The Observer, domingo, 4/1/2009
por Chris McGreal, de Jerusalém
É uma guerra em dois fronts. Há meses, enquanto Israel começava a preparar-se para desencadear mais uma onda de desgraça sobre Gaza, o governo reconheceu que seu principal objetivo era destruir a "infra-estrutura do terror" do Hamás (o que incluiria postos de polícia, casas, escolas e mesquitas).
Ao mesmo tempo, Israel preparou também uma operação paralela, que considerou necessária para persuadir o mundo de que sua causa seria justa, mesmo que não conseguissem esconder as pilhas de cadáveres de mulheres e crianças palestinenses nos necrotérios e pelas ruas. A campanha de persuação seria indispensável para garantir que a guerra não fosse mostrada como guerra de ocupação, mas como alguma espécie de luta do ocidente contra o terror vindo do oriente – e como meio para intimidar o Iran.
Depois do fracasso de Israel, na tentativa de invadir o Líbano em 2006 – que não foi apenas fracasso militar, mas também foi fracasso político e militar –, o governo de Telavive trabalhou durante meses, em Israel e em todo o mundo, na preparação do assalto a Gaza. O lobby operou em silêncio mas muito ativamente: governos estrangeiros, diplomatas, todos foram mobilizados, sobretudo na Europa e em parte do mundo árabe.
Estabeleceu-se uma rígida pauta de temas para influenciar a mídia – operação que, como se vê foi bastante bem-sucedida. E quando o ataque começou, há uma semana, uma legião de diplomatas, grupos de lobby, blogueiros e outras organizações de apoio aos israelenses foi acionada para martelar a opinião pública. O objetivo era fazer os israelenses aparecerem como vítimas, mesmo depois de terem assassinado 430 palestinenses só na primeira semana de violência, um terço, no mínimo, dos quais civis ou policiais e agentes de segurança palestinenses.
O brutal assalto a Gaza, com um bombardeamento a cada 20 minutos, não fez parar a reação do Hamás, cujos foguetes de fabricação caseira já mataram quatro israelenses e já alcançam distâncias maiores do que antes no território de Israel, e têm feito fugir dezenas de milhares de pessoas. Ontem, Israel invadiu a fronteira de Gaza por terra. E a operação diplomática prossegue, para justificar a matança de inocentes – com sucesso quase certo.
Dan Gillerman, embaixador de Israel na ONU até há poucos meses, foi encarregado pelo ministério dos Negócios Estrangeiros da campanha de "Public Relations". Disse que o trabalho de campo, diplomático e político, está sendo organizado há meses.
"Tudo foi planejado com muita antecedência", disse ele. "Eu fui encarregado pela ministra dos Negócios Estrangeiros para coordenar os esforços de Israel e nunca vi estrutura tão complexa como essa (não se sabe se se referia ao ministério dos Negócios Estrangeiros, ao ministério da Defesa, ao gabinete do primeiro-ministro, à segurança interna ou ao exército israelenses) operar tão coordenadamente, de modo tão eficaz, para divulgar a nossa mensagem."
Em comunicados feitos simultaneamente em Jerusalém, em Londres, em Bruxelas e em Nova York, todos repetiram a mesma fala: que Israel não teve escolha senão responder com fogo ao fogo dos rojões do Hamás; que o ataque seguinte seria contra "a infra-estrutura do terror" em Gaza e visaria diretamente aos combatentes do Hamás; que havia risco de atingir civis mas, isso, porque o Hamás usa "escudos humanos" e os "terroristas e seus depósitos de armamento" são ocultados nas cidades, entre a população.
Assim, passo a passo, avançou a estratégia para apagar o tema da ocupação. Israel retirou-se oficialmente de Gaza em 2005, quando saíram colonos e soldados, disseram os israelenses. Ali estaria a oportunidade para implantar as bases de um Estado Palestino... mas os palestinenses optaram por atacar Israel.
Israel descreve o Hamás como parte do "eixo do mal" dos fundamentalistas islâmicos, com o Iran e o Hizbóllah. As ações do Hamás, dizem os israelenses, nada têm a ver com a ocupação da Cisjordânia, o bloqueio de Gaza, ou o assassinato, por Israel e grande número de palestinenses, mesmo depois da retirada. "Israel é parte do mundo livre e combate o extremismo e o terrorismo. O Hamás não." – nas palavras da ministra dos Negócios Estrangeiros e líder do partido Kadima, Tzipi Livni, ao chegar à França, em mais um movimento da estratégia de propaganda da semana passada.
Mais cedo, na mesma semana, Livni requentou a estratégia e a retórica da guerra ao terror de George W Bush: "quem não está conosco está contra nós. "Hoje, cada indivíduo na Região e no mundo tem de escolher um lado. E os lados mudaram. Hoje, já não se trata de Israel de um lado e os árabes de outro", disse ela. "Israel escolheu seu lado no dia em que o Estado foi fundado; o povo judeu escolheu seu lado ao longo de milhares de anos de história; e em todas as sinagogas do mundo reza-se pela paz, hoje."
É mensagem que visa diretamente aos governos árabes aliados de Israel, como o Egito e a Síria, que vêem com hostilidade o Hamás. "Parte significativa do mundo árabe e muçulmano sabe que o Hamás representa ameaça maior, contra todos, do que Israel. O extremismo, o fundamentalismo ameaçam todos nós", disse Gillerman. "Vimos o efeito disso em várias respostas, no que declararam oficialmente o presidente Mubarak (do Egito) e o presidente Abbas (da Palestina) e outras autoridades árabes. Essa solidariedade dos árabres a Israel é sem precedentes."
De fato, o ministro do Exterior do Egito, Ahmed Aboul Gheit, disse que seu governo sabia exatamente o que viria: "Há, pelo menos há três meses, sinais claros de que Israel atacaria as forças do Hamás em Gaza. Infelizmente, o Hamás errou e ofereceu, de bandeja, a chance que Israel esperava."
Seja tudo isso verdade ou mentira, também é crucialmente importante o que ninguém disse. Já há meses, sim, Livni vem falando de exterminar o Hamás, mas dizia que o Hamás não seria considerado justificativa suficiente, para que a comunidade internacional aceitasse o ataque e a invasão de Gaza. Por isso se fala tanto, hoje, sobre ter tentado o cessar-fogo, que o Hamás teria "desrespeitado". Vez ou outra, alguém, alguém vacila, e a verdade aparece. Há poucos dias, com o assalto a Gaza já em andamento, Gabriela Shalev, embaixadora de Israel na ONU, disse que "a ação prosseguirá, até o Hamás ter sido completamente destroçado". Furiosos, vários funcionários israelenses em Jerusalem fizeram-na saber que declarações como aquela poriam a perder todo o esforço diplomático.
Nas primeiras horas depois de iniciado o massacre, Israel repetiu sempre as mesmas mensagens para a "comunidade internacional". Livni e o ministro da Defesa, do partido Labour, Ehud Barak, foram vistos infinitas vezes, em praticamente todos os noticiários internacionais de televisão. O comando dos serviços de informação e jornalismo do governo isralense insistentemente chamou a atenção da mídia internacional para os 8.500 rojões disparados de Gaza contra Israel em oito anos e para os 20 israelenses civis mortos – muito mais do que para o bloqueio de castigo coletivo contra Gaza [que configura crime de guerra] e para os 1.700 palestinenses mortos nos ataques do exército de Israel desde que colonos judeus foram evacuados de Gaza há três anos.
Grupos de lobby ativos na mídia, como o Bicom (British Israel Communications and Research Centre, Centro de Comunicações e Pesquisa Britânico-Israelense) em Londres, e o IPA (Israel Project in America, Projeto Israel na América) foram mobilizados. Distribuíram briefings, organizaram conferências de imprensa e entrevistas. O exército de Israel distribuiu imagens de vídeo pelo YouTube. Em Nova York, diplomatas israelenses montaram uma "teleconferência entre cidadãos e jornalistas", de duas horas, no Twitter, e reuniram milhares de pessoas. Simultaneamente, sem qualquer divulgação, Israel fechou todas as vias de acesso para Gaza e Cisjordânia. De fato, nenhum jornalista independente, até hoje, conseguiu aproximar-se o suficiente para investigar os resultados da estratégia de propaganda de Israel.
Livni chegou a sugerir que a chacina seria boa para os palestinenses, porque os ajudaria a libertar-se das garras do Hamás. "Ela está tentando me convencer de que o que estou vendo aqui está sendo feito para o meu bem", disse Diana Buttu, advogada da OLP e negociadora que participou dos encontros que levaram à retiradas dos israelenses de Gaza, em 2005. "Ouvi o mesmo argumento, repetido por amigos israelenses: 'Vocês deveriam ser gratos, por nós estarmos destruindo o Hamás. O Hamás é problema também para vocês.' Disse a eles o mesmo que digo aqui: não preciso que Israel diga a mim o que é bom ou ruim para mim. E é claro que o massacre que todos vemos acontecer não pode ser bom para ninguém."
E quando o massacre começou, Israel rapidamente divulgou entrevistas e releases de imprensa, em que se dizia que a grande maioria dos mais de 400 mortos seriam combatentes do Hamás e que os prédios destruídos seriam parte da "infra-estrutura do terror". Fato é que um terço dos assassinados por Israel eram policiais. A força policial (guardas-de-trânsito, por exemplo) em Gaza é dirigida pelo Hamás, mas, disse Buttu, é evidentemente mentira que sejam terroristas ou que o Hamás seja organização terrorista.
"Há policiais em Gaza, como em qualquer lugar do mundo. Trabalham no controle da ordem interna, no combate ao tráfico de drogas e como guardas-de-trânsito. Claro que não são combatentes do Hamás. 70 policiais foram mortos no mesmo local: durante a cerimônia de formatura. Claro que não eram guerrilheiros. Israel está matando qualquer pessoa que trabalhe para o governo do Hamás, funcionários públicos, portanto. Não há limites, nessa loucura: estão matando pessoas pelo crime de terem votado nos candidatos do Hamás, em eleições legais e legítimas", concluiu.
Assim também, enquanto Israel acusa o Hamás por estar pondo em risco a vida de civis, porque esconderiam a infra-estrutura do poder em casas 'comuns', os mísseis estão destruindo prédios administrativos, estações policiais, uma universidade.
Israel diz que o Hamás abandonou as negociações para um cessar-fogo em junho, e que Telavive desejava que prosseguissem. "Israel é quem mais deseja o fim da violência. Não procuramos a violência. Mas não tivemos escolha. O Hamás violou o cessar-fogo", disse Livni.
Também não parece ser verdade. Muitos especialistas dizem que o cessar-fogo começou a ser desrespeitado em novembto, quando militares israelenses assassinaram seis combatentes do Hamás, em Gaza. Muitos observaram também que a ação aconteceu no dia das eleições nos EUA, quando praticamente ninguém, no mundo, soube do que acontecia em Gaza. O Hamás respondeu com uma onda de rojões. Mais seis palestinenses morreram na semana seguinte, nos ataques de retaliação dos israelenses.
"Jamais pararam de atacar Gaza militarmente, por terra e pelo ar, durante toda a vigência do cessar-fogo", disse Buttu. Nem suspenderam a matança de palestinenses. Durante os já quase três anos de governo legítimo do Hamás, e sem contar a chacina a que assistimos hoje, Israel matou mais de 1.300 pessoas em Gaza e na Cisjordânia. Embora muitos fossem ativistas do Hamás – e centenas de palestinenses também foram mortos por palestinenses, nas lutas entre o Hamás e o Fatah –, há um número inadmissível de assassinatos de civis.
O Centro Palestinense para Defesa e Promoção dos Direitos Humanos diz que uma, de cada quatro vítimas, tem menos de 18 anos. Entre junho de 2007 e junho de 2008, os ataques pelo exército de Israel mataram 68 crianças palestinenses em Gaza. Outras 12 foram mortas na Cisjordânia.
[...] Durante o cessar-fogo, morreram em Gaza, como resultado direto de ataques israelenses, 22 pessoas, entre as quais duas crianças e uma mulher.
Talvez o fator crucial para explicar o colapso do cessar-fogo sejam ideias diferentes sobre os objetivos do cessar-fogo. Para Israel, seria oferecer paz em troca de paz, sem alterar as demais condições vigentes na Região. Para o Hamás, o cessar-fogo deveria levar ao fim do bloqueio de Gaza, o qual, para Israel, seria medida de segurança contra os ataques com rojões Qassam.
Mas Israel não levantou o bloqueio que destruía a economia e implicava falta de alimentos, de combustível e de remédios. Em Gaza, todos concluíram que o bloqueio nada tinha a ver com os rojões caseiros do Hamás e que era, sim, um castigo coletivo que Israel aplicava a todos que votaram no Hamás.
Argumento central, sempre repetido, na mensagem dos israelenses é que, quando da retirada dos soldados e dos colonos judeus, há 3 anos, deram a Gaza a oportunidade para organizar-se e prosperar. "Para criar condições de esperança, retiramos nossos soldados e nossos colonos. Em vez de converter-se em núcelo de um Estado Palestino, o Hamás impôs lá um regime islâmico extremista", disse Livni. Os oficiais israelenses dizem o que Hamás, e, por extensão, seus eleitores, só estão interessados em assassinar e odiar judeus e que não lhe interessa construir seu país.
Os palestinos têm opinião diferente. Buttu diz que desde o dia em que Israel retirou-se de Gaza, tudo passou a ser feito para impedir qualquer progresso econômico. "Quando os israelenses se retiraram, esperávamos que pudéssemos ter algum tipo de vida, que pudéssemos, pelo menos, nos deslocar. Esperávamos que se abrissem as passagens de fronteira. Nunca imaginamos que, em seguida, estaríamos reduzidos a ter de implorar por comida", diz ela.
Buttu observa que mesmo antes de o Hamás ter sido eleito, há três anos, os israelenses já bloqueavam o acesso a Gaza e as saídas de Gaza. Os palestinenses tiveram de apelar à secretária-de-Estado dos EUA, Condoleezza Rice, e ao presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, para que pressionassem Israel para que admitissem que alguns poucos caminhões com suprimentos entrassem diariamente em Gaza. Israel primeiro concordou, depois suspendeu tudo. "Tudo isso foi antes de o Hamás ser eleito. Tudo o que Israel diz é mentira. Se já não houvesse evidente política de bloqueio, porque teria sido preciso recorrer a Rice e Wolfensohn, para que os produtos chegassem a Gaza?" perguntou Buttu.
Yossi Alpher, ex-oficial do serviço secreto, Mossad, e ex-conselheiro assessor do então primeiro-ministro, Ehud Barak, nas conversações de paz, diz que o bloqueio de Gaza é estratégia fracassada e que mais contribuiu para fortalecer do que para abalar o Hamás. "Por mais difícil que seja provar que o bloqueio foi prejudicial aos interesses de Israel, não há dúvidas de que não ajudou em nada. Parece-me que trouxe mais danos que vantagens. O bloqueio é punição coletiva, provoca sofrimento imenso. Não induziu qualquer atitude favorável a Israel entre os palestinenses. Nada justifica o bloqueio. Por que mantê-lo?" pergunta. "Acho que houve quem pensasse que, se matássemos os palestinenses de fome, eles derrubariam o Hamás e poriam fim àqueles rojões. É insistir em repetir, eternamente, as mesmas políticas fracassadas."
Nenhum comentário:
Postar um comentário