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sábado, 17 de janeiro de 2009

por Uri Avnery*

Cerca de 70 anos atrás, durante a II Guerra Mundial, foi cometido um crime odioso na cidade de Leninegrado. Durante mais de mil dias, uma gang de extremistas, chamada "Exército Vermelho" manteve como reféns os milhões de habitantes da cidade e provocou assim a retaliação da Wehrmacht alemã contra centros populacionais. Os alemães não tiveram outra alternativa senão: bombardear a população e impor um bloqueio total, o que provocou a morte centenas de milhares de pessoas.

Pouco antes, um crime semelhante foi cometido na Inglaterra. A gang de Churchill infiltrou-se entre os moradores de Londres, aproveitando-se de milhões de cidadãos como um escudo humano. Os alemães foram obrigados a enviar a sua Luftwaffe e com relutância reduziram a cidade a escombros. Chamaram a isso de "Blitz".

Esta é a descrição que apareceria hoje nos livros de história - se os alemães tivessem vencido a guerra.

Absurdo? Não mais absurdo do que as descrições diárias nos nossos media, que são repetidas ad nauseam: os terroristas do Hamás utilizam os habitantes de Gaza "reféns" e exploram as mulheres e crianças como "escudos humanos". Assim, não nos deixam outra alternativa senão executar bombardeamentos maciços, nos quais, para nosso profundo desgosto, milhares de mulheres, crianças e homens desarmados são mortos e mutilados.

O FOSSO NA GUERRA DE PROPAGANDA

Nesta guerra, como em qualquer guerra moderna, a propaganda desempenha um papel importante. A disparidade entre as forças, entre o exército israelense - com seus aviões, helicópteros com metralhadoras, drones [1] , navios de guerra, artilharia e tanques - e uns poucos milhares de combatentes do Hamas com armamento ligeiro é de um para mil, talvez de um para um milhão. Na arena política o fosso entre eles é ainda maior. Mas na guerra de propaganda, o fosso é quase infinito.

Quase todos os media ocidentais repetiram inicialmente a linha oficial da propaganda israelense. Ignoraram totalmente o lado palestino da história, muito menos as manifestações diárias dos pacifistas israelenses. A lõgica do governo israelense ("O Estado deve defender seus cidadãos contra os foguetes Qassam") foi aceite como a verdade total. A visão do outro lado, de que os Qassams são uma retaliação pelo sítio que esfaima um milhão e meio de habitantes da Faixa de Gaza,

O mundo aceitou como verdadeiro o argumento de propaganda do governo de Israel ("O Estado tem de defender os cidadãos contra os foguetes Qassam"). Nenhum jornal lembrou que os Qassams são reação ao sítio, cerco, bloqueio que mata de fome 1,5 milhão de seres humanos na Faixa de Gaza, nunca foi mencionada.
Só quando as cenas horríveis de Gaza começaram a aparecer nos écrans das TV ocidentais é que a opinião pública gradualmente começou a mudar.

É verdade, os canais de TV ocidentais e israelenses só mostraram uma minúscula fracção dos horrores que aparecem 24 horas por dia no Al-Jazeera, mas uma foto de um bebé morto nos braços de um pai aterrorizado é mais poderosa do que um milhar de frases construídas com elegância pelo porta-voz do exército israelense. E isto é que decisivo, afinal de contas.

A guerra - toda a guerra - está o âmago das mentiras. Quer seja chamada de propaganda ou de guerra psicológica, todos aceitam que está certo mentir por um país. Alguém que fale a verdade corre o risco de ser marcado como traidor.

O perturbante é que a propaganda é mais convincente para o próprio propagandista. E depois de alguém convencer-se de que uma mentira é a verdade, já não se pode tomar decisões racionais.

Um exemplo deste processo está na mais chocante atrocidade desta guerra, até agora: o bombardeamento da escola das Nações Unidas de Fakhura, no campo de refugiados Jabaliya.

Imediatamente depois de o incidente ficar conhecido no mundo todo, o exército "revelou" que combatentes do Hamas estiveram a disparar morteiros junto á entrada da escola. Como prova eles divulgaram uma foto aérea que na verdade mostrava a escola e o morteiro. Mas pouco tempo depois o oficial mentiroso do exército teve de admitir que a foto já tinha mais de um ano. Em resumo: uma falsificação.

Mais tarde o oficial mentiroso afirmou que "os nossos soldados foram alvejados de dentro da escola". Mal se passou um dia o exército teve de admitir ao pessoal da ONU que aquilo também era uma mentira. Ninguém atirou de dentro da escola, não havia quaisquer combatentes do Hamas dentro da escola, a qual estava cheia de refugiados aterrorizados.

Mas a admissão já não fazia grande diferença. Por essa altura, o publico israelense estava totalmente convencido de "eles atiraram de dentro da escola" e os locutores da TV declaravam isto como um simples facto.

O mesmo se passa com as outras atrocidades. Todo bebé metamorfose-ia-se, no acto de morrer, como terrorista do Hamas. Toda mesquita bombardeada instantaneamente torna-se uma base do Hamas, todo edifício de apartamento num esconderijo de armas, toda escola um posto de comando do terror, todo edifício civil um "símbolo do domínio do Hamas". Portanto, o exército israelense mantém a sua pureza como o "exército mais moral do mundo".

DOENÇA SOCIOPÁTICA

A verdade é que as atrocidades são um resultado directo do plano de guerra. Isto reflecte a personalidade de Ehud Barak - um homem cujo modo de pensar e cujas acções são a evidência clara do que se chama "insanidade moral", uma doença sociopática.

O objectivo real (além de ganhar cadeiras nas próximas eleições) é terminar o domínio do Hamas na Faixa de Gaza. Na imaginação dos planeadores, o Hamas é um invasor que tomou o controle de um país estrangeiro. A realidade, naturalmente, é inteiramente diferente.

O movimento Hamas ganhou a maioria dos votos nas eleições perfeitamente democráticas que se verificaram na Cisjordânia, em Jerusalém Leste e na Faixa de Gaza. Ganhou porque os palestinos chegaram à conclusão de que a abordagem pacífica do Fatah nada obtivera de Israel - nem um congelamento do assentamentos, nem a libertação dos prisioneiros, nem quaisquer passos significativos para acabar e ocupação e criar o Estado palestino. O Hamas está profundamente enraizado na população - não só como um movimento de resistência a combater o ocupante estrangeiro, como o Irgun e o Grupo Stern no passado - como também como um corpo político e religioso que proporciona serviços sociais, educacionais e médicos.

Do ponto de vista da população, os combatentes do Hamas não são um corpo estranho, mas filhos de toda a família da Faixa e de outras regiões palestinas. Eles não se "escondem por trás da população", a população encara-o como os seus únicos defensores.

Portanto, toda a operação está baseada em pressupostos errados. Ao tornar a vida da população num inferno isso não faz com que ela se levante contra o Hamas. Ao contrário, une-a por trás do Hamas e reforça a sua determinação de não se render. A população de Leninegrado não se levantou contra Staline, nem tão pouco os londrinos levantaram-se contra Churchill.

Ele, ao dar a ordem para esta guerra com estes métodos numa área densamente povoada, sabia que esta provocaria uma carnificina terrífica de civis. Aparentemente isto pouco lhe importava. Ou acreditava que "mudarão o seu modo de pensar" e "queimarão a sua consciência", de modo que no futuro não ousarão resistir a Israel.

Uma prioridade principal para os planeadores era a necessidade de minimizar baixas entre os solados, sabendo que o estado de espírito pró guerra de grande parte do público mudaria se chegassem relatos de baixas. Foi o que aconteceu na I e II Guerras do Líbano.

Esta consideração desempenhou um papel especialmente importante porque toda a guerra é parte da campanha eleitoral. Ehud Barak, que ganhava nos inquéritos efectuados nos primeiros dias da guerra, sabia que as suas classificações entrariam em colapso se fotos de soldados mortos enchessem os écrans das TV.

Portanto, foi aplicada uma nova doutrina: evitar perdas entre os nossos soldados através da destruição total de tudo o que estiver no seu caminho. Os planeadores estavam não só prontos para matar 80 palestinos para salvar um soldados israelense, como aconteceu, como também 800. A fuga a baixas do nosso lado é a ordem de comando predominante, a qual está a provocar números recorde de baixas civis do outro lado.

Isto significa a escolha consciente de uma espécie de guerra especialmente cruel - e isto tem o seu calcanhar de Aquiles.

Uma pessoa sem imaginação como Barak (seu slogan eleitoral: "Não um lindo rapaz, mas um líder") não pode imaginar como pessoas decentes por todo o mundo reagem a acções como a matança de famílias inteiras, a destruição de casas sobre a cabeças dos seus moradores, as fileiras de rapazes e moças em mortalhas brancas prontos para enterrar, os relatos acerca de pessoas a sangrarem até a morte durante dias porque não é permitido que as ambulâncias as recolham, a morte de médicos no seu caminho para salvar vidas, a morte de condutores da ONU que traziam comida. As fotos dos hospitais, com os mortos, os moribundos e os feridos a jazerem juntos sobre o chão por falta de espaço, chocaram o mundo. Nenhum argumento tem qualquer força após uma imagem de uma pequena menina a jazer no chão, torcendo-se com o sofrimento e a gritar: "Mamã! Mamã!"

Os planeadores pensavam que podiam impedir o mundo de ver estas imagens proibindo pela força a cobertura da imprensa. Os jornalistas israelenses, para sua vergonha, concordaram em satisfazer-se com os relatos e fotos providenciados pelo porta-vozes do Exército, como se fossem notícias autênticas, enquanto eles próprios permaneciam a milhas dos acontecimentos. Aos jornalistas estrangeiros tão pouco foi permitido o acesso, até que protestaram e foram levados em tours rápidos de grupos seleccionados e supervisionados. Mas numa guerra moderna, uma visão estéril fabricada não pode excluir totalmente todas as outras - as máquinas fotográficas estão dentro da faixa, no meio do inferno, e não podem ser controladas. A Aljazeera difunde as fotos o tempo todo e atinge todos os lares.

BATALHA PELOS ÉCRANS

A batalha pelo écran de TV é uma das batalhas decisivas da guerra.

Centenas de milhões de árabes, da Mauritania ao Iraque, mais de mil milhões muçulmanos desde a Nigéria até a Indonésia vêm as fotos e horrorizam-se. Isto tem um forte impacto sobre a guerra. Muito dos espectadores vêm os governantes do Egipto, da Jordânia e da Autoridade Palestina como colaboracionistas de Israel na execução destas atrocidades contra seus irmáos palestinos.

O serviços de segurança dos regimes árabes estão a registar uma perigosa fermentação entre os povos. Hosny Mubarak, o mais exposto dirigente árabe devido ao seu encerramento da passagem de Rafah diante de refugiados aterrorizados, começou a pressionar os decisores em Washington, que até então haviam bloqueado todos os apelos por um cessar fogo. Estes começaram a entender a ameaça a interesses americanos vitais no mundo árabe e subitamente mudaram a sua atitude - provocando consternação entre os satisfeitos diplomatas israelenses.

Pessoas com insanidade moral não podem realmente entender os motivos de pessoas normais e devem adivinhar as suas reacções. "Quantas divisões tem o Papa?", troçou Staline. "Quantas divisões há de pessoas com consciência?", poderá perguntar-se Ehud Barak.

Como se revela, há algumas. Não numerosas. Não muitas rápidas para reagir. Não muito fortes nem organizadas. Mas num certo momento, quando as atrocidades ultrapassam os limites e reúnem-se massas de protestantes, isso pode decidir uma guerra.

O HAMAS NÃO PODE PERDER A GUERRA

A incapacidade em apreender a natureza do Hamas provocou o não entendimento dos resultados previsíveis. Não só Israel é incapaz de vencer a guerra como o Hamas não pode perdê-la.

Mesmo se o exército israelense tivesse êxito em matar todo o combatente do Hamas até ao último homem, mesmo assim o Hamas venceria. Os combatentes do Hamas seriam vistos como os modelos da nação árabe, os heróis do povo palestino, modelos para a emulação por todos os jovens no mundo árabe. A Cisjordânia cairia nas mãos do Hamas como uma fruta madura, o Fatah afundar-se-ia num mar de desprezo, os regimes árabes estariam ameaçados de colapso.

Se a guerra terminar com o Hamas ainda de pé, ensanguentado mas não vencido, diante da poderosa máquina militar israelense, isto parecer-se-á como uma vitória fantástica, uma vitória do espírito sobre a matéria.

O que ficará gravado na consciência do mundo será a imagem de Israel como um monstro tinto de sangue, pronto a qualquer momento para cometer crimes de guerra e sem quaisquer restrições morais. Isto terá severas consequências para o nosso futuro a longo prazo, nossa posição no mundo, nossa oportunidade de alcançar paz e tranquilidade.

Em última análise, esta guerra é um crime também contra nós, um crime contra o Estado de Israel.

10/Janeiro/2009
[1] Drones: aparelhos voadores não tripulados.

Uri Avnery* Escritor israelense e activista da paz. Colaborou no livro The Politics of Anti-Semitism .

O original encontra-se em Counterpunch

Este artigo encontra-se em Resistir info.


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