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quarta-feira, 9 de julho de 2008

Em julgamento, a igualdade

Em minhas palestras e oficinas encontrei vários professores contrários às cotas, encontro-os também em listas e comunidades de professores pela rede. Grande parte do argumento usado mostra a repetição de senso-comum, descolado de historicidade e crítica.

Eu sou defensora das ações afirmativas e posso explicar como historiadora e cidadã a quem quiser dialogar o porquê de minha defesa.

Para começar este debate aqui, no blog da História em Projetos,, gostaria de apresentar alguns textos recentes que transcrevo (dica do professor Ricardo Faria) do site do Le Monde Diplomatique. Boa leitura e não deixem de ler também as matérias relacionadas nos links finais:

MULTIVERSIDADES

Em julgamento, a igualdade

Dois ativistas do movimento em favor das cotas contam como se articula a luta para que o STF as ratifique, sustentam que apenas uma minoria rejeita as políticas de inclusão racial e afirmam que está em jogo o próprio direito da sociedade a ir além da democracia institucional

Bruno Cava

(29/06/2008)

Dando continuidade ao último texto publicado nesta coluna - "A função racial da universidade" -, apresento o ponto de vista de dois militantes pró-ações afirmativas. Ambos estiveram em Brasília, no começo de maio, promovendo o "Manifesto em defesa da justiça e da constitucionalidade das cotas e do Prouni"

O manifesto defende as políticas de promoção de igualdade racial. Por isso, se contrapõe à articulação conservadora que pretende impedir a adoção de cotas raciais nas universidades. Um dos lances mais importantes desta articulação foi sustentar, em 2007, que a garantia de uma parcela das vagas para estudantes não-brancos é inconstitucional. Isso foi feito por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), incluída em abril na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF). Se aceita pelo Supremo, a ADIN poderia liquidar as políticas afirmativas, hoje adotadas em 64 universidades federais e estaduais.

O documento pró-cotas mobilizou a esquerda brasileira e rapidamente multiplicou as assinaturas. Contou com apoios dos mais diversos setores: o arquiteto Oscar Niemeyer, o sub-procurador-geral da República Juarez Tavares, o rapper MV Bill, o reitor da UERJ Ricardo Vieiralves, o líder do MST João Pedro Stédile, os cineastas Nelson Pereira dos Santos e Jorge Furtado, os atores Lázaro Ramos e Taís Araújo, entre outros. A UNE e a UBES também subscreveram o manifesto. Os dois entrevistados, tão próximos dessa mobilização, são: Alexandre do Nascimento, coordenador do Movimento Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC) e Alexandre Mendes, defensor público do estado do Rio de Janeiro (Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro).

Le Monde Diplomatique: Vocês foram a Brasília, junto com a militância dos movimentos negros, entregando o manifesto em favor das políticas de cotas raciais no dia 13 de maio. Como foi essa mobilização?

Alexandre do Nascimento: Fiz parte do grupo que redigiu, organizou e mobilizou as adesões ao manifesto. A tônica é a defesa da constitucionalidade e a importância das cotas como política de redução da desigualdade e democratização das instituições do ensino superior. O manifesto enfatiza as lutas que produziram o atual debate e as políticas de ação afirmativa no Brasil e polemiza com os argumentos contrários às cotas.

"A mobilização mostrou que o documento contrário às cotas expressa uma pequena parcela da sociedade brasileira, que tem dificuldade de reconhecer o caráter democrático das políticas de inclusão racial"

Alexandre Mendes: Fiquei bastante impressionado com a amplitude e a força da mobilização em favor das cotas raciais. O manifesto foi preparado rapidamente e, em apenas 24 horas, reuniu cerca de 800 assinaturas (atualmente, são milhares). Estudantes, professores, artistas, intelectuais, organizações, pré-vestibulares populares e movimentos sociais de todo o Brasil enviaram imediatamente apoio à política de cotas para negros. Fiquei muito satisfeito com o apoio vindo do mundo jurídico. A Defensoria Pública do Rio de Janeiro, por meio do Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, foi a primeira instituição jurídica a subscrever o documento. Depois, conseguimos apoio de juristas como Fábio Konder Comparato e o Sub-Procurador-Geral da República, professor. Juarez Tavares. A ante-sala do gabinete do ministro Gilmar Mendes ficou repleta de pessoas que compareceram ao STF para a entrega do texto. Nesse sentido, a mobilização em torno da defesa das cotas raciais demonstrou que o "manifesto dos 113" [contrários às cotas] expressa somente uma pequena parcela da sociedade brasileira, que tem dificuldade de reconhecer o avanço democrático representado pela política de inclusão racial vigente.

Como foi a reunião com o ministro Joaquim Barbosa?

Nascimento: Foi uma preliminar. O ministro é favorável às cotas e defende sua constitucionalidade. Conversamos sobre o clima e a dinâmica do STF, e entregamos o manifesto. Ele foi cauteloso e não revelou quando pretende liberar o processo, pois pediu vistas. Nossa reunião principal foi com o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, ao qual entregamos oficialmente o manifesto. Todos os ministros receberam uma cópia.

Mendes: A história de vida do ministro Joaquim Barbosa é um notório exemplo da existência real de pesadas barreiras, dificuldades e interdições vividas pelo negro, no Brasil e no mundo, quando busca realizar seus desejos e aspirações. Em várias entrevistas divulgadas na época de sua posse, ele relatou ter vivido um brutal sentimento de solidão e isolamento por não pertencer ao "ambiente branco", em especial quando estudou direito na Europa (Universidade de Sorbonne). Por outro lado, no caminho que percorreu para chegar de encarregado de limpeza do TRE-DF a ministro do Supremo, conheceu, também, as ricas possibilidades geradas pelo acesso ao conhecimento (e de sua produção), aliado às múltiplas e diversificadas vivências que sua condição racial e social proporcionou. Em minha opinião, esse conjunto de fatores pode explicar a defesa das cotas raciais, sustentada por ele no livro Ação afirmativa e princípio constitucional na igualdade: O Direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA, lançado em 2001. Em Brasília, mesmo não tendo adiantado nenhuma posição, em razão de seu status de magistrado, a expectativa é que seu voto seja não somente favorável, mas muito bem fundamentado.

Passados quase seis anos de políticas afirmativas concretas na educação, qual a avaliação do movimento negro?

Nascimento: A avaliação é positiva. As cotas já são uma realidade no Brasil, mas ainda não estão consolidadas nacionalmente como política pública. A maioria das iniciativas de cotas são das próprias universidades. As exceções são o estado do Rio de Janeiro, que possui uma lei estadual instituindo cotas no ensino superior, e o Prouni, que possui cotas para negros e indígenas. A posição do movimento negro é que uma lei federal é importante. As cotas estão ajudando a produzir uma classe média negra. E, mais importante, estão ajudando a abrir as instituições de ensino superior, historicamente criadas para as elites e que, ao longo do tempo, vêm produzindo e reproduzindo as desigualdades, inclusive raciais. Outro aspecto importante é que as cotas ajudam a sociedade a ver os negros de outra forma, na medida em que houver mais profissionais de nível superior negros e negras.

"Mais que constitucionais, as cotas são constituintes. Têm a ver com a possibilidade de um regime político definido pelas mobilizações sociais, que produzem e garantem valores como liberdade e igualdade"

As cotas raciais são constitucionais? Justas? Democráticas? Racistas?

Mendes: As cotas raciais são mais do que constitucionais, elas são constituintes. O que está em jogo é algo que vai além da democracia institucional. Tem a ver com a possibilidade de admitirmos um regime político definido pelas mobilizações sociais, que produzem e garantem concretamente valores como liberdade e igualdade. As cotas raciais não foram produzidas pela dinâmica jurídico-constitucional, mas pela atividade intensa e cotidiana dos pré-vestibulares para negros e pobres que exigiram novas formas de acesso ao ensino superior. Baruch de Espinosa, bem antes do que se convencionou chamar "constitucionalismo", já afirmava, no século 17, que o poder político só poderia existir enquanto permanecesse atual o "sujeito instituinte", denominado por ele de multidão (multitudo). A democracia é justamente o regime político em que o problema da fundação deveria permanecer sempre atual. As cotas raciais são justas e democráticas exatamente por expressarem o desejo de uma nova política de acesso à universidade, que possa mobilizar os desejos e a esperança de milhares de brasileiros negros e provenientes, em geral, dos bairros pobres das cidades. Mas é claro que os argumentos jurídico-constitucionais são importantes e devem ser levantados. O princípio da igualdade material tem sido apresentado como o fundamento para as diversas ações afirmativas de inclusão. Além disso, temos como objetivo constitucional da República brasileira a construção de uma sociedade livre e solidária, a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais.

O manifesto, de forma oportuna, também cita o artigo 4º da Convenção Internacional sobre Todas as Formas de Discriminação Racial (decreto 65.819/1969), que oferece respaldo às ações afirmativas. Todavia, percebo que um artigo importante sobre o tratamento constitucional ao ensino e à educação ficou um pouco esquecido na defesa das cotas raciais. Trata-se do inciso que estabelece o princípio da garantia do padrão de qualidade. Está se comprovando ano a ano que o acesso desses jovens na universidade incrementa a qualidade de ensino, seja pelo desempenho dos novos alunos, seja pela experiência de novas vivências, reflexões, ações e questionamentos que aparecem com a democratização do aprendizado. É preciso perceber que o ensino só possui qualidade se for democrático, múltiplo e diversificado. Posso colocar o exemplo da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que depois a adoção de cotas está muito mais aberta, criativa e produtiva. Não é por acaso que a UERJ esteve presente no manifesto através da assinatura do reitor da universidade, do vice-diretor, do centro acadêmico do direito e de vários professores. Devido à melhora no acesso universitário, a UERJ hoje oferece uma experiência universitária de maior qualidade. Da mesma forma, está se tornando evidente que a melhor forma de combater o racismo consiste no aprofundamento da democracia. Tenho certeza que as cotas impulsionam esse movimento constituinte.

Qual o impacto de uma decisão desfavorável no STF? Como isso seria encarado pelo movimento?

Nascimento: Seria um enorme retrocesso. O movimento negro, o primeiro a lutar por escola pública de qualidade para todos, passou um século batalhando para que a sociedade compreendesse o papel negativo do racismo. Hoje, a sociedade é, na sua maioria, favorável às cotas. Uma decisão negativa obrigaria a luta a se voltar para o Congresso, pois seria necessária uma emenda constitucional. Mas acreditamos que o STF fará prevalecer a sua responsabilidade pública, a sua responsabilidade com a consolidação da República (res publica, coisa pública) e com a Constituição, pois as cotas são constitucionais. Além disso, hoje são mais de meio milhão estudantes cujo direito de estudar foi garantido pelo Prouni e pelas políticas de cotas.

Independentemente da decisão, o movimento negro continuará lutando por políticas que combatam o racismo e democratizem a sociedade.

Mais

Bruno Cava é colunista do Caderno Brasil de Le Monde Diplomatique. Edições anteriores da coluna:

A função racial da Universidade
Como já não é possível condenar as cotas sociais, os conservadores deciciram atacar a discriminação positiva em favor dos negros. Declaram-se republicanos e meritocratas. É como se vivessem num país onde não houve escravidão e não é preciso enfrentar agora a desigualdade racial

Muito além da assistência estudantil
A mudança do perfil social das universidades, com a entrada de dezenas de milhares de jovens antes excluídos, exige uma política ativa de igualdade. Além de habitação e transporte dignos, é preciso assegurar a todos tempo livre para estudo, amplo acesso a livros e a outros bens culturais

Um ano de volta para casa
Faz um ano: uma passeata, um ato de coragem, uma afirmação de direitos. Milhares de jovens avançam pelas ruas do Rio e retomam o terreno histórico da UNE a Praia do Flamengo. À moda do MST, simplesmente arrombaram o portão metálico e ocuparam a terra. Agora, é preciso ir além

Prouni: qualidade é democracia
Pretos, pobres, e quase-pretos, de tão pobres, estão ingressando no ensino superior aos milhares. Além de transformar suas vidas, a experiência pode levar a uma universidade mais democrática e menos branca. Mas há quem resista, com base numa visão liberal de mérito e qualidade

A revolução do Cine Falcatrua
Um cineclube ligado à universidade desperta a fúria das distribuidoras de audiovisual ao exibir, sem fins de lucro, filmes baixados por internet. Disputa revela como é necessário superar, em defesa do público e dos artistas, os limites estreitos da "propriedade intelectual"

A democratização inadiável
Lutar contra a reforma universitária e o REUNI é legítimo numa democracia. Mas que fique claro: trata-se de uma luta de poucos contra muitos, de incluídos contra excluídos, do status quo contra a transformação, do fetiche disciplinar contra a transcidiplinariedade. Enfim, da direita contra a esquerda

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