Bélgica e Suíça são famosas pelos chocolates; alguém sabe de algum pé de cacau em Flandres ou na Basiléia? A Alemanha é grande exportadora de cafés industrializados; o leitor já ouviu falar de cafezais no Ruhr? Essas perguntas indicam o que está em jogo na Rodada de Doha: a cristalização da velhíssima divisão internacional do trabalho.
Gilson Caroni Filho
Ao dar sinais de que está disposto a aceitar a proposta encaminhada por Pascal Lamy, diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), que prevê cortes tarifários médios de 54% da indústria nos países em desenvolvimento, o Brasil está dando dois passos atrás e guardando um tropeço mais para frente. Cria uma fratura irreversível na aliança dos países emergentes (G20) e estabelece impasses desnecessários no âmbito do Mercosul.
A declaração do chanceler Celso Amorim de que "na hora da verdade, as avaliações podem não ser as mesmas. Cada país terá de tomar a sua decisão" destoam totalmente da política, até então, adotada no plano externo pelo governo Lula.
Como destacamos em artigo recente, o fundamental é fortalecer o Mercosul e estreitar laços com África do Sul, Índia e China. O que soa como pragmatismo é um preocupante indicativo de capitulação. O que está em curso em Genebra é tão cristalino como água de fonte. Doha, e a OMC-como-um-todo, assim como o GATT, velho antecessor, nada mais são que a cristalização da velhíssima divisão internacional do trabalho: os países outrora ditos "do terceiro mundo" entram com mão de obra e recursos naturais (a preços vis), e os países antes ditos "de primeiro mundo", com tecnologia e manufaturas (com alto valor agregado). Sub-Ricardo, "vantagens comparativas”, fórmulas tão velhas quanto o colonialismo, merecem um lugar de destaque em um antiquário, não na agenda de um governo que estabeleceu uma agenda de inserção soberana no mundo globalizado.
Bélgica e Suíça são famosas pelos chocolates; alguém sabe de algum pé de cacau em Flandres ou na Basiléia? A Alemanha é grande exportadora de cafés industrializados; o leitor já ouviu falar de cafezais no Ruhr? Os exemplos são tantos que não caberiam no espaço desse pequeno artigo. O que interessa é dissipar a cortina de fumaça, derrubar os sofismas que voltaram a embaralhar as cartas da mesa. A começar pelo que se convencionou chamar de luta pela redução de subsídios. Aqui, uma breve explicação se faz necessária.
Há subsídios e subsídios. A "exception culturelle" da França (apesar do uso feito pela direita francesa do conceito de multifuncionalidade), que visa também a preservar culturas e sociedades locais, é uma coisa; o protecionismo estadunidense em prol de gatos gordos daqueles "red states" cujos nomes começam por vogal, outra bem diferente.
Note-se que não ignoramos que, no caso europeu, a sustentação da renda dos agricultores está deixando de ser o pagamento para funções múltiplas, socialmente valorizadas, e não remuneradas pelo mercado, para se transformar em forma de garantir o lugar dos grandes produtores rurais no mercado mundial. Isso posto, há distinções e elas não podem ser ignoradas.
Os produtos primários, de petróleo a grãos, de há muito viraram "commodities", cujos preços são determinados nos mercados compradores sobre os quais o Brasil não tem qualquer ingerência, interferência ou influências. Qual a nosso grau de intervenção no jogo especulativo das Bolsas de Mercadorias de Chicago, Londres ou New York?
A contrapartida não é verdadeira; as cotações internacionais têm implicações no mercado interno, tanto em termos de oferta quanto de preços. Se a saca de arroz está com valor alto no mercado internacional, a troco de quê "nossos" arrozeiros vão querer vender prá mesa do "João", a não ser que ele pague preço de "John", "François" ou "Fritz", que ainda por cima bancam o custo de transporte?
O noticiário que destaca a pressão dos países ricos por abertura, pelos países pobres e "emergentes", de seus mercados "apenas" para bens industriais é, sem eufemismos, conversa mole pra "boi pirata" dormir. Afora os ditos "serviços" (bancos, finanças, seguros e resseguros, os serviços públicos ainda não "globalizados" etc.), há a agenda oculta das ditas propriedades industrial e intelectual, de medicamentos a "software", passando por toda a vastíssima "indústria do entretenimento".
Nesses termos e pelo exposto, a pergunta é se é mais vantajoso para o Brasil "fazer progressos" em Doha ou, em conjunto com outros paises, forçar o impasse? Tendo como meta a adoção de uma política econômica menos dependente de setores exportadores de produtos primários.
Quando o presidente Lula diz que ”o importante é que há decisão política de que nós podemos fazer um acordo, e ele será bom para todo mundo", comete um erro perigoso para quem construiu sua trajetória sob o fogo de negociações difíceis. Nada é “bom para todo mundo" quando o jogo é de soma zero. Estamos falando de imperialismo. Aquele que, para não deixar dúvidas, resolveu voltar a içar velas em águas latinas e caribenhas para garantir recursos naturais e um “mercado realmente livre”.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.
RODADA DE DOHA
OMC anuncia fracasso das negociações
Após nove dias de reunião em Genebra, países desistem de chegar a um acordo sobre o avanço da liberalização do comércio mundial. Proposta elaborada pelos EUA é rechaçada pela maioria dos países emergentes. Brasil aceita acordo e causa mal-estar com G-20 e Mercosul.
Maurício Thuswohl
RIO DE JANEIRO – O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, anunciou nesta terça-feira (29) em Genebra que as negociações multilaterais da Rodada de Doha _ que se estenderam por nove dias na cidade suíça _ foram encerradas sem que os países chegassem a um acordo. O fracasso de mais uma tentativa de avanço na liberalização do comércio mundial já era esperado, pois parecia intransponível a divergência entre os países mais industrializados e a maioria dos países emergentes frente a temas como o fim dos subsídios agrícolas ou a abertura de mercados para bens e serviços.
Num último esforço, os diplomatas passaram toda a noite de segunda-feira (28) e parte da madrugada seguinte reunidos a portas fechadas para tentar aprovar o pacote apresentado na véspera por Lamy. Países como o Brasil e a Austrália, que já haviam aceitado o acordo, tentavam mediar as negociações, mas no fim prevaleceram as diferenças entre os Estados Unidos e o bloco liderado por China e Índia. Assim sendo, foi declarada encerrada mais essa tentativa de desbloquear a rodada de negociações iniciada há sete anos na cidade de Doha, no Qatar.
O próprio Pascal Lamy coordenou reuniões de emergência com chineses e indianos, mas um ponto impediu o fim do impasse: o direito às salvaguardas agrícolas especiais concedido aos países em desenvolvimento. Por este mecanismo, os países em desenvolvimento têm o direito de elevar suas tarifas sempre que houver um surto de importação de um determinado produto. Apesar da oposição dos EUA, esse ponto acabou sendo incluído no relatório de Lamy, mas a falta de acordo sobre os detalhes (o diabo mora neles) colocou tudo a perder.
China e Índia defendem o direito de acionar o mecanismo de salvaguardas especiais sempre que as importações de um determinado produto subirem 10% em relação ao volume médio dos últimos três anos. Os EUA, com o apoio da União Européia e a discreta anuência de Japão, Brasil e Austrália, querem que as salvaguardas somente sejam acionadas quando as importações subirem 40% em relação ao volume médio dos últimos três anos. Como ninguém cedeu, as negociações foram encerradas no início da noite desta terça-feira (horário da Suíça).
Uma derradeira tentativa de salvar um acordo será empreendida pelos diplomatas durante a reunião do Comitê de Negociações Internacionais da OMC, que começa em poucos dias, também em Genebra. As possibilidades de reversão do quadro, no entanto, são remotas: “Foi um fracasso, mas espero que, ao menos, o que discutimos aqui durante nove dias sirva de base para uma nova abordagem no futuro”, disse à agência Reuters o ministro do Comércio da Nova Zelândia, Phill Goff.
Chefe da delegação dos EUA, Susan Schwab também evitou falar em morte definitiva da Rodada de Doha: “Os Estados Unidos se mantém comprometidos com a Rodada de Doha. Este não é o momento de se falar em colapso definitivo das negociações. O compromisso dos Estados Unidos continua na mesa, mas esperamos respostas recíprocas”, disse. A realidade, no entanto, é que o fracasso das negociações em Genebra, se não for revertido a tempo, pode significar o enfraquecimento definitivo da própria OMC.
O tom norte-americano durante as negociações foi menos ameno do que o adotado por Schwab ao fim das reuniões. Em entrevista concedida na segunda-feira (28) ao jornal O Globo, um outro representante do governo dos EUA, David Shark, condenou chineses e indianos por não aceitarem o pacote proposto por Lamy: “Infelizmente, uma economia emergente importante _ a Índia _ imediatamente rejeitou o pacote. Em seguida, outra economia emergente _ a China _ abandonou as discussões. Essas ações colocaram a Rodada de Doha em seu mais grave risco nesses sete anos”, disse.
A proposta dos EUA
No pacote apresentado aos países emergentes, os EUA, entre outras coisas, se comprometem a estabelecer um limite de US$ 14,5 bilhões por ano para o subsídio doméstico a seus agricultores. Atualmente, esse limite é de US$ 40 bilhões, mas a redução teria pouco valor prático, pois, para se ter uma idéia, o valor total do subsídio pago nos EUA no ano passado foi de US$ 8 bilhões. A União Européia, por sua vez, aceitou reduzir 80% de seus subsídios domésticos para um limite máximo de US$ 36 bilhões por ano. Os países ricos, por fim, aceitaram fazer um corte médio de 54% em suas tarifas agrícolas.
Em contrapartida, os países ricos pedem uma maior abertura dos mercados emergentes para seus produtos industrializados (com corte médio de tarifas também de 54%) e para os setores de bens e serviços públicos. A troca, no entanto, não foi considerada vantajosa pela maioria dos países que compõem o G-20, uma vez que não se garantiu a competitividade de seus produtos nos mercados dos países ricos: “Não existe acordo se não pudermos proteger nossos milhões de pequenos agricultores”, resumiu o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath.
Brasil, G-20 e Mercosul
Apesar de ter chegado à Genebra falando grosso, o Brasil surpreendeu ao aceitar rapidamente a proposta costurada pelos países ricos, numa postura que causou grande desconforto entre os aliados no G-20 e no Mercosul. Além de China e Índia, outros países de peso como Argentina e África do Sul se mantiveram firmes contra a proposta apresentada por Pascal Lamy. O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Celso Amorim, lamentou o fracasso das negociações: “É incrível que tenhamos fracassado por causa de um só ponto. É lamentável o que ocorreu. Alguém de outro planeta não acreditaria que depois de todo o progresso obtido não tenhamos sido capazes de concluir as negociações. Estou muito decepcionado”, disse à Reuters.
Enquanto duraram as discussões, Amorim foi um dos que mais se esforçou para levar chineses, indianos e norte-americanos a um acordo. O ministro brasileiro também teve de gastar seu tempo para explicar aos colegas do G-20 e do Mercosul a polêmica posição brasileira: “Negociamos pensando sempre no melhor para o Brasil e no melhor para os nossos parceiros do Mercosul”, disse.
Mesmo com o risco de desconforto frente aos países aliados, Amorim e sua equipe agiram com o irrestrito apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “O Brasil não quebrou solidariedade nenhuma. Participamos do G-20, queremos que o acordo seja do interesse do G-20, mas vocês hão de convir que dentro do G-20 temos assimetrias e disparidades enormes entre os países”, disse Lula, quando as negociações ainda estavam em curso.
COMÉRCIO INTERNACIONAL : Corra, Doha, corra...
Os representantes dos países-membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) tentam, ou fingem tentar, um acordo sobre comércio agrícola, serviços e redução de barreiras a produtos industriais. A assimetria de interesses e a crise sistêmica do capitalismo não deixam qualquer sombra de dúvida: aos países periféricos só resta resistir ou capitular. A análise é de Gilson Caroni Filho.
Gilson Caroni Filho
Uma mesma história contada três vezes, com desenlaces diferentes, pode ser uma obra de arte. É o caso de “Corra, Lola, Corra", filme alemão dirigido por Tom Tykwer, onde não faltam roteiro engenhoso e uma corajosa linguagem cinematográfica. Dependendo da combinação de possibilidades, o desfecho pode ser feliz ou não. Estamos diante de uma alegoria da vida.
Em Genebra, o enredo é distinto. Os representantes dos países-membros da OMC ( Organização Mundial do Comércio) tentam, ou fingem tentar, um acordo sobre comércio agrícola, serviços e redução de barreiras a produtos industriais. Ao contrário da obra-prima de Tykwer não existem possibilidades de final feliz. A assimetria de interesses e a crise sistêmica do capitalismo não deixam qualquer sombra de dúvida: aos países periféricos só resta resistir ou capitular.
No caso brasileiro, reduzir tarifas de importação, ainda mais com câmbio apreciado, só prejudicaria setores industriais com uso intensivo de mão de obra ou baixo coeficiente de importação na sua estrutura produtiva. Ao contrário do que apregoam os que rezam pelo credo liberal, uma redução tarifária em nada forçaria uma maior competitividade ou modernização da indústria nativa. Se somarmos a isso, as concessões pretendidas pelos Estados Unidos na área de serviços, o êxito de Doha seria uma recolonização impensável.
Podemos concordar ou não com Immanuel Wallerstein quando ele afirma que o capitalismo vive tensões estruturais com as quais já não consegue lidar, mas as evidências empíricas sugerem mais atenção às suas teses. Três aumentos indicam que o processo acumulativo vive uma crise sistêmica: o dos custos salariais em função da desruralização, a elevação dos preços de matérias-primas, como decorrência do esgotamento ecológico, e a inevitabilidade do crescimento da carga tributária em escala mundial.
Nesse contexto, as margens de manobra em Genebra são nulas. Pode-se usar o deslize do chanceler Celso Amorim como pretexto para o impasse. Estampar em manchetes que "menção ao nazismo atrapalha negociação crucial de comércio", mas o fato é que, defendidos interesses soberanos, esse é um encontro natimorto. O que é ótimo.
A rigor, o único prejudicado com o fracasso da Rodada de Doha é o agronegócio, setor que se notabiliza por concentrar renda e pelos danos ambientais impostos à população pobre do campo. Como destacou o secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, "a ênfase no modelo agroexportador torna o Brasil vulnerável no mercado internacional, dependente de produtos de baixo valor agregado e cujos preços oscilam muito a cada ano". É esse o projeto "estruturante" que queremos?
Do ponto de vista da geração de empregos e da produção de alimentos para o mercado interno, a ausência de acordo em Genebra é irrelevante. Mas parece que o mais propício, no momento, é buscar crescimento do comércio exterior com outros países em desenvolvimento. Mais que nunca fortalecer o Mercosul e estreitar laços com África do Sul, Índia e China.
Ninguém discute a importância da OMC e o papel do multilateralismo em todas as esferas do mundo atual, mas aos que defendem uma minimização do papel do Estado como forma de ampliar o livre comércio entre empresas de todo o mundo, a advertência do economista John Gray deve ser repetida à exaustão.
"Tanto na teoria quanto na prática, o efeito da mobilidade total do capital é anular a doutrina ricardiana da vantagem comparativa". Não é hora de vender soja para comprar trator
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