etiópia, na disputa pelo controle da região de Ogaden.

Confiado em que a posição de traído pela URSS facilitaria os contatos, Barre pediu assistência militar aos EUA, na luta contra países vizinhos e para reprimir a resistência interna. Como em tantas outra vezes, o presidente Carter quase caiu na esparrela e chegou a dar luz verde para o envio de munições; no último momento, mudou de ideia.

Sem o apoio de uma grande potência, as forças somalianas foram escorraçadas de Ogaden, derrotadas por uma força tarefa etíope-soviética-cubana. O governo de Barre balançou, à beira do colapso.

Contudo, no governo de Ronald Reagan, o homem das guerras, os EUA repentinamente voltaram a interessar-se pelo Chifre da África. Henry Kissinger encontrou-se pessoalmente com Barre e, em 1981, os EUA começaram a suprir o ditador com armamentos e cerca de 100 milhões de dólares por ano.

Como retribuição, os EUA ganharam pleno controle sobre o porto de águas profundas de Berbera, no Golfo de Aden. Berbera era considerado porto de alta importância estratégica para enfrentar os avanços dos soviéticos em direção ao Chifre da África e à península Arábica. E oferecia a vantagem de estar ali, em rota essencial para o petróleo.

Assim fortalecido com armas e dólares norte-americanos, Barre conseguiu sobreviver à Guerra Fria; ele sobreviveu; a Somália não teve a mesma sorte.

* * *

Como em quase todas as nações-peões do Terceiro Mundo, o regime de Barre sempre foi fundamentalmente instável, necessitando de níveis cada vez mais altos de ajuda financeira. Ao final da Guerra Fria, os norte-americanos praticamente reduziram a zero a importância estratégica da Somália e, correspondentemente, também cancelaram a ajuda financeira, classificada como gasto desnecessário.

Com o fim do patrocínio norte-americano, a agitação social converteu-se em devastadora guerra civil. Barre foi derrubado em 1991 e morreu quatro anos depois, de ataque cardíaco. Pouco depois, os EUA tentaram na Somália uma 'invasão humanitária', que culminou no fiasco da "Queda do Falcão Negro" [ing. ‘Black Hawk Down’], em 1992-3[1]. Naquele momento, a Somália mergulhou no caos; hoje, "caos" e "Somália" são palavras ouvidas como sinônimas.

Apesar dos discursos altissonantes dos EUA, como campeões dos direitos humanos e da democracia em todo o mundo, não deixaram nem vestígios nem de democracia nem de direitos humanos na Somália, naqueles anos cruciais da constituição de um Estado pós-colonial. O apoio dado a Barre poderia ter servido para promover a constituição de governo mais democrático ou transparente. Nada disso. Os EUA, na Somália, só fizeram fortalecer uma tradição de mando arbitrário, de governo pela força.

A Somália entrou nos anos 90s sem qualquer projeto econômico e sem instituições políticas. Culpa, também, dos 'planejadores' ocidentais em geral e norte-americanos em especial.

Ao longo dos anos, as relações de mercado haviam sido atrofiadas pela facilidade com que chegavam as 'ajudas' financeiras. A agricultura foi minada por navios que chegavam carregados de produtos ocidentais vendidos abaixo do preço, em detrimento dos agricultores somalianos que não podiam competir com os 'presentes'.

Sem qualquer tipo de mercado interno, os somalianos acabaram presos no ciclo sem saída da dependência. Há uma trágica ironia, aí: na esperança de eliminar a fome na Somália, os EUA de fato mataram a capacidade de a nação alimentar-se por seus meios. E sobreveio a fome, avassaladora.

A situação foi agravada por um passado regional, local, de crises periódicas de falta de alimentos, combinadas com movimentos de levas de refugiados. Essas emergências humanitárias sempre serviram como pretexto, no tempo de Barre – quando não foram construídas, sob tácita aprovação dos EUA –, para os pedidos de ajuda humanitária; assim Barre construiu seu governo, tão mais arbitrário quanto mais o país naufragava no caos.

Barre ficou conhecido por 'administrar' os carregamentos de comida, em benefício sempre de um pequeno círculo de apoiadores locais, ligados a ele por laços étnicos, do qual eram excluídos os demais clãs que há no país – e dos quais começou a nascer feroz oposição ao seu governo.

Com o fim dos carregamentos de alimentos enviados dos EUA, Barre perdeu seu principal instrumento na luta para manter-se no poder. Sem qualquer apoio popular, foi derrubado do governo, em 1991.

Começou então uma etapa em que outros clãs, no território da mesma Somália, assumiram os mecanismos pelos quais ainda se podia extrair importante ajuda dita humanitária de vários agentes estrangeiros, sobretudo de ONGs, como a "Cooperative for Assistance and Relief Everywhere" e "Save the Children". A comida, na Somália, continuou a ser instrumento explícito de política, usado para premiar aliados e punir os opositores. E assim, afinal, o Ocidente continuou e continua a manter ativo um conflito que talvez já tivesse encontrado alguma via de conciliação, se tivesse sido possível evitar a interferência externa.

* * *

Dissemos acima que os EUA estão colhendo o que plantaram. A pirataria é, hoje, na Somália, resposta de nação que foi entregue a um governo arbitrário e violento, que foi apoiado pelos EUA na década dos 80s, e que distribuiu fome e violência.

Ao mesmo tempo, os EUA colhem hoje também o que não semearam. Por mais de uma década, o governo de Barre dependeu completamente da ajuda norte-americana. O caos, portanto, é consequência direta de uma estratégia de 'apoio' que não se pode supor que tenha sido ingênua.

A dependência econômica poderia ter sido usada para construir instituições democráticas; para facilitar e estimular o desenvolvimento de estruturas econômicas e políticas estáveis; para fazer prosperar a agricultura somaliana local, para preservar as águas territoriais e impedir a pesca predatória e a devastação das condições ambientais e de sobrevivência das populações. Os somalianos pescadores foram praticamente empurrados para a pirataria.

Os EUA não reagiram contra a brutalidade do governo de Barre. Os EUA jamais pressionaram na direção de qualquer reforma ou de qualquer democratização.

Em vez disso, mataram um mercado interno já muito frágil e extinguiram a agricultura somaliana mediante políticas desastrosas, coordenadas pelo FMI e seus programas de "ajuste estrutural".

Os EUA estão frenéticos, porque os piratas somalianos estão atacando navios norte-americanos. Ao mesmo tempo, insistem em não ver o papel dos EUA no longo processo de destruição do tecido social na sociedade somaliana – e na criação de um vácuo de poder democrático no qual os criminosos sempre levam vantagem... exatamente como acontece na Somália há 25 anos!

A Somalia é caso a ser estudado, de consequências políticas não previstas, de intenções pouco claras, no quadro do karma infeliz da realpolitik.

Os EUA precisam acordar para a evidência de que ações políticas têm consequências políticas e que ninguém é imune a elas. Têm de aprender a ver que táticas políticas de curto prazo não substituem projetos de desenvolvimento de mais longo prazo. Estratégias políticas de mais longo prazo podem ajudar a criar mundo mais justo e igualitário; táticas de curtissimo prazo sempre voltam, como almas penadas, a atormentar, primeiro, os EUA.


[1] Sobre a invasão da Somália, em 1992-3, ver aqui

*Rebecca Macaux e Philip Primeau animam o blog Who-Whom. Recebem e-mails em primeau.pr@gmail.com

Cegueira na África Ocidental

O que provoca uma grande incidência de cegueira nos países da África Ocidental, como por exemplo em Serra Leoa?

Como a juventude acometida pela cegueira está reagindo?

No vídeo abaixo uma visão produzida pelo N. Y. Times sobre estas questões

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O MODELO NORUEGUÊS E A PETROBRÁS

Wladmir Coelho, no site da AEPET

O governo brasileiro anuncia a elaboração de estudos visando à implantação de uma nova política econômica do petróleo cuja base seria o modelo regulatório norueguês adotado pelos nórdicos a partir de 2002. Naquele ano a empresa estatal de exploração petrolífera (Statoil) abriu o seu capital e recebeu a incorporação da divisão de petróleo e gás da Nork Hidro (empresa mista com atuação principal no setor de alumínio) perdendo também a exclusividade na administração dos recursos petrolíferos continentais que foram repassados à nova estatal denominada Petoro.

Estas transformações ocorreram durante o processo de incorporação da Noruega ao Espaço Econômico Europeu - na prática uma adesão `branca` à União Européia como forma de contornar a rejeição manifestada nos plebiscitos de 1972 e 1994 - e aprofundamento da disputa pelo controle do petróleo do Ártico pleiteado pela Rússia, Estados Unidos, Canadá, Dinamarca e a própria Noruega, cujas reservas no Mar do Norte apresentam sinais de declínio e, como sabemos, a economia norueguesa encontra-se extremamente dependente do petróleo, setor responsável pelo desenvolvimento econômico nacional e no qual está ancorado o seu modelo de estado de bem estar social.

Assim é possível compreender a abertura comercial dos campos petrolíferos noruegueses como uma estratégia daquele governo para garantir a ampliação da exploração - inclusive - em áreas de litígio transformadas a partir deste fato em regiões de interesse da política econômica européia de energia, cuja execução encontra-se sob controle dos tradicionais oligopólios do setor.

Desta forma a simples aplicação do modelo norueguês no Brasil - como pretendem setores do governo - certamente resultaria em prejuízos para os interesses nacionais e lucro para os oligopólios internacionais, pois desconsidera as diferenças econômicas, jurídicas, culturais e históricas existentes entre os dois países ocultando, por exemplo, que o estado de bem estar social do qual desfrutam os nórdicos foi implantado a partir de uma política econômica do petróleo na qual o Estado atuava diretamente controlando todo o processo de exploração e comercialização do mineral.

Neste ponto passamos a entender a razão da frase: `segundo um ministro que prefere não ser identificado`, observadas em jornais brasileiros, sempre que o tema da nova estatal surge na imprensa como confissão do erro - ou seria da farsa? - que oculta da população a importância da Petrobrás fortalecida para a implementação das bases de uma política desenvolvimentista utilizando o poder econômico do petróleo em benefício dos interesses do Brasil.

Torna-se necessário lembrar aos ministros anônimos que a criação da Petrobrás resultou de ampla movimentação dos brasileiros, tendo envolvido desde setores conservadores como a Associação Comercial de Minas Gerais (através da Tese Mineira do Petróleo), militares das três armas, partidos políticos, estudantes, sindicatos dentre outros grupos que defendiam a necessidade de uma empresa estatal para o setor petrolífero.

Este ponto - criação de uma empresa estatal do petróleo - tornou-se imprescindível para o Brasil dos anos de 1950 desejoso de uma política voltada para o crescimento econômico cujo gargalo encontrava-se nos obstáculos levantados pelos oligopólios internacionais, com praticas nada democráticas envolvendo desde a negação da existência de petróleo em nosso território ao impedimento físico das pesquisas.

A criação da Petrobrás representou o mais significativo rompimento de nossa história com a tradição colonial, aspecto lamentavelmente ignorado por muitos de nossos governantes. Para garantir este rompimento concordamos com a necessidade de modificações na legislação ligada ao petróleo, mas ao contrário da entrega dos recursos nacionais aos oligopólios, devemos defender o respeito ao artigo 20 da Constituição Federal que inclui entre os bens da União os recursos naturais do subsolo e plataforma continental, e retomar a propriedade do bem econômico petróleo através do retorno do texto original do artigo 177 da Constituição de 1988.

Wladmir Coelho, mestre em Direito, historiador e membro do Conselho Curador da Fundação Brasileira de Direito Econômico.

Publicado originalmente: Tribuna da Imprensa (21/08/2008)

sábado, 16 de maio de 2009

Sob o signo da Justiça: documentário sobre a implementação de cotas na UNB

É imperdível este documentário que conta o processo de implementação de cotas na Universidade de Brasília.


"Sob o Signo da Justiça - A luta pelas cotas na Universidade de Brasília" de Carlos Henrique Romão de Siqueira e Ernesto Ignacio de Carvalho. 20min. Brasília, 2005.

No Brasil é comum dizer que as ações afirmativas nas universidades foram "impostas de cima pra baixo" a partir do Governo Federal ou do Legislativo. Mas a verdade é que elas são uma demanda histórica do movimento negro. Este documentário conta um pouco do processo interno de discussão na UnB que levou à conquista das cotas para estudantes negros, desde a primeira apresentação pública da proposta, em 1999, até a sua aprovação, em 2003. Realizado com prêmio de comunicação da Fundação Palmares. Traz falas de algumas das pessoas que mobilizaram essa luta.

In Memoriam: Jocimar de Oliveira Araújo.


O documentário está dividido em três partes, assista, vale a pena:

PARTE I



PARTE II



PARTE III

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Alisando nossos cabelos

Um texto para professores negros e brancos refletirem sobre como estamos tratando a estética dos nossos alunos negros, especialmente as meninas negras, reforçamos os preconceitos a partir de um modelo único de beleza ou não.
O texto de Bel Hooks é longo, mas garanto a vocês que vale a pena a leitura de cada vírgula.

Alisando o Nosso Cabelo

BELL HOOKS*

Apesar das diversas mudanças na política racial, às mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos com respeito a nosso valor na sociedade de supremacia branca! Nas manhãs de sábado, nos reuníamos na cozinha para arrumar o cabelo, quer dizer, para alisar os nossos cabelos. Os cheiros de óleo e cabelo queimado misturavam-se com os aromas dos nossos corpos acabados de tomar banho e o perfume do peixe frito.

Não íamos ao salão de beleza. Minha mãe arrumava os nossos cabelos. Seis filhas: não havia a possibilidade de pagar cabeleireira. Naqueles dias, esse processo de alisar o cabelo das mulheres negras com pente quente (inventado por Madame C. J. Waler) não estava associado na minha mente ao esforço de parecermos brancas, de colocar em prática os padrões de beleza estabelecidos pela supremacia branca. Estava associado somente ao rito de iniciação de minha condição de mulher. Chegar a esse ponto de poder alisar o cabelo era deixar de ser percebida como menina (a qual o cabelo podia estar lindamente penteado e trançado) para ser quase uma mulher. Esse momento de transição era o que eu e minhas irmãs ansiávamos.

Fazer chapinha era um ritual da cultura das mulheres negras, um ritual de intimidade. Era um momento exclusivo no qual as mulheres (mesmo as que não se conheciam bem) podiam se encontrar em casa ou no salão para conversar umas com as outras, ou simplesmente para escutar a conversa. Era um mundo tão importante quanto à barbearia dos homens, cheia de mistério e segredo.

Tínhamos um mundo no qual as imagens construídas como barreiras entre a nossa identidade e o mundo eram abandonadas momentaneamente, antes de serem reestabelecidas. Vivíamos um instante de criatividade, de mudança.

Eu queria essa mudança mesmo sabendo que em toda a minha vida me disseram que eu era "abençoada" porque tinha nascido com "cabelo bom" – um cabelo fino, quase liso –, não suficientemente bom, mais ainda assim era bom. Um cabelo que não tinha o "pé na senzala", não tinha carapinha, essa parte na nuca onde o pente quente não consegue alisar. Mas esse "cabelo bom" não significava nada para mim quando se colocava como uma barreira ao meu ingresso nesse mundo secreto da mulher negra.

Eu regozijei de alegria quando a minha mãe finalmente decretou que eu poderia me somar ao ritual de sábado, não mais como observadora, mas esperando pacientemente a minha vez. Sobre este ritual escrevi o seguinte: Para cada uma de nós, passar o pente quente é um ritual importante. Não é um símbolo de nosso anseio em tornar-nos brancas. Não existem brancos no nosso mundo íntimo. É um símbolo de nosso desejo de sermos mulheres.

É um gesto que mostra que estamos nos aproximando da condição de mulher [...] Antes que se alcance a idade apropriada, usaremos tranças; tranças que são símbolo de nossa inocência, juventude, nossa meninice. Então, as mãos que separam, penteiam e traçam nos confortam. A intimidade e a sina nos confortam.

Existe uma intimidade tamanha na cozinha aos sábados quando se alisa o cabelo, quando se frita o peixe, quando se fazem rodadas de refrigerante, quando a música soul flutua sobre a conversa. É um instante sem os homens. Um tempo em que trabalhamos como mulheres para satisfazer umas as necessidades das outras, para nos proporcionarmos um bem-estar interior, um instante de alegrias e boas conversas. Levando em consideração que o mundo em que vivíamos estava segregado racialmente, era fácil desvincular a relação entre a supremacia branca e a nossa obsessão pelo cabelo. Mesmo sabendo que as mulheres negras com cabelo liso eram percebidas como mais bonitas do que as que tinham cabelo crespo e/ou encaracolado, isso não era abertamente relacionado com a idéia de que as mulheres brancas eram um grupo feminino mais atrativo ou de que seu cabelo liso estabelecia um padrão de beleza que as mulheres negras estavam lutando para colocar em prática.

Esse momento é um marco histórico e ideológico do qual emergiu o processo de alisamento do cabelo de mulheres negras. Esse processo foi ampliado de maneira tal que estabeleceu um espaço real de formação de íntimos vínculos pessoais da mulher negra mediante uma experiência ritualística compartilhada.

O salão de beleza era um espaço de aumento da consciência, um espaço em que as mulheres negras compartilhavam contos, lamúrias, atribulações, fofocas – um lugar onde se poderia ser acolhida e renovar o espírito.

Para algumas mulheres, era um lugar de descanso em que não se teria de satisfazer as exigências das crianças ou dos homens. Era a hora em que algumas teriam sossego, meditação e silêncio. Entretanto, essas implicações positivas do ritual do alisamento do cabelo ponderavam, mas não alteravam as implicações negativas. Essas existiam concomitantemente.

Dentro do patriarcado capitalista – o contexto social e político em que surge o costume entre os negros de alisarmos os nossos cabelos –, essa postura representa uma imitação da aparência do grupo branco dominante e, com freqüência, indica um racismo interiorizado, um ódio a si mesmo que pode ser somado a uma baixa auto-estima.

Durante os anos 1960, os negros que trabalhavam ativamente para criticar, desafiar e alterar o racismo branco, sinalavam a obsessão dos negros com o cabelo liso como um reflexo da mentalidade colonizada. Foi nesse momento em que os penteados afros, principalmente o black, entraram na moda como um símbolo de resistência cultural à opressão racista e fora considerado uma celebração da condição de negro(a).

Os penteados naturais eram associados à militância política. Muitos(as) jovens negros(as), quando pararam de alisar o cabelo, perceberam o valor político atribuído ao cabelo alisado como sinal de reverência e conformidade frente às expectativas da sociedade.

Entretanto, quando as lutas de libertação negra não conduziram à mudança revolucionária na sociedade, não se deu mais tanta atenção à relação política entre a aparência e a cumplicidade com o segregacionismo branco, e aqueles que outrora ostentavam os seus blacks começaram a alisar o cabelo.

Sem ficar atrás dessa manobra para suprimir a consciência negra e os esforços das pessoas negras por serem sujeitos que se autodefinem, as empresas brancas começaram a reconhecer os negros, e de maneira especialíssima, às mulheres negras, como consumidoras potenciais de produtos que poderiam ser subministrados, incluindo aqueles para os cuidados com o cabelo. Permanentes especialmente concebidos para as mulheres negras eliminaram a necessidade do pente quente e da chapinha. Esses permanentes não só custavam mais caro, mas também levavam todas as economias e ganâncias das comunidades negras, especificamente dos bolsos das mulheres negras que anteriormente colhiam benefícios materiais (ver Como o Capitalismo Desenvolveu a América Negra, de Manning Marable, South End Pree).

O contexto do ritual havia desaparecido, não haveria mais a formação de vínculos íntimos e pessoais entre as mulheres negras. Sentadas embaixo de secadores barulhentos, as mulheres negras perderam um espaço para o diálogo, para a conversa criativa.

Desposadas desses rituais de formação de íntimos vínculos pessoais positivos, que rodeavam tradicionalmente a experiência, o alisamento parecia cada vez mais um significante da opressão e da exploração da ditadura branca.

O alisamento era claramente um processo no qual as mulheres negras estavam mudando a sua aparência para imitar a aparência dos brancos. Essa necessidade de ter a aparência mais parecida possível à dos brancos, de ter um visual inócuo, está relacionada com um desejo de triunfar no mundo branco. Antes da integração, os negros podiam se preocupar menos sobre o que os brancos pensavam sobre o seu cabelo.

Em discussão sobre a beleza com mulheres negras em Spelman College , as estudantes falavam sobre a importância de ter o cabelo liso quando se procura um emprego. Estavam convencidas, e provavelmente com toda a razão, de que sua oportunidade de encontrar bons empregos aumentaria se tivessem cabelo alisado. Quando se pediam mais detalhes sobre essa assertiva, essas mulheres se concentravam na conexão entre as políticas radicais e os penteados naturais, seja com ou sem tranças. Uma jovem que tinha o cabelo natural e curto falava até mesmo em comprar uma peruca de cabelo liso e comprido na hora de procurar emprego.

Nenhuma das participantes pensava na possibilidade de que nós mulheres negras éramos livres para usar os nossos cabelos naturais sem refletir sobre as possíveis conseqüências negativas. Com freqüência, os adultos negros, os mais velhos, especialmente os pais, respondiam negativamente aos penteados naturais. Contei ao grupo que, quando cheguei em casa com o cabelo trançado logo após conseguir um emprego em Yale, os meus pais me disseram que eu tinha um aspecto desagradável.

Apesar das diversas mudanças na política racial, as mulheres negras continuam obcecadas com os seus cabelos, e o alisamento ainda é considerado um assunto sério. Por meio de diversas práticas insistem em se aproveitar da insegurança que nós mulheres negras sentimos a respeito de nosso valor na sociedade de supremacia branca. Conversando com grupos de mulheres em diversas cidades universitárias e com mulheres negras em nossas comunidades, parece haver um consenso geral sobre a nossa obsessão com o cabelo, que geralmente reflete lutas contínuas com a auto-estima e a auto-realização. Falamos sobre o quanto as mulheres negras percebem seu cabelo como um inimigo, como um problema que devemos resolver, um território que deve ser conquistado. Sobretudo, é uma parte de nosso corpo de mulher negra que deve ser controlado. A maioria de nós não foi criada em ambientes nos quais aprendêssemos a considerar o nosso cabelo como sensual, ou bonito, em um estado não processado. Muitas de nós falamos de situações nas quais pessoas brancas pedem para tocar o nosso cabelo natural e demonstram grande surpresa quando percebem que a textura é suave ou agradável ao toque.

Aos olhos de muita gente branca e outras não negras, o black parece palha de aço ou um casco. As respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante. Nós tendemos a interiorizar esse medo.O grau em que nos sentimos cômodas com o nosso cabelo reflete os nossos sentimentos gerais sobre o nosso corpo.

Em nosso grupo de apoio de mulheres negras, Irmãs do Yam, conversávamos sobre como não gostávamos de nossos corpos, especialmente nossos cabelos. Sugeri ao grupo que considerássemos o nosso cabelo como se ele não fizesse parte do nosso corpo, mas que se percebesse como algo separado, de novo um território que deve ser controlado, domado.

Para mim era importante que fosse vinculada a necessidade de controlar o cabelo com a repressão sexual. Tendo curiosidade sobre o que passavam as mulheres negras que faziam chapinha ou que fizessem amaciamento, permanente ou outras químicas, quando refletiam sobre a relação do cabelo alisado e a prática sexual, perguntei se as pessoas se preocupavam com o cabelo delas, se temiam que seus pares tocassem os seus cabelos. Sempre tive a impressão de que o cabelo alisado chama a atenção pelo desejo de que permaneça no mesmo lugar. Não foi surpreendente que muitas mulheres negras respondessem que se sentiam incomodadas se as pessoas se concentravam e davam muita atenção aos seus cabelos, sentiam como se o seu cabelo estivesse desordenado, fora de controle. Isso porque aquelas de nós que já liberaram o seu cabelo e deixamos que ele se movimente na direção que ele queira, freqüentemente, recebemos comentários negativos.

Olhando fotografias de mim mesma e das minhas irmãs de quando tínhamos o cabelo alisado no segundo grau, percebi que parecíamos ter mais idade do que quando deixamos o cabelo natural. É irônico viver em uma cultura que enfatiza tanto a necessidade das mulheres serem ou parecerem jovens, mas por outro lado incentiva as mulheres negras a mudarem os seus cabelos de maneira tal que parecemos ser mais velhas.

No último semestre, estávamos lendo O Olho mais azul, de Toni Morrison, em uma aula de Literatura. Pedi aos estudantes que escrevessem textos autobiográficos, que refletissem sobre o que eles pensavam sobre a relação entre raça e beleza física. Uma grande maioria das mulheres negras escreveu sobre os seus cabelos. Quando eu perguntei isoladamente a algumas delas porque continuavam alisando o cabelo, muitas atestaram que os penteados naturais não ficavam bonitos nelas, ou que demandavam muito trabalho. Emily, uma das minhas favoritas, de cabelo curto sempre alisava, e eu lhe questionava e desafiava, até que ela me explicou de maneira muito convincente que um penteado natural ficaria horrível no seu rosto, que ela não tinha a fronte nem a estrutura óssea apropriada.
No semestre seguinte, nos reencontramos e ela me contou que durante as férias tinha ido ao salão fazer o permanente e, enquanto esperava, pensou sobre as leituras e as discussões de sala de aula e percebeu que estava realmente muito incomodada e amedrontada com a idéia de que as pessoas achassem que ela não seria mais atraente se não alisasse o cabelo. Reconheceu que esse medo estava enraizado nos sentimentos de baixa auto-estima. Decidiu fazer uma mudança e se surpreendeu, pois estava linda e muito atraente. Conversamos bastante sobre como dói perceber a relação entre a opressão racista e os argumentos que usamos para convencer a nós mesmas e aos outros de que não somos belos ou aceitáveis como somos.

Em inúmeras discussões com mulheres negras sobre o cabelo, ficou constatado um manifesto de que um dos fatores mais poderosos que nos impedem de usarmos o cabelo sem química é o temor de perder a aprovação e a consideração das outras pessoas. As mulheres negras heterossexuais falaram sobre o quanto os homens negros respondem de forma mais favorável quando se tem um cabelo liso ou alisado. Entre as homossexuais, muitas afirmam que não alisavam o cabelo por uma reflexão de que esse gesto estaria vinculado à heterossexualidade e à necessidade de aprovação do macho.

Lembro-me de ter visitado uma amiga com seu par, um homem negro, em Nova York , faz anos, e tivemos uma intensa discussão sobre o cabelo. Ele se encarregou de me dizer que eu poderia ser uma irmã excelente (bonita) se fizesse algo ("dar um jeito") com o meu cabelo. Por dentro pensei que a minha mãe o tinha contratado. O que me lembro é do espanto quando com calma e entusiasmo garanti que eu gostava do tato no cabelo não processado.

Quando os estudantes lêem sobre raça e beleza física, várias mulheres negras descrevem fases da infância em que estavam atormentadas e obcecadas com a idéia de ter cabelos lisos, já que estavam tão associados à idéia de essas serem desejadas e amadas. Poucas mulheres receberam apoio de suas famílias, amigos(as) e parceiros(as) amorosos(as) quando decidiam não alisar mais o cabelo. E temos várias histórias para contar sobre os conselhos recebidos de todo o mundo, até mesmo de pessoas completamente estanhas, que se sentem gabaritadas para atestar que parecemos mais bonitas se "arrumamos" (alisamos) o cabelo.

Quando eu ia para a minha entrevista de emprego em Yale, conselheiras brancas que nunca haviam feito nenhum comentário sobre o meu cabelo me animaram para que eu não usasse tranças ou um penteado natural grande (black) na entrevista. Elas não disseram "alisa o seu cabelo", sugeriam que eu mudasse o meu estilo de cabelo de modo tal que parecesse ao máximo ao cabelo delas, indicando certo conformismo. Usei tranças e ninguém pareceu notar. Quando fui contratada, não perguntei se importava ou não que eu usasse tranças. Conto essa história aos meus alunos para que saibam que nem sempre temos de renunciar a nossa capacidade de ser pessoas que se autodefinem para ter sucesso no emprego.

Já percebi que o meu estilo de cabelo às vezes incomoda os estudantes durante as minhas conferências. Certa vez, em uma conferência sobre mulheres negras e liderança, entrei em um auditório repleto com o meu cabelo sem química, fora de controle e desordenado. A grande maioria das mulheres negras que ali estavam tinham o cabelo alisado. Muitas delas foram hostis com olhares de desdém. Senti como se estivesse sendo julgada, como uma marginal, indesejável. Tais julgamentos se fazem especialmente direcionado às mulheres negras nos Estados Unidos que resolvem usar dreads. São consideradas, com toda razão, da antítese do alisamento, o que torna o seu estilo uma decisão política. Freqüentemente, as mulheres negras expressam desprezo por aquelas de nós que escolhemos essa aparência.

Curiosamente, ao mesmo tempo em que o cabelo natural é um motivo de desatenção e desdém, somos testemunhas da volta da moda das pinturas, mechas loiras, cabelo comprido. Em seus escritos, minhas alunas negras descreveram o uso de mechas amarelas em suas cabeças quando eram meninas, para fingir ter o cabelo comprido e loiro. Recentemente as cantoras que estão trabalhando para ser atrativas para a platéia branca, para serem consideradas como artistas que ampliaram o público, usam implantes e apliques para conseguir cabelos compridos e lisos. Parece haver um nexo definido entre a popularidade de uma artista negra com auditórios brancos e o grau em que ela trabalha para parecer branca, ou para encarnar aspectos do estilo branco. Tina Tuner e Aretha Franklin foram percussoras dessa tendência, as duas pintavam o cabelo de loiro. Na vida cotidiana vemos cada vez mais mulheres usando cada vez mais químicas para ter cabelo liso e loiro.
Em uma de minhas conversas que se concentravam na construção social da identidade da mulher negra dentro de uma sociedade sexista e racista, uma mulher negra veio até mim no final da discussão e me contou que sua filha de sete anos de idade estava deslumbrada com a idéia do cabelo loiro, de tal forma que ela havia feito uma peruca que imitava os cachinhos dourados. Essa mãe queria saber o que estava fazendo de errado em sua tutela, já que sua casa era um lugar onde a condição de negro era afirmada e celebrada. Mas ela não havia considerado que o seu cabelo alisado era uma mensagem para a sua filha: nós mulheres negras não somos aceitas a menos que alteremos nossa aparência ou textura do cabelo.
Recentemente conversei com uma de minhas irmãs mais novas sobre o seu cabelo. Ela usa tintura de cores berrantes em diversos tons de vermelho. No que lhe diz respeito, essas escolhas de cabelo pintado e alisado estavam diretamente relacionadas com sentimentos de baixa auto-estima. Ela não gosta dos seus traços e acredita que o estilo de cabelo transforma a sua fisionomia. O que eu percebia era que a escolha dela na realidade chamava mais atenção para a sua fisionomia e era tudo o que ela pretendia ocultar.

Quando ela comentou que com essa aparência ela recebia mais atenção e elogios, sugeri que a reação positiva podia ser resposta direta da sua própria projeção de um alto nível de auto-satisfaçã o. As pessoas podem estar respondendo a isso e não à tentativa de ocultar ou mascarar o seu fenótipo. Conversamos sobre as mensagens que estava mandando para as suas filhas de pele escura: que elas certamente seriam aceitas se alisassem os seus cabelos!

Certo número de mulheres afirmou que essa é uma estratégia de sobrevivência: é mais fácil de funcionar nessa sociedade com o cabelo alisado. Os problemas são menores; ou, como alguns dizem, "dá menos trabalho" por ser mais fácil de controlar e por isso toma menos tempo. Quando respondi a esse argumento em uma discussão em Spelman College , sugeri que talvez o fato de gastar tempo com nós mesmas cuidando de nossos corpos é também um reflexo de uma sensação de que não é importante ou de que nós não merecemos tal cuidado. Nesse grupo e em outros, as mulheres negras falavam de ter sido criadas em famílias que ridicularizavam ou consideravam desperdício gastar muito tempo com a aparência.

Independentemente da maneira como escolhemos individualmente usar o cabelo, é evidente que o grau em que sofremos a opressão e a exploração racistas e sexistas afeta o grau em que nos sentimos capazes tanto de auto-amor quanto de afirmar uma presença autônoma que seja aceitável e agradável para nós mesmas. As preferências individuais (estejam ou não enraizadas na autonegação) não podem escamotear a realidade em que nossa obsessão coletiva com alisar o cabelo negro reflete psicologicamente como opressão e impacto da colonização racista.

Juntos racismo e sexismo nos recalcam diariamente pelos meios de comunicação. Todos os tipos de publicidade e cenas cotidianas nos aferem a condição de que não seremos bonitas e atraentes se não mudarmos a nós mesmas, especialmente o nosso cabelo. Não podemos nos resignar se sabemos que a supremacia branca informa e trata de sabotar nossos esforços por construir uma individualidade e uma identidade.

Como nas lutas organizadas que aconteceram nos anos 1960 e princípios da década de 1970, as mulheres negras, como indivíduos, devemos lutar sozinhas por adquirir a consciência crítica que nos capacite para examinar as questões de raça e beleza e pautar nossas escolhas pessoais de um ponto de vista político.

Existem momentos em que penso em alisar o meu cabelo só por capricho, aí me lembro que, mesmo que esse gesto pudesse ser simplesmente festivo para mim, uma expressão individual de desejo, eu sei que gesto semelhante traria outras implicações que fogem ao meu controle. A realidade é que o cabelo alisado está vinculado historicamente e atualmente a um sistema de dominação racial que é incutida nas pessoas negras, e especialmente nas mulheres negras de que não somos aceitas como somos porque não somos belas.

Fazer esse gesto como uma expressão de liberdade e opção individual me faria cúmplice de uma política de dominação que nos fere. É fácil renunciar a essa liberdade. É mais importante que as mulheres façam resistência ao racismo e ao sexismo que se dissemina pelos meios de comunicação, e tratarem para que todo aspecto da nossa auto-representação seja uma feroz resistência, uma celebração radical de nossa condição e nosso respeito por nós mesmas.

Mesmo não tendo usado o cabelo alisado por muito tempo, isso não significa que eu era capaz de desfrutar ou realmente apreciar meu cabelo em estado natural. Durante anos, ainda considerava isso um problema. Ele não era natural o suficiente, crespo o necessário para fazer um black interessante e decente, o cabelo era muito fino. Essas queixas expressavam a minha continua insatisfação. A verdadeira liberação do meu cabelo veio quando parei de tentar controlar em qualquer estado e o aceitei como era.

Só há poucos anos é que deixei de me preocupar com o quê os outros possam dizer sobre o meu cabelo. Só nesses últimos anos foi que eu sentir consecutivamente o prazer lavando, penteando e cuidando do meu cabelo. Esses sentimentos me lembram o aconchego e o deleite que eu sentia quando menina, sentada entre as pernas de minha mãe, sentindo o calor do seu corpo e do seu ser enquanto ela penteava e trançava o meu cabelo.

Em uma cultura de dominação e antiintimidade, devemos lutar diariamente por permanecer em contato com nos mesmos e com os nossos corpos, uns com os outros. Especialmente as mulheres negras e os homens negros, já que são nossos corpos os que freqüentemente são desmerecidos, menosprezados, humilhados e mutilados em uma ideologia que aliena. Celebrando os nossos corpos, participamos de uma luta libertadora que libera a mente e o coração.

*Bell Hooks, pseudônimo de Gloria Jean Watkins nascida em 25 de setembro de 1952. É escritora e ativista feminista. Seus estudos se concentram nas rlações entre raça, classe social e gênero, investigando o modo como estes fatores relacionados produzem e perpetuam sistemas de opressão e dominação. Tem cerca de 30 livros publicados além de numerosos artigos acadêmicos. Sua perspectiva tem sido associada ao pensamento denominado "feminismo posmoderno".

Publicado em: Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y Artista de Cuba, janeiro-fevereiro de 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.

a versão aqui reproduzida foi extraída de Coletivo Marias