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terça-feira, 29 de julho de 2008

Tecnologia ativismo e terrorismo, algumas fronteiras

Iñaki Arzoz e Andoni Alonso

"Ou luta ou se cala. Não é tempo de queixas". John Zerzan

Detido há 10 anos, que lições nos deixa Theodore Kaczynski

Nessa irreversível globalização tecnológica não é ouro tudo que reluz. Assim ao menos pensam alguns. Diante dos discursos triunfantes de Bill Gates ou Nicholas Negroponte, ouvem-se numerosas vozes críticas, cada vez mais severas, diante do avanço irreversível de uma impiedosa economia globalizada - segundo Manuel Castells: mais perigosa em certas ocasiões que uma bomba de neutrons - e de uma técnica desumana que arrasa tanto o meio ambiente como as distintas culturas vernáculas.

O velho rei Ludd está de parabéns, vendo como seus seguidores não somente não têm desaparecido, como também têm-se reproduzido e tentam revolucionar este estado de dominação tecnológica, amiúde, por meio da mesma tecnologia. Internet ferve de páginas "neoluditas" onde incluem-se arquivos e livros eletrônicos para os fieis súditos à causa rebelde do fantasioso Ned Ludd. Nas filas destes novos luditas podemos contar os famosos Hakim Bey ou John Zerzan e, naturalmente, Theodore Kaczynski, mais conhecido como Unabomber, cujo apelido já é um sinônimo de neoludismo do século XX.

Este é hoje o protagonista de nossa seção, um anti-herói ludita, não tanto por suas idéias – legítimas em muitos aspectos – mas por seus métodos atrozes e absurdos, que sem dúvida atingiram seu objetivo: suas críticas foram ouvidas e conhecidas popularmente.

Um intelectual brilhante

Theodore Kaczynski (1941). Este ex-professor de matemática da Universidade de Berkeley passou à história como um dos casos de intelectuais mais singulares do século (a revista People concedeu-lhe em 1996 o prêmio como uma das personalidades mais estranhas do momento). Um intelectual brilhante, segundo as declarações de seus companheiros e professores, porém de caráter antisocial, com um grande talento pela matemática, abandona sua promissora carreira universitária em 1969 sem maiores explicações, para dedicar-se a trabalhos semi-especializados, até que finalmente retira-se para os bosques de Montana, para viver como um ermitão em uma cabana.

Kaczynski confessou posteriormente que desde 1979 não havia cobrado nenhum tipo de salário, isto é, que viveu 17 anos sem remuneração, completamente autosuficiente, como Thoreau – o modelo dos luditas norte-americanos – na cabana Walden.

Ao mesmo tempo, desde 1978, e esta é a parte mais notória de sua “carreira pública”, envia pelo correio uma série de bombas artesanais – num total de 23 -, a diferentes personalidades da universidade (daí o apelido: Una-bomber) e de empresas de informática (entre eles Bill Gates), cujo resultado foram 22 feridos e mutilados e 2 mortos. A razão que argumentou para sua campanha terrorista é um tópico do neoludismo: o desenvolvimento tecno-econômico ameaça com a destruição do mundo.

Portanto, segundo seu raciocínio, todo aquele que colabore com o desenvolvimento da tecnologia é cúmplice do previsível genocídio da humanidade. 1995 foi o ano Unabomber por excelência, pois conseguiu que o “Washington Post” publicasse, pois prometeu que se isso ocorresse já não enviaria mais bombas, seu libelo entitulado:”Manifesto: Industrial Society and Its Future” (Sociedade Industrial e seu futuro), (tradução espanhola no “El manifiesto Unabomber”, Coletivo Likiniaño, 1999).

Espaço na mídia

E então o FBI enlouqueceu, começando uma campanha nacional com a distribuição de supostos retratos do terrorista, um rosto sinistro com bigode, oculto por trás de óculos negros e sob um capuz. A busca do inimigo público número 1 se estendia demasiadamente e ademais, o terrorista ganhava terreno no espaço da mídia. O contra-ataque da polícia interestadual não podia ser mais curioso: humilharam a Kaczynski chamando-o de terrorista a assassino em série, esperando com isso desacreditar seu Manifesto.

E justamente a chave do caso, mais que nos atentados, estava neste Manifesto. De estilo lacônico e severo, porém bem documentado e, segundo os especialistas, dá seqüência à linha crítica contra a tecnologia do sociólogo francês Jacques Elull (com ecos de Mumford y Winner), este Manifesto não passou despercebido entre a intelectualidade norte-americana. Pois manifestava sem rodeios o desespero de uma ampla minoria alternativa – desde ecologistas a esquerdistas marginais – que vêem o progresso acabar com uma forma de vida “natural” e que vai impor outra dominação do império da tecnologia.

Por ele, este texto – um dos manifestos definitivos da nascente cibercultura junto à Declaração de Perry Barlow e o Manifesto de Dona Haraway sobre o cyborg – se começa a utilizar como livro de textos em cursos universitários (enquanto o FBI efetua infrutíferas buscas em vários campus suspeitos) onde é distribuido amplamente, tanto em papel como na Internet, o qual converteu-se em um pequeno best-seller da contracultura.

Washington Post

O Manifesto expressa, de forma radical, que nossa sociedade aproxima-se do desastre, afirmação que, por outra parte, o Clube de Roma mostra-se disposto a aceitar, apesar de que não compartilha com os remédios violentos de luditas como Unabomber. Já não adianta negociar reformas ou mudanças nos estabelecimentos tecno-industriais, e muito menos agora, envolvidos como estamos com a economia ultratecnológica e virtual dessa grande rede. Nem sequer a esquerda é capaz de encontrar um ponto de equilíbrio entre as idéias e os métodos para mitigar seus efeitos ou atrasar seu avanço, pois já faz tempo que perdeu-se o norte e conforma-se com as migalhas que o duro mercado livre lhe oferece.

Ainda que haja algo tão familiarmente norte-americano nessa visão, ao mesmo tempo populista e individualista, de Unabomber, que não é de se estranhar que algum tempo depois, mais tarde, o jornal “Washington Post” publicou um artigo com um surpreendente título “Ex ’pluribus’, Unabomber”, imitando assim a velha inscrição que aparece nas notas dos dólares: “de muitos, um só povo”. E o que acontece é que detemo-nos um instante a pensar, seguramente toma-nos um forte desejo de que Unabomber e os luditas podem ter algo de razão, e que provavelmente, de imediato ou mais tarde, dirigimo-nos até uma catástrofe global. Esta é a sensação que transmite o Manifesto, e aí reside seu particular atrativo.

La cárcel

Pode-se afirmar que Unabomber é uma espécie de “anarquista conservador”, defensor do individualismo norte-americano e muito distante de qualquer tentação comunista, o qual faz-se ainda mais interessante para a intelectualidade norte-americana. O indivíduo na solidão ou muito enrraigado em uma pequena comunidade – o neo-pioneiro ecologista -, é a única esperança para sobreviver distante dos fluxos de poder internacionais, das corporações multinacionais ou de instituições como a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou o Fundo Monetário Internacional (FMI). Não é de se estranhar que, pouco depois da prisão de Unabomber, um dos anarquistas teóricos mais conhecidos e respeitados, John Zerzan, foi visitá-lo no cárcere.

E tampouco foi casual porque Zerzan, durante muitos anos, foi o candidato mais provável para ser o verdadeiro Unabomber (apesar de declarar-se pacifista). Muitos consideravam que sua idéia de um “Futuro Primitivista” parecia-se muito com os postulados de Unabomber, o que se confirmou realmente, segundo todos os indícios, no claro instigador intelectual das revoltas de rua de 1999 contra a OMC em Seattle e contra a recente reunião do FMI em Nova York.

Internauta e pacifista...

Estes são os herdeiros de Unabomber,Unabomber a nova geração de luditas; jovens inconformados que se coordenam pela Internet para montar barricadas contra a globalização; o ludismo conservador, anti-tecnológico e sangrento, derivando até um ludismo possibilista, internauta e pacifista.

, como se sabe, foi finalmente detido em 1998, sua exígua cabana de madeira transportada em um reboque para ser exaustivamente analisada e, diante das provas encontradas, finalmente acusado.

Depois de longo tempo do processo e um sem-fim de sutilezas legais de Unabomber e seus advogados, uma espera mais que provável pela condenação – a prisão perpétua sem indulto ou perdão, tal como foi pedido pelo juiz -, e pelo que parece, Walt Disney vai filmar o caso (suponhamos que devam incluir a delação de seu irmão, que cobrou um milhão de dólares de recompensa).

Ninguém parece defender hoje os métodos de Unabomber, moral ou estrategicamente, porém seu Manifesto seguirá inquietando-nos durante muito tempo.

Os velhos luditas nunca morrem...

Iñaki Arzoz y Andoni Alonso - São licenciados em Belas Artes e doutor em Filosofìa, respectivamente, pela Universidad del País Vasco. Tradução e adaptação do texto por Luiz Cirne.

Texto pentencente a biblioteca Bitniks.es, revista espanhola parceira há oito anos da NovaE, que os reedita e republica com exclusividade em português. O real é atual. Credibilidade não envelhece.

1999-2009 - NovaE - !0 anos - Porque história é para ser contada.

A sua voz tem importância? NOAM CHOMSKY sobre as causas da guerra no Iraque

NOAM CHOMSKY

"É o petróleo, estúpido!"

O acordo que se desenha entre o ministério iraquiano do Petróleo e quatro companhias petrolíferas ocidentais levanta questões delicadas quanto aos motivos da invasão e da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos. Estas questões deviam ser levantadas pelos candidatos às eleições presidenciais e discutidas seriamente nos Estados Unidos, assim como no Iraque ocupado. A análise é de Noam Chomsky.

O acordo que se perfila entre o ministério iraquiano do petróleo e quatro companhias petrolíferas ocidentais levanta questões delicadas quanto aos motivos da invasão e da ocupação do Iraque pelos Estados Unidos. Estas questões deviam ser levantadas pelos candidatos às eleições presidenciais e discutidas seriamente nos Estados Unidos, assim como no Iraque ocupado, onde parece que a população desempenha apenas um papel menor - se é que desempenha - na definição do futuro do país.

As negociações relativas à renovação das concessões petrolíferas, perdidas aquando das nacionalizações que permitiram aos países produtores recuperar o controle dos seus próprios recursos, estão bem encaminhadas para serem entregues à Exxon Mobil, Shell, Total e BP. Estes parceiros originais da Companhia Petrolífera Iraquiana são acompanhados agora pela Chevron e por outras companhias petrolíferas de menor dimensão. Estes contratos negociados sem concorrência, aparentemente redigidos pelas companhias petrolíferas com a ajuda dos oficiais americanos, foram preferidos às ofertas formuladas por mais de 40 outras companhias, especialmente chinesas, indianas e russas.

"O mundo árabe e parte das população americana suspeitavam que os Estados Unidos tinham entrado em guerra precisamente para proteger a riqueza petrolífera que estes contratos procuram garantir" escreveu Andrew E. Kramer no New York Times. A referência de Kramer a uma suspeita é um eufemismo. É além disso mais provável que a ocupação militar tenha ela própria impulsionado a restauração de uma odiada Companhia Petrolífera Iraquiana, instalada na época da dominação britânica afim de "se alimentar com a riqueza do Iraque no quadro de um acordo notoriamente desequilibrado", como escreveu Seamus Milne no Guardian.

Os últimos relatórios evocam atrasos na apreciação das ofertas. O essencial desenrola-se sob o signo do segredo e não seria surpreendente que surgissem novos escândalos.

A necessidade dificilmente poderia ser mais premente. O Iraque possui provavelmente a segunda reserva mundial de petróleo, que se caracteriza além disso por baixos custos de extracção: sem permafrost¹, nem areias betuminosas a transpor, nem perfuração em águas profundas para empreender. Para os planificadores americanos, é imperioso que o Iraque permaneça, na medida do possível, sob o controlo dos Estados Unidos, como um Estado cliente dócil apropriado para acolher bases militares em pleno coração da primeira reserva energética mundial. Que esses eram os objetivos fundamentais da invasão foi sempre claro, apesar da cortina de fumaça de sucessivos pretextos: Armas de destruição maciça, ligações de Saddam com a Al-Qaeda, promoção da democracia e da guerra contra o terrorismo - o qual se desenvolveu radicalmente com a própria invasão, como era previsível.

Em novembro último, estas preocupações tornaram-se explícitas quando o Presidente Bush e o Primeiro ministro iraquiano, Nouri Al-Maliki, assinaram uma "Declaração de princípio", com total desprezo pelas prerrogativas do Congresso americano e do Parlamento iraquiano, assim como da opinião das respectivas populações.

Esta Declaração permite uma presença militar indefinida no Iraque, em coerência com a edificação em curso de gigantescas bases aéreas em todo o país, e da "embaixada" em Bagdade, uma cidade na cidade, sem qualquer semelhança em todo o mundo. Tudo isto não é construído para ser em seguida abandonado.

A declaração encobre igualmente uma descarada afirmação quanto à exploração dos recursos do Iraque. Nela se afirma que a economia iraquiana, isto é os seus recursos petrolíferos, deve ser aberta aos investimentos estrangeiros, "especialmente americanos". Isto é quase como um anúncio de que vos invadimos para controlar o vosso país e dispor de um acesso privilegiado aos vossos recursos.

A seriedade destas intenções foi sublinhada pelo "signing statement"² do Presidente Bush declarando que rejeitará qualquer texto do Congresso suscetível de restringir o financiamento necessário para permitir "o estabelecimento de qualquer instalação ou base militar necessária para o abastecimento das Forças Americanas que estão permanentemente estacionadas no Iraque" ou o "controle dos recursos petrolíferos iraquianos pelos Estados Unidos".

O recurso extensivo aos "signing statements", que permitem ao poder executivo estender o seu poder, constitui outra das inovações práticas da administração Bush, condenada pela American Bar Association (Associação de advogados americanos) como contrária ao Estado de direito e à separação constitucional dos poderes".

Sem surpresa, a declaração provocou imediatos protestos no Iraque, entre os quais dos sindicatos iraquianos, que sobrevivem apesar das duras leis anti-sindicais, instituídas por Saddam e mantidas pelo ocupante.

Segundo a propaganda de Washington, é o Irã que ameaça a dominação americana no Iraque. Os problemas americanos no Iraque são todos imputados ao Irã. A Secretária de Estado Condoleeza Rice sugere uma solução simples: "as forças estrangeiras" e os "exércitos estrangeiros" deveriam ser retirados do Iraque - os do Irã, não os nossos.

O confronto quanto ao programa nuclear iraniano reforça ainda as tensões. A política de "mudança do regime" conduzida pela administração Bush a respeito do Irã é acompanhada da ameaça do recurso à força (neste ponto Bush não é contraditado por qualquer dos dois candidatos à sua sucessão). Esta política igualmente legitima o terrorismo em território iraniano. A maioria dos americanos prefere a via diplomática e opõe-se ao uso da força, mas a opinião pública é em grande parte irrelevante, e não só neste caso.

Uma ironia é que o Iraque está se transformando pouco a pouco num condomínio americano-iraniano. O governo de Maliki é a componente da sociedade iraquiana sustentada ativamente pelo Irã. O chamado exército iraquiano - exactamente uma milícia entre outras - é largamente constituído pela brigada Badr, treinada no Irã e que foi constituída do lado iraniano durante a guerra Irã-Iraque.

Nir Rosen, um dos correspondentes mais astuciosos lá presentes e profundo conhecedor da região, salienta que o alvo principal das operações militares conduzidas conjuntamente pelos Estados Unidos e por Maliki, Moqtada Al-Sadr, já não recolhe os favores do Irã: independente e beneficiando de apoio popular, esta facção é perigosa para este país.

O Irã, segundo Rosen, "apoiou claramente o Primeiro ministro Maliki e o governo iraquiano, na altura do recente conflito em Bassra, contra o que eles descrevem como ‘os grupos armados ilegais' (do exército Mahdi de Moqtada)", "o que não é surpreendente tendo em conta que o seu principal testa de ferro no Iraque, o Conselho Supremo Islâmico Iraquiano, apoio essencial do governo Maliki, domina o Estado iraquiano."

"Não há guerra por procuração no Iraque", conclui Rosen, "porque os Estados Unidos e o Irã partilham o mesmo testa de ferro".

Podemos presumir que Teerã gosta de ver os Estados Unidos instalarem-se e apoiarem um governo iraquiano receptivo à sua influência. Para o povo iraquiano porém este governo constitui um verdadeiro desastre e vai provavelmente prejudicá-lo mais.

Em termos de relações externas, Steven Simon sublinha que a estratégia contra-insurrecional atual dos Estados Unidos "alimenta as três ameaças que pesam tradicionalmente na estabilidade dos Estados do Médio Oriente: o tribalismo, os senhores da guerra e o sectarismo." Isto poderia desembocar no surgimento de um "Estado forte e centralizado, dirigido por uma junta militar que poderia assemelhar-se" ao regime de Saddam. Se Washington conseguir os seus fins, então as suas ações estão justificadas. Os atos de Vladimir Putin, quando conseguiu pacificar a Tchechênia de uma maneira bem mais convincente que o general David Petraeus no Iraque, suscitam contudo comentários de outra natureza. Mas isto são eles, nós somos os Estados Unidos. Os critérios são portanto totalmente diferentes.

Nos Estados Unidos, os Democratas são reduzidos ao silêncio pelo pretenso sucesso da ofensiva militar americana no Iraque. Mas o seu silêncio trai a ausência de oposição de princípio à guerra. Segundo a sua forma de ver o mundo, o fato de se alcançarem os fins justifica a guerra e a ocupação. Os apetitosos contratos petrolíferos são obtidos com a conquista do território.

De fato, a invasão no seu conjunto constitui um crime de guerra - crime internacional supremo, que difere dos outros crimes de guerra porque gera, segundo os próprios termos do julgamento de Nuremberg, todo o mal causado em seguida. Isto está entre os assuntos impossíveis de abordar na campanha presidencial ou em qualquer outro quadro. Por que estamos no Iraque? Qual é a nossa dívida para com os iraquianos por ter destruído o seu país? A maioria do povo americano deseja a retirada das tropas americanas do Iraque. A sua voz tem importância?


Publicado em Khaleej Times a 8 de Julho de 2008, disponível em chomsky.info.

Tradução de Carlos Santos (esquerda.net)

[1] Permafrost - tipo de solo das regiões árticas, permanentemente congelado.

[2] Ato pelo qual o Presidente dos Estados Unidos modifica o significado de um texto de lei.

Entenda o embate na Argentina 2

Leia também: Entenda o embate na Argentina (ruralistas do agronegócio exportador versus Cristina Kirchner

NOVO BLOCO CONSERVADOR: Argentina, o plantio de ventos e os furacões

O barco argentino acaba de entrar, sem timoneiro, em um mar agitado e cheio de arrecifes. Formou-se um bloco entre o capital financeiro internacional e nacional, os grandes exportadores de grãos, a velha oligarquia latifundiária, as grandes indústrias estrangeiras e a maioria das classes médias urbanas e rurais. Este bloco acaba de vencer o governo e rejeita as tentativas de aplicar uma política social redistributiva.


Internacional| 29/07/2008
O plantio de ventos
Vale a pena repassar a crônica dos acontecimentos. No ano passado, o então presidente argentino Néstor Kirchner acreditou fazer uma hábil manobra e "reforçar" seu problemático partido peronista cooptando dirigentes da União Cívica Radical e do Partido Socialista, que serviram para reforçar a maioria eleitoral que elegeu sua esposa como presidenta e para controlar algumas províncias. Como tinha certeza de que teria maioria em ambas as Câmaras do Congresso, ao qual não atribuía nenhum papel –a concessão e distribuição de verbas públicas tinha sido delegada ao Executivo, que governava emitindo decretos–, Kirchner nem pensou que o Congresso poderia ser obrigado a dirimir uma questão política importante.

Já no governo, sua esposa, Cristina Fernández Kirchner, tentou controlar seu partido e deixou abandonados à própria sorte esses "transversais" socialistas ou radicais expulsos, como o vice-presidente Cobos. Mas para disputar com ela o Partido Justicialista, todas as direitas peronistas coligaram-se. A coisa não era muito grave, apesar de o ex-presidente Duhalde apoiar-se em um tecido mafioso (polícia, droga, clientelismo político) na província de Buenos Aires, o governador de San Luis ter uma forte base clientelística, assim como o de Córdoba, e os ex-governadores menemistas manterem seus aparatos policiais.

O antiperonismo visceral de radicais, socialistas K e conservadores de todo tipo que integravam a oposição impedia a união entre ambos os setores, e Kirchner acreditou poder contrabalançar o grosso da direita do seu partido com outra parte dessa direita, ou seja, com dirigentes sindicais burocratas e corruptos da Confederação Geral do Trabalho, cooptando uma parte dos líderes da Central de Trabalhadores Argentinos e dos grupos de piqueteiros. Enquanto isso, para aumentar as exportações fomentou o cultivo de soja, que quadruplicou durante seu mandato, e deu todo tipo de apoios e facilidades aos grandes exportadores de grãos e ao capital financeiro. Tentou, também, manter o dólar alto, para favorecer as exportações argentinas e, com fundos estatais, subsidiou transportes, combustíveis, serviços públicos e até grandes supermercados para manter os preços baixos.

Sua política econômica buscava utilizar o dinheiro proveniente das exportações e dos impostos para subsidiar e desenvolver a indústria e impedir o aumento dos salários reais, com a finalidade de aumentar os lucros dos industriais, confiando em que as taxas chinesas de crescimento econômico permitiriam continuar reduzindo o desemprego (próximo a 10%) e ampliar o mercado interno.

Mas sua esposa assumiu o poder quando começava o período das vacas magras — queda do dólar em escala mundial, grave situação econômica nos Estados Unidos, enorme aumento do preço dos combustíveis e, portanto, de fertilizantes e inseticidas, inflação importada—, que tornou cada vez mais difícil manter essa política. Para obter mais recursos, Cristina Fernández pensou em um imposto sobre os rendimentos extraordinários dos exportadores de soja, o qual, como bônus, deveria reduzir a tendência a abandonar os cultivos de alimentos e a pecuária, com o conseguinte aumento dos preços para o consumo. A medida era necessária e justa, uma vez que o Estado tem direito e obrigação de impedir que os preços do mercado internacional determinem os preços internos para o consumo e de evitar que se estenda o monocultivo de uma forragem que em seu avanço destrói o solo e elimina alimentos, vacas, camponeses, povoados, bosques.

Mas a resolução foi adotada com falta de habilidade, ignorância e prepotência, sem consultas prévias e sem prever conseqüências. Além disso, segundo a Constituição, é o Parlamento que deve determinar os impostos, e não o Poder Executivo.

Os furacões
A imposição do mesmo imposto a grandes e pequenos produtores, àqueles que produzem em boas terras e próximos aos portos, com altos rendimentos, e aqueles que plantam em terras marginais, uniu, por trás dos especuladores do grande capital e dos grandes latifundiários e exportadores, pequenos produtores, locatários e rentistas, que se transformaram em massa de manobra política dos primeiros. Aos pequenos e grandes capitalistas rurais somaram-se imediatamente as classes médias dos povoados e a elas somaram-se ainda a oposição visceralmente racista e antiperonista que grita contra o governo "dos negros e dos vagabundos" e a direita peronista. O kirchnerismo conseguiu, assim, unificar o anti-solidarismo e o conservadorismo com a reação e o racismo. Somando a soberba à inabilidade, o governo esperou mais de 90 dias de fechamento de estradas e desabastecimento nas cidades para inventar uma motivação para esta justa retenção do lucro extraordinário dos plantadores de soja e deixou passar cem dias antes de deixar a aprovação de seu projeto com o Parlamento, como correspondia desde o primeiro dia.

Nas Câmaras, também pagou o preço de seu autoritarismo, dado que, por não terem sido ouvidos, consultados nem convencidos, deputados e senadores peronistas votaram junto com a oposição e pelos grandes grupos cerealistas. Para cúmulo, os radicais e socialistas K, e entre eles o vice-presidente Cobos, quando sugeriram modificar a medida para separar os pequenos produtores de monopolistas e desmontar o protesto, foram vaiados e marginalizados. Na discussão parlamentar, naturalmente, afastaram-se do governo e o voto do vice-presidente e presidente do Senado, Julio Cobos, foi decisivo para enterrar não só o imposto, mas também toda a política do governo. Agora, a direita está unida, na ofensiva e encontrou o candidato a presidente que precisava, nada menos que no vice de Cristina Fernández. O partido transversal também passou desta para melhor e Kirchner deverá defender sua maioria no partido peronista.

O governo está desprestigiado e perdeu sua maioria absoluta em ambas as Câmaras; e o Parlamento começou a funcionar e vai exigir-lhe que explique por que não tomou medidas contra os grandes exportadores que fraudaram mais de 1,2 bilhões de dólares ao fisco e roubaram de locatários. A economia sofreu um grande golpe e os subsídios não poderão ser tão volumosos como até agora. O barco argentino acaba de entrar, sem timoneiro, em um mar agitado e cheio de arrecifes.

O que há de ontem para hoje
A Argentina é um país cuja concentração urbana foi muito precoce, sendo notável já no fim do século XIX. Isto deu origem a um forte e numeroso movimento operário industrial e a uma vasta classe média nas principais cidades, quando a burguesia ainda era muito fraca e o eixo das classes dominantes estava constituído pelo capital estrangeiro e pelos latifundiários que controlavam o Estado.

As classes médias urbanas, descendentes de imigrantes, exigiram seu lugar no país, disputando com a oligarquia. Isso teve como resultado o voto universal em 1912, a Reforma Universitária em 1918 e o apoio urbano a Hipólito Yrigoyen. O movimento operário, em compensação —classista, anarquista e socialista— seguiu um caminho independente e o governo das classes médias urbanas e rurais, yrigoyenista, cometeu as matanças de peões na Patagônia e assassinou 3000 operários na Capital durante a Semana Trágica. Esse foi o primeiro choque entre operários e um governo “progressista” e entre aqueles e as classes médias.

Em 1930, o golpe da direita oligárquica e da direita anti-yrigoyenista da União Cívica Radical foi apoiado pelas classes médias urbanas e pelo partido de esquerda majoritário, o socialista, e o resultado foi a Década Infame, o governo pró-imperialista da oligarquia e da fraude, que as grandes greves operárias de 1935-36 comoveram, preparando o caminho, em 1945, para o triunfo de Juan Domingo Perón, com o apoio dos sindicatos e dos operários industriais e rurais, mas contra a aliança entre o imperialismo norte-americano, os conservadores, a UCR, os comunistas e os socialistas, com o apoio das classes médias urbanas. Em 1955, a oligarquia, com o apoio destas últimas, do exército e da Igreja, que fazem parte das mesmas, derrotou Perón, que fugiu sem combater.

Mas, em 1957, o presidente Arturo Frondizi, que havia chegado ao poder graças à ditadura (e com o apoio do próprio Perón) quis abrir o caminho para a privatização do petróleo e conceder a educação pública à Igreja: os estudantes, então, uniram-se aos operários na oposição às duas medidas e começou um processo de aproximação entre aqueles, majoritariamente peronistas, que resistiam à margem das ordens de Perón, exilado na Espanha franquista, e a juventude das classes médias urbanas. Essa aproximação tornou-se aliança nos anos setenta, quando muitos filhos de antiperonistas furibundos, radicalizados pela revolução cubana, maio de 68 e o Vietnã, acreditando que se aproximavam da classe operária tornaram-se peronistas para combater melhor a ditadura militar pró-oligárquica, que precisou trazer Perón para frear o processo de lutas operárias radicais e de guerrilhas, até que preparou o golpe militar.

A ditadura de 1976 encontrou as classes médias divididas entre o setor que, unido aos operários, resistiu e foi massacrado às dezenas de milhares, e o numeroso setor conservador, anti-operário e racista que tolerou a ditadura até que ela caiu sozinha após a aventura inglória nas Malvinas. Depois da ditadura, o peronismo apresentou uma fórmula presidencial de direita incapaz de entusiasmar os operários, e as classes médias arrastaram setores operários e populares atrás do candidato da União Cívica Radical, o neoliberal Raúl Alfonsín. Ele aliou-se à direita peronista e cedeu a presidência para Carlos Menem, o grande privatizador, ladrão e pró-imperialista, cuja política de direita contou com o apoio do aparato peronista e com as esperanças da maioria das classes médias e dos operários.

Mas, em dezembro do 2001, diante do congelamento dos depósitos bancários dos pequenos poupadores e do desmoronamento da credibilidade nos partidos tradicionais, uma parte importante das classes médias urbanas opôs-se à corrupção ao grito de “fora todos!” e deu seu apoio aos desempregados, com a consigna de “piquetes e panelas, a luta é uma só!”. O governo de Néstor Kirchner, após várias vicissitudes, foi o resultado desta nova aproximação entre os setores populares. Contudo, a rápida recuperação econômica e o alto preço das matérias-primas agrícolas transformaram os ex-colonos e locatários em rentistas que alugam suas terras para grupos financeiros que exploram a soja e, com seus lucros extraordinários, compram ou constroem casas nas cidades, transformando-se em especuladores imobiliários e financeiros. E as classes médias urbanas reforçaram seu afã por diferenciar-se “dos negros”, dos operários, desempregados e do subproletariado urbano que, segundo eles, são subsidiados pelo governo, esquecendo o “fora todos!” para pensar apenas no próprio bolso. Assim, formou-se um bloco entre o capital financeiro internacional e nacional, os grandes exportadores de grãos, a velha oligarquia latifundiária, as grandes indústrias estrangeiras e a maioria das classes médias urbanas e rurais.

Este bloco acaba de vencer o governo e rejeita as tentativas de aplicar uma política social redistributiva. Como em 1930, 1945, 1955, 1976, a direita tem agora uma base de massas. A falta de habilidade, o autoritarismo dos meios oficiais, sua incapacidade para fazer política, apesar de terem minado a credibilidade do governo não são a causa principal desta evolução, que reside nas mudanças econômicas e sociais internacionais. Agora, ou os Kirchner buscam um apoio social com medidas de fundo e tentam separar setores importantes da classe média do bloco reacionário no qual militam, ou a direita vai conseguir mais vantagens do seu triunfo nas ruas e no Parlamento, porque já declarou que não se conforma com “trocar a coleira do cachorro”, senão que exige “trocar o cachorro”. Ou seja, que não se dá por satisfeita com as mudanças no gabinete que já conseguiu impor, senão que exige a aceitação total de sua política

Guillermo Almeyra é membro do Conselho Editorial de SINPERMISO.

Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores

Obama e novas promessas nas relações internacionais dos EUA

O DISCURSO DE BERLIM

Obama na Europa

É difícil acreditar que Obama fará tudo o que prometeu, principalmente, no que se refere à construção de uma face mais humana da grande nação do Norte. A promessa foi feita, resta esperar e torcer que ele vá ainda mais longe do que indicou em Berlim. Não há dúvida, que com ele começará uma nova fase da história mundial e o impacto disto mundo afora não será pequeno, inclusive no Brasil. A análise é de Luís Carlos Lopes.

Luís Carlos Lopes
(26/07/2008)

Barack Obama, virtual novo presidente dos EUA, foi recebido como tal, na sua recente visita à Europa. Parece não haver mais qualquer dúvida sobre sua vitória, fortemente pautada na atual crise econômica e social norte-americana, bem como na malograda guerra e ocupação do Iraque. O outro fator que assegura o seu quase certo triunfo é o imenso índice de rejeição local e internacional do atual mandatário do país mais rico da face da Terra. Este é, sem dúvida, o principal cabo eleitoral do primeiro afro-americano a se candidatar ao posto maior do país.

Há uma certa ironia no caso. O texano representa uma figura conservadora típica do país. Suas posturas e crenças remetem ao que alguns chamam de América profunda, isto é, do núcleo fundador dos mitos nacionais do grande país do hemisfério norte. Sua provável substituição por um filho de um queniano imigrante, casado com uma mulher branca norte-americana, muda o sentido das representações midiáticas mais recentes da persona presidencial. De algum modo, busca-se um novo eixo, agora pautado nas origens multiétnicas do país e na forte presença negra, quase sempre em posição subalterna. Ao que parece a América dos negros, hispânicos, orientais e outros ganhará maior visibilidade e reconhecimento no novo cenário político que se avizinha.

De outro mirante, Obama representa a materialização do american dream, alguém que veio de baixo, da periferia dos grandes centros, mestiço de feições africanas, que "venceu" com o apoio do sistema educacional do país e de suas instituições democráticas. Ele, antes de chegar ao Senado, era um advogado brilhante formado pelas melhores instituições de ensino locais. Ao contrário do seu antecessor, o provável futuro presidente é proprietário da arte de se comunicar, falando com imenso cuidado para os mais diversos auditórios. Sua simpatia e inteligência lembram as de Kennedy e ele nada tem, felizmente, do yuppie Clinton.

O seu discurso, proferido nas ruas, frente a mais de duzentas mil pessoas, no centro de Berlim, na última quinta-feira, resume seus principais pontos de vista e deve ser lido com atenção. Nesta fala, Obama veio buscar a recuperação da antiga aliança com os países mais ricos da Europa. Não é casual que a Alemanha e a cidade de Berlim tenham sido os locais escolhidos para tão denso pronunciamento. Ele falou de lá para toda a Europa e, aproveitou a oportunidade da internacionalização de sua campanha, dirigindo-se à humanidade.

Escolheu este sítio para lembrar o ponto de partida da hegemonia norte-americana: o fim da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, com a construção do Muro de Berlim. De modo simbólico, retornou ao passado e comemorou o que ele acredita como vitória ocidental, na contenção da expansão soviética do pós-guerra. Falou da história, esquecendo alguns fatos e aumentando a importância de outros, tal como convém a retórica presidencial de um país de tão grande importância.

Há no seu discurso uma versão da história, que volta ao passado, a partir da derrocada do socialismo real de Estado, que deu fim à chamada bipolaridade e à possibilidade mais efetiva de um novo confronto mundial. Esqueceu, dentre outros fatos, que sem a aliança com os soviéticos a vitória sobre a Alemanha Nazista não teria sido possível. Não lembrou do imenso esforço dos povos sob ocupação para se libertarem. Não se poderia esperar mais do candidato, falando para o mundo, sob a concessão do país mais rico da Europa atual.

Ele deu o seu recado, lembrando da OTAN e da necessidade de vigilância contra qualquer possibilidade de oposição à nova ordem internacional criada nos escombros do Muro de Berlim.

Há na mesma fala vários pontos que indicam a desmontagem de alguns aspectos da atual política externa dos EUA. Ao que parece, Obama fará várias inflexões. Talvez a mais importante seja a da mudança de foco militar. Ele disse que vai sair do Iraque, reconhecendo a impossibilidade de vencer. Trocará o país pelo Afeganistão, onde acredita poder controlar a insurgência dos talibãs e o, cada vez maior, tráfico de heroína. Segundo ele, atacar os insurgentes deste último país significaria tirar fôlego da misteriosa rede terrorista internacional (Al-Quaeda) que teria ainda suas bases neste país e no Paquistão.

Aproveitou a ocasião para pedir um maior comprometimento europeu com o mesmo esforço de guerra. De certo modo, pode-se presumir que se estará assistindo a uma nova escalada militar. Não existe ainda como prever, exatamente, o que de fato irá ocorrer.

O candidato, falando como já tivesse sido eleito, despertou, no mesmo discurso, várias esperanças. Reconheceu a responsabilidade norte-americana e chinesa no preocupante atual nível de poluição mundial, deixando a entender que fará importantes mudanças. Falou nos esquecidos da mundialização, prometendo maior justiça aos imigrantes e aos pobres de seu país e do resto do mundo. Disse que irá defender os direitos humanos, onde eles forem desrespeitados, citando a AIDS, os casos de tortura, os problemas na Ásia e na África. Prometeu aos condenados da Terra uma nova posição de seu país, que estaria agora na defesa de todos, reconhecendo erros anteriores.

Pela primeira vez da história da diplomacia de seu país, reconheceu formalmente a necessidade de desarmamento nuclear global. Defendeu a idéia de destruir os arsenais nucleares ainda armazenados no Oriente e no Ocidente. Alertou para o que considera como risco, no que se refere aos arsenais mal guardados e geridos de modo inadequado. Insistiu na política de seu país de evitar o aumento do atual clube atômico internacional. Reafirmou, portanto, a vocação de intervenção e participação em todas as questões eleitas como fundamentais pelos articuladores da política externa dos EUA.

Pode-se concluir que a paz ainda estará longe do seu governo. Haverá uma mudança, mas não a tão sonhada paz negociada. De qualquer forma, Obama anunciou que não vai mais se alinhar automaticamente à política de guerra de Israel. Deixou claro em seu atual périplo pelo mundo que vai preferir a negociação ao confronto. Reconheceu a importância do conflito no Oriente Médio para a paz mundial, vendo que a solução do mesmo é a chave para evitar maiores problemas político-militares. Defendeu o direito à existência do Estado de Israel, bem como o fortalecimento da criação do Estado palestino. Por causa disto, as direitas estão dizendo que ele é muçulmano em pele de cordeiro. Nada mais raivoso e mentiroso.

É difícil acreditar que Obama fará tudo o que prometeu, principalmente, no que se refere à construção de uma face mais humana da grande nação do Norte. A promessa foi feita, resta esperar e torcer que ele vá ainda mais longe do que indicou em Berlim. Não há dúvida, que com ele começará uma nova fase da história mundial e o impacto disto mundo afora não será pequeno, inclusive no Brasil.

AMÉRICA LATINA x UNIÃO EUROPÉIA: manifesto de intelectuais latino-americanos contra a Diretiva de Retorno

Manifesto contra a nova lei da imigração européia
Charge de Carlos Latuff, clique na imagem para ampliar

Intelectuais latino-americanos lançam manifesto contra a recente lei aprovada no Parlamento Europeu, em Bruxelas, que aumenta a repressão sobre imigrantes considerados ilegais, negando-lhes vários direitos e permitindo sua reclusão por muito tempo.

Em 18 de junho deste ano o Parlamento Europeu aprovou a lei chamada de “Diretiva de Retorno”, um pacote de legislação que deve entrar em vigor a partir de 2010. Esse pacote vem merecendo muitas críticas pelo mundo inteiro, inclusive na Europa, porque estabelece diretivas que contrariam a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. Aumenta a repressão sobre os imigrantes cuja situação seja considerada irregular, permitindo inclusive a sua detenção por um ano e meio sem julgamento. Essas diretivas deveriam ser adotadas por todos os países da União Européia.


As críticas ao pacote vêm no bojo de uma série de outras críticas que vem sendo feitas ao Parlamento e à Executiva da União Européia, com sede em Bruxelas, no sentido de que ambos vêm procurando assumir uma autonomia e uma soberania que por vezes soa exagerada. Propôs-se a criação de um cargo semelhante ao do Ministro de Relações Exteriores para a União, além de se falar na criação de um Exército Europeu cujas funções e comando permanecem numa nebulosa, mas que certamente serviria para aumentar a intervenção da Europa em países da África, por exemplo.

Intelectuais da América Latina lançaram o manifesto que transcrevemos abaixo, em consonância também com preocupações manifestas por governos da região, no sentido de que a nova Diretiva de Retorno crie ou intensifique discriminações individuais e coletivas, além de dificultar as relações diplomáticas de um modo geral.

Manifesto contra a lei de imigração européia

Senhores governantes e parlamentares europeus

Alguns de nossos antepassados, poucos, muitos ou todos, vieram da Europa.

O mundo inteiro recebeu com generosidade os trabalhadores emigrantes da Europa.

Agora, uma nova lei européia, ditada pela nascente crise econômica, castiga como crime a livre circulação das pessoas, que é um direito consagrado pela legislação internacional já faz alguns anos.

Isso não é novo, porque desde sempre os trabalhadores estrangeiros são os bodes expiatórios das crises de um sistema que os usa enquanto precisa para logo depois joga-los na lata de lixo.

Isso não é novo, mas é uma infâmia.

A amnésia, que nada tem de inocente, impede que a Europa se lembre de que nada seria sem a ajuda que o mundo inteiro lhe deu: a Europa não seria a Europa sem a matança dos indígenas na América, sem a escravização dos filhos da África, para trazer à luz apenas um par de exemplos desses esquecimentos.

A Europa deveria pedir perdão ao mundo, ou pelos menos agradecer-lhe, ao invés de consagrar em lei a caça e o castigo dos trabalhadores que chegam a seu solo corridos pela fome e pelas guerras que os senhores do mundo lhes dão de presente.

Desde o continente americano, julho de 2008.

ARGENTINA
Adolfo Pérez Esquivel, Premio Nobel da Paz
Atilio Boron, Escritor
Hebe Bonafini, Madres de la Plaza de Mayo
Osvaldo Bayer, Escritor
Hermana Martha Pelloni, Militante Direitos Humanos
Diana Maffía, Filósofa feminista
Rally Barrionuevo, Cantautor
Claudia Korol, Jornalista, Clacso

BOLIVIA
Eduardo Paz, Professor Universitário
Humberto Claure Quezada, Engenheiro, Editor da Revista Patria Grande

BRASIL
Augusto Boal, Teatrólogo
Afrânio Mendes Catani, Professor da USP
Candido Grzyboswki, Sociólogo do IBASE e FSM
Chico Withaker, Sociólogo, FSM
Emilia Vioti da Costa, Historiadora,
Elias de Sá Lima, Engenheiro
Gaudêncio Frigotto, Educador
Heloisa Fernandes, Socióloga, ENFF
Jean Pierre Leroy, Ambientalista, FASE
Jean Marc Von der Weid, Economista agrícola, ASPTA
Joao Pedro Stedile, Ativista social, MST
Mario Maestri, Historiador,
Pedro Casaldaliga, Bispo, poeta
Renée France de Carvalho, Militante internacionalista
Rita Laura Segato, Antropóloga, UNB
Vânia Bambirra, Economista
Vito Gianotti, Jornalista

CANADÁ
Naomi Kleim, Jornalista, escritora, autora de "No Logo"
Pat Mooney, Pesquisador de tecnologías, Premio Nobel Alternativo.
Michael A. Lebowitz, Professor, Simon Fraser University.

CHILE
Cosme Caracciolo, Conf. Nac. de Pescadores Artesanales de Chile.
Luis Conejeros, Presidente do Colegio de Periodistas de Chile.
Marco Enríquez-Ominami, Deputado
Manuel Cabieses, Diretor da revista Punto Final.
Marta Harnecker, Socióloga, escritora
Manuel Holzapfel, Jornalista
Ernesto Carmona, Conselheiro Nacional do Colegio de Periodistas de Chile
Paul Walder, Professor universitário e jornalista
Pedro Lemebel, Escritor
Flora Martínez, Enfermeira
Alberto Espinoza, Advogado
Tomas Hirsch, Porta-voz do Humanismo para Latinoamérica

CUBA
Aleida Guevara, Médica pediatra
Joel Suárez Rodes, Centro Memorial Dr. Martin Luther King

EQUADOR
Alberto Acosta, Economista, membro da Assembléia Constituinte
Carolina Portaluppi, Escritora
Juan Meriguet Martínez, Comunicador
Pavel Égüez, Artista plástico
Hanne Holst, Feminista
Luigi Stornaiolo, Artista plástico
Osvaldo Leon, Jornalista, ALAI
Verónica León-Burch, Produtora de Vídeo

ESTADOS UNIDOS
Saul Landau, Cineasta
Norman Solomon, Jornalista
Susanna Hecht, Professora da UCLA
Richard Levins, Professor de Harvard
Noam Chomsky, Professor do MIT
Peter Rosset, Pesquisador
Fernando Coronil, Historiador e antropólogo da Universidade de Nova Iorque
Mario Montalbetti, Lingüista e poeta
John Vandermeer, Professor da Universidade de Michigan

HAITI
Jean Casimir, Antropólogo, escritor
Camille Chammers, Economista

MÉXICO
Subcomandante Insurgente Marcos, cidadão do mundo no México
Ana Esther Ceceña, Economista, pesquisadora da UNAM
Felipe Iñiguez Pérez
Maria de Jesús González Galaviz
Pablo Gonzalez Casanova, Sociólogo
Luis Hernández Navarro, Jornalista do La Jornada
Beatriz Aurora, Artista
Victor Quintana, Deputado Estadual e dirigente campesino
Raquel Sosa, Escritora, professora da UNAM
Rodolfo Stavenhagen, Relator da ONU para direitos indígenas
Silvia Ribeiro, Pesquisadora

NICARÁGUA
Carlos Mejia Godoy, Cantautor (compositor y cantor)
Ernesto Cardenal, Poeta, escritor e sacerdote
Gioconda Belli, Poetisa e escritora
Luis Enrique Mejia Godoy, cantautor
Mónica Baltodano, deputada, ex-comandante sandinista
Dora Maria Tellez, ex-comandante sandinista
Sergio Ramirez Mercado, escritor

PARAGUAY
Fernando Lugo, bispo licenciado, Presidente eleito do Paraguay
Marcial Gilberto Congon, pedagogo popular
Ricardo Canesse, engenheiro, parlamentar Parlasur

PERU
Aníbal Quijano, sociólogo, escritor
Carmen Pimentel, Psicóloga, escritora
Carmen Lora, Universidad Católica de Perú
Mirko Lauer, poeta, ensaísta
Rolando Ames, cientifico social, escritor.

URUGUAI
Eduardo Galeano, escritor
Antonio Elias, Economista, SEPLA

VENEZUELA
Maximilien Arvelaiz, Diplomata

Organização Mundial de Comércio (OMC) e Brasil

Doha, um erro perigoso

Bélgica e Suíça são famosas pelos chocolates; alguém sabe de algum pé de cacau em Flandres ou na Basiléia? A Alemanha é grande exportadora de cafés industrializados; o leitor já ouviu falar de cafezais no Ruhr? Essas perguntas indicam o que está em jogo na Rodada de Doha: a cristalização da velhíssima divisão internacional do trabalho.

Gilson Caroni Filho

Ao dar sinais de que está disposto a aceitar a proposta encaminhada por Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), que prevê cortes tarifários médios de 54% da indústria nos países em desenvolvimento, o Brasil está dando dois passos atrás e guardando um tropeço mais para frente. Cria uma fratura irreversível na aliança dos países emergentes (G20) e estabelece impasses desnecessários no âmbito do Mercosul.

A declaração do chanceler Celso Amorim de que "na hora da verdade, as avaliações podem não ser as mesmas. Cada país terá de tomar a sua decisão" destoam totalmente da política, até então, adotada no plano externo pelo governo Lula.

Como destacamos em artigo recente, o fundamental é fortalecer o Mercosul e estreitar laços com África do Sul, Índia e China. O que soa como pragmatismo é um preocupante indicativo de capitulação. O que está em curso em Genebra é tão cristalino como água de fonte. Doha, e a OMC-como-um-todo, assim como o GATT, velho antecessor, nada mais são que a cristalização da velhíssima divisão internacional do trabalho: os países outrora ditos "do terceiro mundo" entram com mão de obra e recursos naturais (a preços vis), e os países antes ditos "de primeiro mundo", com tecnologia e manufaturas (com alto valor agregado). Sub-Ricardo, "vantagens comparativas”, fórmulas tão velhas quanto o colonialismo, merecem um lugar de destaque em um antiquário, não na agenda de um governo que estabeleceu uma agenda de inserção soberana no mundo globalizado.

Bélgica e Suíça são famosas pelos chocolates; alguém sabe de algum pé de cacau em Flandres ou na Basiléia? A Alemanha é grande exportadora de cafés industrializados; o leitor já ouviu falar de cafezais no Ruhr? Os exemplos são tantos que não caberiam no espaço desse pequeno artigo. O que interessa é dissipar a cortina de fumaça, derrubar os sofismas que voltaram a embaralhar as cartas da mesa. A começar pelo que se convencionou chamar de luta pela redução de subsídios. Aqui, uma breve explicação se faz necessária.

Há subsídios e subsídios. A "exception culturelle" da França (apesar do uso feito pela direita francesa do conceito de multifuncionalidade), que visa também a preservar culturas e sociedades locais, é uma coisa; o protecionismo estadunidense em prol de gatos gordos daqueles "red states" cujos nomes começam por vogal, outra bem diferente.

Note-se que não ignoramos que, no caso europeu, a sustentação da renda dos agricultores está deixando de ser o pagamento para funções múltiplas, socialmente valorizadas, e não remuneradas pelo mercado, para se transformar em forma de garantir o lugar dos grandes produtores rurais no mercado mundial. Isso posto, há distinções e elas não podem ser ignoradas.

Os produtos primários, de petróleo a grãos, de há muito viraram "commodities", cujos preços são determinados nos mercados compradores sobre os quais o Brasil não tem qualquer ingerência, interferência ou influências. Qual a nosso grau de intervenção no jogo especulativo das Bolsas de Mercadorias de Chicago, Londres ou New York?

A contrapartida não é verdadeira; as cotações internacionais têm implicações no mercado interno, tanto em termos de oferta quanto de preços. Se a saca de arroz está com valor alto no mercado internacional, a troco de quê "nossos" arrozeiros vão querer vender prá mesa do "João", a não ser que ele pague preço de "John", "François" ou "Fritz", que ainda por cima bancam o custo de transporte?

O noticiário que destaca a pressão dos países ricos por abertura, pelos países pobres e "emergentes", de seus mercados "apenas" para bens industriais é, sem eufemismos, conversa mole pra "boi pirata" dormir. Afora os ditos "serviços" (bancos, finanças, seguros e resseguros, os serviços públicos ainda não "globalizados" etc.), há a agenda oculta das ditas propriedades industrial e intelectual, de medicamentos a "software", passando por toda a vastíssima "indústria do entretenimento".

Nesses termos e pelo exposto, a pergunta é se é mais vantajoso para o Brasil "fazer progressos" em Doha ou, em conjunto com outros paises, forçar o impasse? Tendo como meta a adoção de uma política econômica menos dependente de setores exportadores de produtos primários.

Quando o presidente Lula diz que ”o importante é que há decisão política de que nós podemos fazer um acordo, e ele será bom para todo mundo", comete um erro perigoso para quem construiu sua trajetória sob o fogo de negociações difíceis. Nada é “bom para todo mundo" quando o jogo é de soma zero. Estamos falando de imperialismo. Aquele que, para não deixar dúvidas, resolveu voltar a içar velas em águas latinas e caribenhas para garantir recursos naturais e um “mercado realmente livre”.


Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.


RODADA DE DOHA

OMC anuncia fracasso das negociações

Após nove dias de reunião em Genebra, países desistem de chegar a um acordo sobre o avanço da liberalização do comércio mundial. Proposta elaborada pelos EUA é rechaçada pela maioria dos países emergentes. Brasil aceita acordo e causa mal-estar com G-20 e Mercosul.

Maurício Thuswohl

RIO DE JANEIRO – O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, anunciou nesta terça-feira (29) em Genebra que as negociações multilaterais da Rodada de Doha _ que se estenderam por nove dias na cidade suíça _ foram encerradas sem que os países chegassem a um acordo. O fracasso de mais uma tentativa de avanço na liberalização do comércio mundial já era esperado, pois parecia intransponível a divergência entre os países mais industrializados e a maioria dos países emergentes frente a temas como o fim dos subsídios agrícolas ou a abertura de mercados para bens e serviços.

Num último esforço, os diplomatas passaram toda a noite de segunda-feira (28) e parte da madrugada seguinte reunidos a portas fechadas para tentar aprovar o pacote apresentado na véspera por Lamy. Países como o Brasil e a Austrália, que já haviam aceitado o acordo, tentavam mediar as negociações, mas no fim prevaleceram as diferenças entre os Estados Unidos e o bloco liderado por China e Índia. Assim sendo, foi declarada encerrada mais essa tentativa de desbloquear a rodada de negociações iniciada há sete anos na cidade de Doha, no Qatar.

O próprio Pascal Lamy coordenou reuniões de emergência com chineses e indianos, mas um ponto impediu o fim do impasse: o direito às salvaguardas agrícolas especiais concedido aos países em desenvolvimento. Por este mecanismo, os países em desenvolvimento têm o direito de elevar suas tarifas sempre que houver um surto de importação de um determinado produto. Apesar da oposição dos EUA, esse ponto acabou sendo incluído no relatório de Lamy, mas a falta de acordo sobre os detalhes (o diabo mora neles) colocou tudo a perder.

China e Índia defendem o direito de acionar o mecanismo de salvaguardas especiais sempre que as importações de um determinado produto subirem 10% em relação ao volume médio dos últimos três anos. Os EUA, com o apoio da União Européia e a discreta anuência de Japão, Brasil e Austrália, querem que as salvaguardas somente sejam acionadas quando as importações subirem 40% em relação ao volume médio dos últimos três anos. Como ninguém cedeu, as negociações foram encerradas no início da noite desta terça-feira (horário da Suíça).

Uma derradeira tentativa de salvar um acordo será empreendida pelos diplomatas durante a reunião do Comitê de Negociações Internacionais da OMC, que começa em poucos dias, também em Genebra. As possibilidades de reversão do quadro, no entanto, são remotas: “Foi um fracasso, mas espero que, ao menos, o que discutimos aqui durante nove dias sirva de base para uma nova abordagem no futuro”, disse à agência Reuters o ministro do Comércio da Nova Zelândia, Phill Goff.

Chefe da delegação dos EUA, Susan Schwab também evitou falar em morte definitiva da Rodada de Doha: “Os Estados Unidos se mantém comprometidos com a Rodada de Doha. Este não é o momento de se falar em colapso definitivo das negociações. O compromisso dos Estados Unidos continua na mesa, mas esperamos respostas recíprocas”, disse. A realidade, no entanto, é que o fracasso das negociações em Genebra, se não for revertido a tempo, pode significar o enfraquecimento definitivo da própria OMC.

O tom norte-americano durante as negociações foi menos ameno do que o adotado por Schwab ao fim das reuniões. Em entrevista concedida na segunda-feira (28) ao jornal O Globo, um outro representante do governo dos EUA, David Shark, condenou chineses e indianos por não aceitarem o pacote proposto por Lamy: “Infelizmente, uma economia emergente importante _ a Índia _ imediatamente rejeitou o pacote. Em seguida, outra economia emergente _ a China _ abandonou as discussões. Essas ações colocaram a Rodada de Doha em seu mais grave risco nesses sete anos”, disse.

A proposta dos EUA

No pacote apresentado aos países emergentes, os EUA, entre outras coisas, se comprometem a estabelecer um limite de US$ 14,5 bilhões por ano para o subsídio doméstico a seus agricultores. Atualmente, esse limite é de US$ 40 bilhões, mas a redução teria pouco valor prático, pois, para se ter uma idéia, o valor total do subsídio pago nos EUA no ano passado foi de US$ 8 bilhões. A União Européia, por sua vez, aceitou reduzir 80% de seus subsídios domésticos para um limite máximo de US$ 36 bilhões por ano. Os países ricos, por fim, aceitaram fazer um corte médio de 54% em suas tarifas agrícolas.

Em contrapartida, os países ricos pedem uma maior abertura dos mercados emergentes para seus produtos industrializados (com corte médio de tarifas também de 54%) e para os setores de bens e serviços públicos. A troca, no entanto, não foi considerada vantajosa pela maioria dos países que compõem o G-20, uma vez que não se garantiu a competitividade de seus produtos nos mercados dos países ricos: “Não existe acordo se não pudermos proteger nossos milhões de pequenos agricultores”, resumiu o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath.

Brasil, G-20 e Mercosul

Apesar de ter chegado à Genebra falando grosso, o Brasil surpreendeu ao aceitar rapidamente a proposta costurada pelos países ricos, numa postura que causou grande desconforto entre os aliados no G-20 e no Mercosul. Além de China e Índia, outros países de peso como Argentina e África do Sul se mantiveram firmes contra a proposta apresentada por Pascal Lamy. O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Celso Amorim, lamentou o fracasso das negociações: “É incrível que tenhamos fracassado por causa de um só ponto. É lamentável o que ocorreu. Alguém de outro planeta não acreditaria que depois de todo o progresso obtido não tenhamos sido capazes de concluir as negociações. Estou muito decepcionado”, disse à Reuters.

Enquanto duraram as discussões, Amorim foi um dos que mais se esforçou para levar chineses, indianos e norte-americanos a um acordo. O ministro brasileiro também teve de gastar seu tempo para explicar aos colegas do G-20 e do Mercosul a polêmica posição brasileira: “Negociamos pensando sempre no melhor para o Brasil e no melhor para os nossos parceiros do Mercosul”, disse.

Mesmo com o risco de desconforto frente aos países aliados, Amorim e sua equipe agiram com o irrestrito apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “O Brasil não quebrou solidariedade nenhuma. Participamos do G-20, queremos que o acordo seja do interesse do G-20, mas vocês hão de convir que dentro do G-20 temos assimetrias e disparidades enormes entre os países”, disse Lula, quando as negociações ainda estavam em curso.

COMÉRCIO INTERNACIONAL : Corra, Doha, corra...

Os representantes dos países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) tentam, ou fingem tentar, um acordo sobre comércio agrícola, serviços e redução de barreiras a produtos industriais. A assimetria de interesses e a crise sistêmica do capitalismo não deixam qualquer sombra de dúvida: aos países periféricos só resta resistir ou capitular. A análise é de Gilson Caroni Filho.

Gilson Caroni Filho

Uma mesma história contada três vezes, com desenlaces diferentes, pode ser uma obra de arte. É o caso de “Corra, Lola, Corra", filme alemão dirigido por Tom Tykwer, onde não faltam roteiro engenhoso e uma corajosa linguagem cinematográfica. Dependendo da combinação de possibilidades, o desfecho pode ser feliz ou não. Estamos diante de uma alegoria da vida.

Em Genebra, o enredo é distinto. Os representantes dos países-membros da OMC ( Organização Mundial do Comércio) tentam, ou fingem tentar, um acordo sobre comércio agrícola, serviços e redução de barreiras a produtos industriais. Ao contrário da obra-prima de Tykwer não existem possibilidades de final feliz. A assimetria de interesses e a crise sistêmica do capitalismo não deixam qualquer sombra de dúvida: aos países periféricos só resta resistir ou capitular.

No caso brasileiro, reduzir tarifas de importação, ainda mais com câmbio apreciado, só prejudicaria setores industriais com uso intensivo de mão de obra ou baixo coeficiente de importação na sua estrutura produtiva. Ao contrário do que apregoam os que rezam pelo credo liberal, uma redução tarifária em nada forçaria uma maior competitividade ou modernização da indústria nativa. Se somarmos a isso, as concessões pretendidas pelos Estados Unidos na área de serviços, o êxito de Doha seria uma recolonização impensável.

Podemos concordar ou não com Immanuel Wallerstein quando ele afirma que o capitalismo vive tensões estruturais com as quais já não consegue lidar, mas as evidências empíricas sugerem mais atenção às suas teses. Três aumentos indicam que o processo acumulativo vive uma crise sistêmica: o dos custos salariais em função da desruralização, a elevação dos preços de matérias-primas, como decorrência do esgotamento ecológico, e a inevitabilidade do crescimento da carga tributária em escala mundial.

Nesse contexto, as margens de manobra em Genebra são nulas. Pode-se usar o deslize do chanceler Celso Amorim como pretexto para o impasse. Estampar em manchetes que "menção ao nazismo atrapalha negociação crucial de comércio", mas o fato é que, defendidos interesses soberanos, esse é um encontro natimorto. O que é ótimo.

A rigor, o único prejudicado com o fracasso da Rodada de Doha é o agronegócio, setor que se notabiliza por concentrar renda e pelos danos ambientais impostos à população pobre do campo. Como destacou o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, "a ênfase no modelo agroexportador torna o Brasil vulnerável no mercado internacional, dependente de produtos de baixo valor agregado e cujos preços oscilam muito a cada ano". É esse o projeto "estruturante" que queremos?

Do ponto de vista da geração de empregos e da produção de alimentos para o mercado interno, a ausência de acordo em Genebra é irrelevante. Mas parece que o mais propício, no momento, é buscar crescimento do comércio exterior com outros países em desenvolvimento. Mais que nunca fortalecer o Mercosul e estreitar laços com África do Sul, Índia e China.

Ninguém discute a importância da OMC e o papel do multilateralismo em todas as esferas do mundo atual, mas aos que defendem uma minimização do papel do Estado como forma de ampliar o livre comércio entre empresas de todo o mundo, a advertência do economista John Gray deve ser repetida à exaustão.

"Tanto na teoria quanto na prática, o efeito da mobilidade total do capital é anular a doutrina ricardiana da vantagem comparativa". Não é hora de vender soja para comprar trator

domingo, 20 de julho de 2008

A origem da espécie [segundo os estadunidenses]




O sistema educacional americano não tem conseguido vencer a barreira criacionista


Silvio Meira

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Pesquisa da gallup nos EUA, país mais rico do mundo, com uma das populações supostamente mais educadas do planeta, mostra que 44% dos americanos acha que deus criou os seres humanos, da forma como somos, há cerca de dez mil anos… Outros 36% acreditam que a humanidade é resultado de uma evolução, mas o processo foi guiado por deus. Apenas 14% acreditam na evolução segundo darwin, sem qualquer divindade interferindo no processo. O gallup faz a pesquisa desde 1982 e pouco ou quase nada mudou de lá pra cá, como mostra o gráfico abaixo.

Quando a opção política entra em cena, 60% dos republicanos acredita piamente na criação divina há dez milênios, contra 38% dos democratas. Isso não é só surpreendente, mas pode influir seriamente na escolha do presidente dos eua, normalmente decidida por uns poucos porcento de diferença: cerca de 25% do eleitorado consideraria a visão do candidato sobre a evolução para decidir seu voto.

O sistema educacional americano não tem conseguido vencer a barreira criacionista; um universo criado por deus e uma humanidade jovem, resultado do trabalho divino no sexto dia. Mais de dois séculos de estado laico e educação de qualidade [muito superior à média do brasil] pouco fizeram, pelo visto, para remover superstições tão elementares quando o criacionismo "jovem" da mente americana média.

Sinal de que é preciso ampliar muito a quantidade e qualidade do ensino de lógica e ciências e da argumentação científica em geral. no mundo inteiro, inclusive no brasil.

Os interesses da OMC, segundo o presidente boliviano, Evo Morales

A propósito da ronda de negociações da OMC

Evo Morales Ayma *

"O comércio internacional pode desempenhar uma função de importância na promoção do desenvolvimento econômico e no alívio da pobreza. Reconhecemos a necessidade de que nossos povos se beneficiem com o aumento das oportunidades e com os avanços do bem-estar que o sistema multilateral de comércio gera. A maioria dos Membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) é de países em desenvolvimento. Pretendemos por suas necessidades e interesses no centro do programa de Trabalho adotado na presente Declaração". Declaração Ministerial de Doha da Organização Mundial do Comércio, 14 de novembro de 2001.


Com essas palavras começou a ronda de negociações da OMC há sete anos. Realmente, o desenvolvimento econômico, o alívio da pobreza, as necessidades de todos os nossos povos, o aumento de oportunidades para os países em desenvolvimento estão no centro das atuais negociações na OMC?

O primeiro a dizer é que se assim fosse, os 153 países membros e, sobretudo, a ampla maioria dos países em desenvolvimento, deveria ser os atores principais das negociações da OMC. Porém, o que estamos vendo é que um punhado de 35 países é convidado pelo Diretor Geral a reuniões informais para que avancem substancialmente na negociação e preparem os acordos desta "Ronda para o Desenvolvimento" da OMC.

As negociações na OMC têm-se convertido em uma briga dos países desenvolvidos para abrir o mercado dos países em desenvolvimento a favor de suas grandes empresas.

Os subsídios agrícolas do Norte, que vão, principalmente, para as mãos das companhias agro-alimentícias dos Estados unidos e da Europa, não somente continuarão, mas serão incrementados como o demonstra a Lei Agrícola ou "Farm Bill 2008" (1) dos Estados Unidos. Os países em desenvolvimento rebaixarão os impostos a seus produtos agrícolas, enquanto os subsídios reais (2) aplicados pelos EUA ou pela UE a seus produtos agrícolas não diminuirão.

Sobre os produtos industriais nas negociações da OMC, busca-se que os países em desenvolvimento realizem recortes nos impostos de cerca de 40% a 60%, enquanto que os países desenvolvidos diminuirão em média seus impostos entre os 25% e 33%.

Para países como Bolívia, a erosão das preferências nos impostos pela diminuição generalizada de impostos terá efeitos negativos na competitividade de nossas exportações.

O reconhecimento de assimetrias e o tratamento especial e diferenciado real e efetivo a favor dos países em desenvolvimento é limitado e obstaculizado em sua implementação pelos países desenvolvidos.

Nas negociações, empurra-se para que novos setores de serviços sejam liberalizados pelos países quando o que teria que fazer é excluir definitivamente os serviços básicos de educação, saúde, água, energia e telecomunicações do texto do Acordo Geral do Comércio de Serviços da OMC. Esses serviços são direitos humanos que não podem ser objeto de negócio privado e de regras de liberalização que levam à privatização.

A desregulação e privatização dos serviços financeiros, entre outros, são a causa da atual crise financeira mundial. Maior liberalização dos serviços não trará maior desenvolvimento, mas maiores possibilidades de crise e de especulação em temas vitais como o dos alimentos.

O regime de propriedade intelectual estabelecido pela OMC tem beneficiado, sobretudo, as transnacionais que monopolizam as patentes, encarecendo o preço dos medicamentos e de outros produtos essenciais; incentivando a privatização e a mercantilização da vida, como provam as várias patentes sobre plantas, animais e, inclusive, genes humanos.

Os países mais pobres serão os principais perdedores. As projeções econômicas de um potencial acordo da OMC, efetuadas, inclusive, pelo Banco Mundial (BM) (3), indicam que os custos acumulados pela perda de empregos, pelas restrições à definição de políticas nacionais e à perda de ingressos aduaneiros serão maiores do que os "benefícios" da "Ronda para o Desenvolvimento".

Depois de sete anos, a ronda da OMC está ancorada no passado e desatualizada dos fenômenos mais importantes que estamos vivendo: a crise alimentar, a crise energética, a mudança climática e a eliminação da diversidade cultural. Querem que o mundo acredite que se necessita de um acordo para resolver uma agenda mundial e esse acordo não representa essa realidade. Suas bases não são adequadas para resistir a essa nova agenda mundial.

Estudos da FAO assinalam que, com as atuais forças de produção agrícola, é possível alimentar a 12.000 bilhões de seres humanos; isto é, quase o dobro da população mundial atual. No entanto, há uma crise alimentar porque não se produz para o bem-estar humano, mas em função do mercado, da especulação e da rentabilidade das grandes produtoras e comercializadoras de alimentos. Para enfrentar a crise alimentar, é necessário fortalecer a agricultura familiar, camponesa e comunitária. Os países em desenvolvimento temos que recuperar o direito de regular (4) nossas importações e exportações para garantir a alimentação de nossa população.

Temos que acabar com o consumismo, com o desperdício e com o luxo. Na parte mais pobre do planeta, morrem milhões de seres humanos de fome a cada ano. Na parte mais rica do planeta, gastam-se milhões de dólares para combater a obesidade. Consumimos em excesso; desperdiçamos os recursos naturais e produzimos o lixo que contamina a Mãe Terra.

Os países devemos priorizar o consumo do que produzimos localmente. Um produto que percorre a metade do mundo para cegar ao seu destino pode ser mais barato do que outro que é produzido nacionalmente; porém, se levarmos em consideração os custos ambientais do transporte de dita mercadoria, o consumo de energia e a quantidade de emissões de carbono que gera, então, podemos chegar à conclusão de que é mais saudável para o planeta e para a humanidade priorizar o consumo do que se produz localmente.

O comércio exterior deve ser um complemento da produção local. De nenhuma maneira podemos privilegiar o mercado externo às custas da produção nacional.

O capitalismo quer nos uniformizar para que nos tornemos simples consumidores. Para o Norte, há somente um modelo de desenvolvimento, o seu. Os modelos únicos em nível econômico vêm acompanhados de processos de aculturação generalizada para nos impor uma só cultura, uma só moda, uma só forma de pensar e de ver as coisas. Destruir uma cultura, atentar contra a identidade de um povo, é o mais grave dano que se pode fazer à humanidade.

O respeito e a complementaridade pacífica e harmônica das diversas culturas e economias é essencial para salvar o planeta, a humanidade e a vida.

Para que esta seja uma ronda de negociações efetivamente do desenvolvimento e ancorada no presente e no futuro da humanidade e do planeta, deveria:

• Garantir a participação dos países em desenvolvimento em todas as reuniões da OMC, colocando fim às reuniões exclusivas da "sala verde" (5).

• Implementar verdadeiras negociações simétricas a favor dos países em desenvolvimento nas quais os países desenvolvidos outorguem concessões efetivas.

• Respeitar os interesses dos países em desenvolvimento, não limitando sua capacidade de definição e implementação de políticas nacionais no âmbito agrícola, industrial e de serviços.

• Reduzir efetivamente as medidas protecionistas e os subsídios dos países desenvolvidos. (6)

• Assegurar o direito dos países em desenvolvimento de proteger pelo tempo que seja necessário suas indústrias nascentes da mesma forma que o fizeram no passado os países industrializados.

• Garantir o direito dos países em desenvolvimento a regular suas políticas em matéria de serviços, excluindo de maneira expressa os serviços básicos do Acordo Geral de Comércio de Serviços da OMC.

• Limitar os monopólios das grandes empresas sobre a propriedade intelectual, promover a transferência de tecnologia e proibir a patente de toda forma de vida.

• Garantir a soberania alimentar dos países, eliminando qualquer limitação à capacidade dos Estados a regular as exportações e importações de alimentos.

• Assumir medidas que contribuam a limitar o consumismo, o desperdício de recursos naturais, a eliminação de gases de efeito estufa e a geração de lixo, que prejudica a Mãe Terra.

No século XXI, uma "Ronda para o desenvolvimento" já não pode ser de "livre comércio", mas tem que promover um comércio que contribua para o equilíbrio entre os países, as regiões e com a mãe natureza, estabelecendo indicadores que permitam avaliar e corrigir as regras de comércio em função do desenvolvimento sustentável.

Os governos temos uma enorme responsabilidade para com nossos povos. Acordos como os da OMC têm que ser amplamente conhecidos e debatidos por todos os cidadãos e não somente por ministros, empresários e "expertos". Os povos do mundo temos que deixar de ser vítimas passivas dessas negociações e nos convertermos em protagonistas de nosso presente e de nosso futuro.

Evo Morales Ayma
Presidente da Bolívia


Notas:

(1) O "Farm Bill 2008" foi aprovado em 22 de Maio pelo Congresso dos Estados Unidos. Autoriza a realizar gastos que incluem subsídios à agricultura de até 307.000 milhões de dólares, em 5 anos. Desses, aproximadamente 208.000 milhões de dólares poderão ser gastos em programas de alimentação.
(2) O texto atual de agricultura propõe rebaixar os subsídios dos EUA em um patamar entre 13 e 16.4 bilhões de dólares anuais. No entanto, os subsídios reais que atualmente são aplicados pelos EUA são de aproximadamente 7 bilhões de dólares anuais. Por outro lado, a União Européia está oferecendo nas negociações da OMC a reforma que realizou em 2003 a sua Política Agrícola Comum (PAC), sem propor maiores aberturas.
(3) Os países em desenvolvimento pouco têm a ganhar na Ronda de Doha: os ganhos projetados serão de 0,2% para ditos países, a redução da pobreza mundial será de 2,5 milhões (menos de 1% dos pobres no mundo) e as perdas por impostos não cobrados serão de pelo menos 63.000 bilhões de dólares. (Anderson, Martin, and van der Mensbrugghe, "Market and Welfare Implications of Doha Reform Scenarios," in Agricultural Trade Reform and the Doha Development Agenda, Anderson and Martin, World Bank/ / Back to the Drawing Board: No Basis for Concluding the Doha Round of Negotiations" by Kevin P. Gallagher and Timothy A. Wise, RIS Policy Brief #36).
(4) Esta regulação deve incluir o direito a implementar impostos às exportações, baixar impostos para favorecer importações, proibir exportações, subsidiar produções locais, estabelecer faixas de preços, enfim, toda medida que, Segundo a realidade de cada país, melhor sirva ao propósito de garantir a alimentação da população.
(5) "Green room meeting" ou "reuniões na sala verde" é o nome das reuniões informais de negociação na OMC das quais participa um grupo de 35 países eleitos pelo Diretor Geral.
(6) Um recorte real dos subsídios dos EUA deveria ser menor que 7.000 bilhões de dólares ao ano.

Difusão da Campanha Continental contra a ALCA:

"Sim à vida, Não a ALCA. Outra América é possível"

[Tradução: ADITAL, 18/07/2008]

* Presidente da Bolívia

sábado, 19 de julho de 2008

A lição de Antônio José da Silva, o Piauí: a Justiça é classista

Aconteceu na manhã deste sábado dia 19/07/2008 em várias cidades do país manifestações em favor do impeachment do ministro e presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes.

'O ministro, que respondeu a processos por improbidade administrativa, e cuja indicação pelo ex-presidente FHC em 2002 foi profundamente questionada (veja aqui e aqui) deveria declarar-se impedido de julgar Daniel Dantas, já que era Advogado-Geral da União, à época das escandalosas privatizações de FHC, quando começou a escalada inescrupulosa do banqueiro.

Não satisfeito em conceder o primeiro e ultra-rápido habeas corpus a Dantas, Mendes atropelou instâncias inferiores para conceder o segundo, mesmo diante das evidências de que Dantas havia tentado subornar um delegado da Polícia Federal e que, livre, poderia tentar corromper pessoas e prejudicar o andamento do processo.'

Eu estive na manifestação, segue as minhas impressões:

(A manifestação de hoje, no Masp, foi democrática até mesmo em sua geografia: o vão foi ocupado em círculo. Na foto você vê uma parte dele)


Hoje, na Avenida Paulista, encontrei o Brasil que admiro e me orgulho. Ele não vestia gravatas. Era formado por jovens, velhos, homens e mulheres, pretos e brancos que se juntaram espontaneamente para lutar por uma Justiça decente e transparente.

De todos os Brasis que vi e ouvi no democrático megafone do Movimento dos Sem Mídia, quero falar do Brasil representado pelo "Piauí", um criativo artista de rua.
Ele viu nossa 'muvuca', cuja organização começou pela rede, com informes trocados a partir do Edu Guimarães do Cidadania.com. Éramos cerca de 200 internautas que indignados acordamos cedo neste sábado para sair às ruas e protestar contra um certo Gilmar.


(Eduardo Guimarães, presidente da ONG Movimento dos Sem Mídia e blogueiro do Cidadania.com, no início da manifestação, aquecendo o gogó.)


Piauí tem uma história de vida rica que se a gente parar para ouvir se enternece, emociona-se e aplaude. Antes de convidá-lo para se juntar à manifestação ouvi suas considerações. Falávamos da Justiça Brasileira, quando uma senhora passante se juntou a nós e perguntou quem era Gilmar (o Dantas ela sabia que era uma bandido rico).

O Gilmar mais conhecido dos brasileiros é o dos Santos Neves, o goleiro que segurava todas, autor de defesas memoráveis na seleção brasileira e que nos garantiu o bi-campeonato nas Copas de 1958 e 1962.
Já o Gilmar que nos indigna na atualidade não guarda semelhança alguma com o seu xará espetacular, que nos enchia de orgulho cada vez que defendia a camisa verde-amarela.

Este que nos envergonha é o Mendes, ministro do Supremo Tribunal Federal. Este Gilmar não agarra uma bola, é juiz, mas só entra em campo para jogar contra a camisa. Lá da Corte maior da Justiça Brasileira, na calada da noite, ele dá serão para soltar banqueiros que enriqueceram sugando recursos públicos, corrompendo políticos sem caráter e lavando dinheiro em paraísos fiscais.

Este Gilmar, motivo de nossa repulsa, passa por cima de craques como o juiz federal Fausto Martins De Sanctis e o procurador da República no Estado de São Paulo Rodrigo De Grandis e só defende aqueles com muito dinheiro, mesmo que amealhado de modo ilícito e criminoso.


Voltemos ao nosso encontro com o Brasil, representado pelo Piauí. Segurávamos, eu, Mamá, Clóvis e outro internauta indiganado cartazes com palavras de ordem que nós produzimos ali no vão do Masp, enquanto a moçada se organizava. Buscávamos chamar a atenção dos passantes para a nossa manifestação, ampliar o apoio à indignação.


(A Mamá, dando uma força na produção dos cartazes: cidadania se aprende praticando)


Piauí mora em um bairro pobre da zona Norte, Jardim Vista Alegre, e me contava dos seus inúmeros amigos, pais de família que, por motivos bobos, (como roubar um shampoo, um pote de margarina ou mesmo sem cometer crime algum como o Sandro) mofam nas cadeias de nosso país, enquanto seus filhos são criados soltos nas ruas.

Piauí é um homem negro, bem magro, seu corpo mostra o preparo daqueles que tentam ganhar a vida nas ruas, caminhando longas distâncias de onde vivem para os centros aonde buscam vender suas mercadorias. Os fiscais da prefeitura (aqueles mesmo envolvidos em uma máfia que recentemente tomou os noticiários) tomaram todos os seus apretechos de trabalho, porque ele não ganha o suficiente para lhes pagar as proprinas exigidas.


Ele já morou embaixo da ponte e hoje contrariando o senso comum e preconceituoso de que os pobres abandonam seus filhos à própria sorte e não se preocupam com a educação deles (reproduzido por uma classe média alienada que ocupa as instituições privadas e públicas e que não conhece a periferia) participa da associação de Pais e Mestres da
Escola República da Colômbia, no Jardim Vista Alegre.

Ele quer fazer a diferença na escola em que sua filha estuda, ele deseja que ela e as crianças do Jardim Vista Alegre tenham garantido o direito de ter acesso à boa educação. Sua contribuição é ensinar às crianças como se expressarem a partir da arte, mas ele quer mais, ele quer que as crianças tenham direito de dançar, cantar, aprender bem o seu idioma e uma língua estrangeira e tudo que lhes dê chances de continuar a batalha da sobrevivência.


Piauí encantou a todos e deveria dar curso à classe média que abriu mão de seu papel cidadão. Uma dada hora ouvi ele dizer a uma advogada encantada com as suas considerações: sabe qual é o grande problema? Os seus filhos vão para uma boa escola, crescem, se formam, os meus não. Pode ser que se encontrem em um farol, um dentro do carro e o outro pedindo esmola e um mate o outro. A advogada Helenita concordou com ele, pensa como ele.

Pode parecer
hardcorde a constatação nua e crua de Piauí, mas ela não está longe da verdade. Piauí não apenas vê e sente em sua pele negra os problemas que afetam a comunidade onde vive. Ele busca cotidianamente resistir, ser sujeito de sua história e agir contra a sistemática exclusão destinada a ele e todos os demais Piauís e seus filhos.

Convidei Piauí pra se agregar a nós com o 'troféu' que ele confeccionou para entregar a todo e qualquer representante dos Três Poderes que se deixou corromper.



(O troféu criado por Piauí se chama 'corrupção', o câncer que produz desigualdades. Materiais: caixa e bitucas de cigarro.)


Foi sobre as desigualdades a tônica do discurso de Piauí que se apropriou do megafone dos Sem Mídia e abriu sua fala dizendo: Vocês sabem por que o Cacciola desceu rindo do avião? Por que ele sabe que vai ficar pouco tempo na cadeia e em cela especial. Eu sou contra as pessoas educadas terem celas especiais. As pessoas educadas, como o juíz Lalau, sabem o que estão fazendo, conhecem a lei, tem informação e formação, seus crimes são, assim, maiores que dos ladrões de galinha. Os mais bem educados tinham obrigação de agir bem. Por que então quando cometem um crime (e raramente são presos) têm acesso à cela especial?


(Marina Monteiro ajudando na divulgação: cidadania se aprende praticando)


Piauí e todos os brasileiros pobres de nosso país sabem que nossa Justiça é classista no corpo da lei: ela pune duplamente os pobres, os sem instrução superior, os sem equipes de advogados que já ocuparam os altos postos da Corte Suprema como o ex-ministro do STF, Luis Carlos Lopes Madeira, um dos inúmeros advogados de Daniel Dantas.

A Justiça classista brasileira confina os pobres como bichos em jaulas super lotadas, sem condições mínimas de higiene e saúde, sem chance alguma para reabilitação e os esqueçe para mofarem, 'mortos em vida'.


Já para os Dantas, Nahas, Cacciolas ela é pródiga em benefícios e benesses e, muitas vezes, é incapaz de puni-los e devolver aos cofres públicos os recursos lesados por esses bandidos de colarinho branco.


Piauí sabe que a escola de sua filha não tem os recursos que poderia ter, porque existe corrupção e porque os poucos que estão no poder e desejam combatê-la são boicotados, em contra-discursos pautados nas redações para confundir e não informar a população.


Piauí sabe que os mesmos que, há décadas, roubam os cofres públicos em operações complicadas neste país, querem empurrá-lo para marginalidade, mas ele resiste e diz: 'eu não quero ser como eles'. E amplia sua voz no megafone argumentando: se a corrupção existe da forma que existe é porque permitimos, é porque não exercemos nosso poder de cidadania; é porque nos próximos mega showmícios tem gente lá pra aplaudir e eleger aqueles que só conhecem a periferia em época de campanha. Por isso, essa manifestação não pode parar aqui, a gente tem de continuar, ampliar, até sermos ouvidos.


Piauí em nossa festa democrática ensinou a muita gente o que é cidadania, o que é ver e ser visto sem preconceitos, o quanto é importante exercer o direito de se manifestar livre e pacificamente. Ensinou até ao cinegrafista da Globo que, ouvindo a nossa conversa, depois comentou: "quem olha pra esse cara aí, não dá nada por ele".

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Repercussão:

Manifestantes em São Paulo pedem impeachment de Gilmar Mendes
19 de Julho de 2008 - 15h13

Elaine Patricia Cruz
Repórter da Agência Brasil

São Paulo - Manifestantes fizeram na manhã de hoje (19), em São Paulo, um protesto pedindo o impeachment do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Além do protesto, eles assinaram um manifesto que pretendem encaminhar ao Senado Federal pedindo a saída do presidente do STF. O manifesto, que já tem cerca de 10 mil assinaturas segundo a coordenação do movimento, pode ser lido e assinado em um blog internet.

Segundo o comerciante Eduardo Guimarães, coordenador do movimento, em todo o Brasil e principalmente na capital paulista, a idéia da manifestação surgiu assim que o ministro Gilmar Mendes concedeu dois habeas corpus ao banqueiro Daniel Dantas, preso pela Polícia Federal durante a Operação Satiagraha.

“Quando começou a se materializar a inconsistência jurídica que havia no habeas corpus é que as pessoas começaram a se dar conta de que alguma coisa precisava ser feita. A mim, como cidadão, gerou uma sensação de muita insegurança porque eu não teria jamais esse benefício”, disse Guimarães, em entrevista à Agência Brasil.

Para ele, há, no Brasil, três tipos de justiça: “a dos banqueiros, que nunca ficam presos; a da classe média, que pode ir para a prisão dependendo do ‘clamor das ruas’; e a dos pobres, que sempre ficam na cadeia, sem qualquer tipo de julgamento”.

"Estamos propondo um país com uma justiça só. E isso só vai acontecer a partir do momento em que os cidadãos se manifestarem”, afirmou.

Manifestantes em São Paulo pedem impeachment de Gilmar Mendes

19/07 - 16:51 - Agência Brasil

SÃO PAULO - Manifestantes fizeram na manhã deste sábado, em São Paulo, um protesto pedindo o impeachment do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. Além do protesto, eles assinaram um manifesto que pretendem encaminhar ao Senado Federal pedindo a saída do presidente do STF. O manifesto, que já tem cerca de 10 mil assinaturas segundo a coordenação do movimento, pode ser lido e assinado em um blog internet.

RBS, reproduziu a matéria na Agência Brasil