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NOVO BLOCO CONSERVADOR: Argentina, o plantio de ventos e os furacões
O barco argentino acaba de entrar, sem timoneiro, em um mar agitado e cheio de arrecifes. Formou-se um bloco entre o capital financeiro internacional e nacional, os grandes exportadores de grãos, a velha oligarquia latifundiária, as grandes indústrias estrangeiras e a maioria das classes médias urbanas e rurais. Este bloco acaba de vencer o governo e rejeita as tentativas de aplicar uma política social redistributiva.
Guillermo Almeyra - SINPERMISO
Internacional| 29/07/2008
Vale a pena repassar a crônica dos acontecimentos. No ano passado, o então presidente argentino Néstor Kirchner acreditou fazer uma hábil manobra e "reforçar" seu problemático partido peronista cooptando dirigentes da União Cívica Radical e do Partido Socialista, que serviram para reforçar a maioria eleitoral que elegeu sua esposa como presidenta e para controlar algumas províncias. Como tinha certeza de que teria maioria em ambas as Câmaras do Congresso, ao qual não atribuía nenhum papel –a concessão e distribuição de verbas públicas tinha sido delegada ao Executivo, que governava emitindo decretos–, Kirchner nem pensou que o Congresso poderia ser obrigado a dirimir uma questão política importante.
Já no governo, sua esposa, Cristina Fernández Kirchner, tentou controlar seu partido e deixou abandonados à própria sorte esses "transversais" socialistas ou radicais expulsos, como o vice-presidente Cobos. Mas para disputar com ela o Partido Justicialista, todas as direitas peronistas coligaram-se. A coisa não era muito grave, apesar de o ex-presidente Duhalde apoiar-se em um tecido mafioso (polícia, droga, clientelismo político) na província de Buenos Aires, o governador de San Luis ter uma forte base clientelística, assim como o de Córdoba, e os ex-governadores menemistas manterem seus aparatos policiais.
O antiperonismo visceral de radicais, socialistas K e conservadores de todo tipo que integravam a oposição impedia a união entre ambos os setores, e Kirchner acreditou poder contrabalançar o grosso da direita do seu partido com outra parte dessa direita, ou seja, com dirigentes sindicais burocratas e corruptos da Confederação Geral do Trabalho, cooptando uma parte dos líderes da Central de Trabalhadores Argentinos e dos grupos de piqueteiros. Enquanto isso, para aumentar as exportações fomentou o cultivo de soja, que quadruplicou durante seu mandato, e deu todo tipo de apoios e facilidades aos grandes exportadores de grãos e ao capital financeiro. Tentou, também, manter o dólar alto, para favorecer as exportações argentinas e, com fundos estatais, subsidiou transportes, combustíveis, serviços públicos e até grandes supermercados para manter os preços baixos.
Sua política econômica buscava utilizar o dinheiro proveniente das exportações e dos impostos para subsidiar e desenvolver a indústria e impedir o aumento dos salários reais, com a finalidade de aumentar os lucros dos industriais, confiando em que as taxas chinesas de crescimento econômico permitiriam continuar reduzindo o desemprego (próximo a 10%) e ampliar o mercado interno.
Mas sua esposa assumiu o poder quando começava o período das vacas magras — queda do dólar em escala mundial, grave situação econômica nos Estados Unidos, enorme aumento do preço dos combustíveis e, portanto, de fertilizantes e inseticidas, inflação importada—, que tornou cada vez mais difícil manter essa política. Para obter mais recursos, Cristina Fernández pensou em um imposto sobre os rendimentos extraordinários dos exportadores de soja, o qual, como bônus, deveria reduzir a tendência a abandonar os cultivos de alimentos e a pecuária, com o conseguinte aumento dos preços para o consumo. A medida era necessária e justa, uma vez que o Estado tem direito e obrigação de impedir que os preços do mercado internacional determinem os preços internos para o consumo e de evitar que se estenda o monocultivo de uma forragem que em seu avanço destrói o solo e elimina alimentos, vacas, camponeses, povoados, bosques.
Mas a resolução foi adotada com falta de habilidade, ignorância e prepotência, sem consultas prévias e sem prever conseqüências. Além disso, segundo a Constituição, é o Parlamento que deve determinar os impostos, e não o Poder Executivo.
Os furacões
A imposição do mesmo imposto a grandes e pequenos produtores, àqueles que produzem em boas terras e próximos aos portos, com altos rendimentos, e aqueles que plantam em terras marginais, uniu, por trás dos especuladores do grande capital e dos grandes latifundiários e exportadores, pequenos produtores, locatários e rentistas, que se transformaram em massa de manobra política dos primeiros. Aos pequenos e grandes capitalistas rurais somaram-se imediatamente as classes médias dos povoados e a elas somaram-se ainda a oposição visceralmente racista e antiperonista que grita contra o governo "dos negros e dos vagabundos" e a direita peronista. O kirchnerismo conseguiu, assim, unificar o anti-solidarismo e o conservadorismo com a reação e o racismo. Somando a soberba à inabilidade, o governo esperou mais de 90 dias de fechamento de estradas e desabastecimento nas cidades para inventar uma motivação para esta justa retenção do lucro extraordinário dos plantadores de soja e deixou passar cem dias antes de deixar a aprovação de seu projeto com o Parlamento, como correspondia desde o primeiro dia.
Nas Câmaras, também pagou o preço de seu autoritarismo, dado que, por não terem sido ouvidos, consultados nem convencidos, deputados e senadores peronistas votaram junto com a oposição e pelos grandes grupos cerealistas. Para cúmulo, os radicais e socialistas K, e entre eles o vice-presidente Cobos, quando sugeriram modificar a medida para separar os pequenos produtores de monopolistas e desmontar o protesto, foram vaiados e marginalizados. Na discussão parlamentar, naturalmente, afastaram-se do governo e o voto do vice-presidente e presidente do Senado, Julio Cobos, foi decisivo para enterrar não só o imposto, mas também toda a política do governo. Agora, a direita está unida, na ofensiva e encontrou o candidato a presidente que precisava, nada menos que no vice de Cristina Fernández. O partido transversal também passou desta para melhor e Kirchner deverá defender sua maioria no partido peronista.
O governo está desprestigiado e perdeu sua maioria absoluta em ambas as Câmaras; e o Parlamento começou a funcionar e vai exigir-lhe que explique por que não tomou medidas contra os grandes exportadores que fraudaram mais de 1,2 bilhões de dólares ao fisco e roubaram de locatários. A economia sofreu um grande golpe e os subsídios não poderão ser tão volumosos como até agora. O barco argentino acaba de entrar, sem timoneiro, em um mar agitado e cheio de arrecifes.
O que há de ontem para hoje
A Argentina é um país cuja concentração urbana foi muito precoce, sendo notável já no fim do século XIX. Isto deu origem a um forte e numeroso movimento operário industrial e a uma vasta classe média nas principais cidades, quando a burguesia ainda era muito fraca e o eixo das classes dominantes estava constituído pelo capital estrangeiro e pelos latifundiários que controlavam o Estado.
As classes médias urbanas, descendentes de imigrantes, exigiram seu lugar no país, disputando com a oligarquia. Isso teve como resultado o voto universal em 1912, a Reforma Universitária em 1918 e o apoio urbano a Hipólito Yrigoyen. O movimento operário, em compensação —classista, anarquista e socialista— seguiu um caminho independente e o governo das classes médias urbanas e rurais, yrigoyenista, cometeu as matanças de peões na Patagônia e assassinou 3000 operários na Capital durante a Semana Trágica. Esse foi o primeiro choque entre operários e um governo “progressista” e entre aqueles e as classes médias.
Em 1930, o golpe da direita oligárquica e da direita anti-yrigoyenista da União Cívica Radical foi apoiado pelas classes médias urbanas e pelo partido de esquerda majoritário, o socialista, e o resultado foi a Década Infame, o governo pró-imperialista da oligarquia e da fraude, que as grandes greves operárias de 1935-36 comoveram, preparando o caminho, em 1945, para o triunfo de Juan Domingo Perón, com o apoio dos sindicatos e dos operários industriais e rurais, mas contra a aliança entre o imperialismo norte-americano, os conservadores, a UCR, os comunistas e os socialistas, com o apoio das classes médias urbanas. Em 1955, a oligarquia, com o apoio destas últimas, do exército e da Igreja, que fazem parte das mesmas, derrotou Perón, que fugiu sem combater.
Mas, em 1957, o presidente Arturo Frondizi, que havia chegado ao poder graças à ditadura (e com o apoio do próprio Perón) quis abrir o caminho para a privatização do petróleo e conceder a educação pública à Igreja: os estudantes, então, uniram-se aos operários na oposição às duas medidas e começou um processo de aproximação entre aqueles, majoritariamente peronistas, que resistiam à margem das ordens de Perón, exilado na Espanha franquista, e a juventude das classes médias urbanas. Essa aproximação tornou-se aliança nos anos setenta, quando muitos filhos de antiperonistas furibundos, radicalizados pela revolução cubana, maio de 68 e o Vietnã, acreditando que se aproximavam da classe operária tornaram-se peronistas para combater melhor a ditadura militar pró-oligárquica, que precisou trazer Perón para frear o processo de lutas operárias radicais e de guerrilhas, até que preparou o golpe militar.
A ditadura de 1976 encontrou as classes médias divididas entre o setor que, unido aos operários, resistiu e foi massacrado às dezenas de milhares, e o numeroso setor conservador, anti-operário e racista que tolerou a ditadura até que ela caiu sozinha após a aventura inglória nas Malvinas. Depois da ditadura, o peronismo apresentou uma fórmula presidencial de direita incapaz de entusiasmar os operários, e as classes médias arrastaram setores operários e populares atrás do candidato da União Cívica Radical, o neoliberal Raúl Alfonsín. Ele aliou-se à direita peronista e cedeu a presidência para Carlos Menem, o grande privatizador, ladrão e pró-imperialista, cuja política de direita contou com o apoio do aparato peronista e com as esperanças da maioria das classes médias e dos operários.
Mas, em dezembro do 2001, diante do congelamento dos depósitos bancários dos pequenos poupadores e do desmoronamento da credibilidade nos partidos tradicionais, uma parte importante das classes médias urbanas opôs-se à corrupção ao grito de “fora todos!” e deu seu apoio aos desempregados, com a consigna de “piquetes e panelas, a luta é uma só!”. O governo de Néstor Kirchner, após várias vicissitudes, foi o resultado desta nova aproximação entre os setores populares. Contudo, a rápida recuperação econômica e o alto preço das matérias-primas agrícolas transformaram os ex-colonos e locatários em rentistas que alugam suas terras para grupos financeiros que exploram a soja e, com seus lucros extraordinários, compram ou constroem casas nas cidades, transformando-se em especuladores imobiliários e financeiros. E as classes médias urbanas reforçaram seu afã por diferenciar-se “dos negros”, dos operários, desempregados e do subproletariado urbano que, segundo eles, são subsidiados pelo governo, esquecendo o “fora todos!” para pensar apenas no próprio bolso. Assim, formou-se um bloco entre o capital financeiro internacional e nacional, os grandes exportadores de grãos, a velha oligarquia latifundiária, as grandes indústrias estrangeiras e a maioria das classes médias urbanas e rurais.
Este bloco acaba de vencer o governo e rejeita as tentativas de aplicar uma política social redistributiva. Como em 1930, 1945, 1955, 1976, a direita tem agora uma base de massas. A falta de habilidade, o autoritarismo dos meios oficiais, sua incapacidade para fazer política, apesar de terem minado a credibilidade do governo não são a causa principal desta evolução, que reside nas mudanças econômicas e sociais internacionais. Agora, ou os Kirchner buscam um apoio social com medidas de fundo e tentam separar setores importantes da classe média do bloco reacionário no qual militam, ou a direita vai conseguir mais vantagens do seu triunfo nas ruas e no Parlamento, porque já declarou que não se conforma com “trocar a coleira do cachorro”, senão que exige “trocar o cachorro”. Ou seja, que não se dá por satisfeita com as mudanças no gabinete que já conseguiu impor, senão que exige a aceitação total de sua política
Guillermo Almeyra é membro do Conselho Editorial de SINPERMISO.
Tradução: Naila Freitas/Verso Tradutores
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