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sábado, 17 de janeiro de 2009

Duas ótimas indicações de leituras historiográficas

"Temos que entender o que a História é"

Reconhecer os erros do passado é a única forma de acabar com o racismo, diz o autor canadense Paul Lovejoy

Entrevista

PAUL LOVEJOY

por Flávio Henrique Lino

Um dos maiores especialistas em escravidão da atualidade, o historiador americano naturalizado canadense Paul Lovejoy é referência certa quando se trata de estudar a ocorrência do fenômeno no próprio continente africano, antes da chegada dos europeus no século XV. Professor da Universidade de York, em Ontário, no Canadá, Lovejoy falou ao GLOBO sobre a escravidão do passado e suas implicações no presente.

O GLOBO: Qual foi a diferença básica entre a escravidão na África e nas Américas?

- PAUL LOVEJOY: Nas Américas, a distinção racial era um fator importante no controle das populações escravizadas, enquanto na África diferenças culturais e religiosas eram a base da exploração. Então é o racismo a diferença, o reconhecimento da identificação dos africanos porque eram negros, pessoas que podiam ser escravizadas. Não que outros povos não pudessem ser escravizados, porque no Brasil e em outros lugares os nativos também foram escravizados, mas, com o tempo, a associação entre negros e escravidão tornou-se muito próxima. Por isso, na América as distinções raciais são uma característica fundamental, enquanto na África a distinção usada para manter as pessoas escravizadas eram mais culturais e religiosas.

Pode-se dizer que a escravidão praticada entre os africanos foi de um tipo mais benigno do que a das Américas?

- LOVEJOY: Não creio. Pode parecer benigno para pessoas de fora, mas para quem é escravo não importa muito. A pessoa é sempre submetida a violência todo tempo, a discriminação de todos os tipos, restrições a seus direitos. Então, da perspectiva do escravo, não faz muita diferença onde você está.

Ninguém quer ser escravo.

Em seu livro “Transformações na escravidão” (de 1983), o senhor diz que embora a escravidão fosse uma instituição central em muitas partes da África, seu desenvolvimento foi fortemente influenciado por fatores externos, como o comércio transatlântico e o Islã. Mas até que ponto a Europa poderia ter montado uma empresa tão grande para levar milhões de pessoas da África para as Américas sem a conivência dos próprios africanos?

- LOVEJOY: Teria sido impossível.

Os mercadores e governantes africanos estavam fortemente envolvidos no tráfico de escravos na África, e sem essa cumplicidade o comércio de escravos teria sido impossível.

A escravidão continuou a existir na África muito depois de sua abolição no Ocidente.

Por quê?

- LOVEJOY: Porque a escravidão tornou-se muito comum na África e continuou sendo comum, só terminando, na maioria dos lugares, no século XX, sob diferentes regimes coloniais.

O fim ocorreu quando as metrópoles concluíram que outras formas de mobilização do trabalho eram mais importantes e decidiram usar trabalhadores migrantes e contratados.

Foi só aí que a escravidão terminou na África.

O legado da escravidão é diferente na África e na América contemporâneas?

- LOVEJOY: Sim, porque na África ela não foi baseada em distinções raciais, mas sobretudo em diferenças culturais. Por isso, muitas vezes quando vemos conflitos entre povos identificados às vezes como tribos ou grupos étnicos na África, eles são na realidade reflexo de padrões históricos em que povos escravizaram outros, e esse legado continua. Você vê isso na política da Nigéria, do Benin, de Angola e de toda a África.

As pessoas sabem quem foram escravos, sabem que outras pessoas diferentes delas no passado tiveram conflitos, e essas memórias não são facilmente apagadas.

Os Estados Unidos e o Brasil são países profundamente marcados pela experiência da escravidão. Que implicações isso teve na formação de nossas sociedades contemporâneas?

- LOVEJOY: Os Estados Unidos e o Brasil têm semelhanças e diferenças no que diz respeito à escravidão. Uma diferença grande é que quase a metade dos escravos que vieram para as Américas vieram para o Brasil, e menos de 5% foram para o que são agora os EUA. Embora as populações dos dois países em termos de pessoas que têm uma ascendência identificável de africanos possa ter o mesmo tamanho, talvez ela seja maior no Brasil de hoje. Outra diferença é que aqui as gradações raciais são mais complexas e dependem muito mais de fatores como se a pessoa era livre, das rendas, do nível educacional...

Nos EUA, qualquer um que fosse percebido como tendo ascendência africana sofria discriminação.

A coisa é muito mais em preto e branco. Nos EUA, houve formas mais sérias de racismo do que aqui no Brasil, mas nos dois países há muita negação, muita vergonha no que se refere à escravidão, uma recusa de muitas pessoas de reconhecerem que seus ancestrais estiveram envolvidos de uma forma ou outra (na escravidão).

É muito fácil para pessoas que não tiveram envolvimento direto esquecer. E o que as pessoas escolhem lembrar e esquecer é muito importante politicamente.

Como o historiador interfere nesse processo?

- LOVEJOY: Nosso trabalho como historiadores é nos certificarmos de que o que é lembrado é correto e entendermos por que certas coisas são esquecidas e quando é perigoso esquecer. Por isso, temos de trazer de volta a verdade para que as pessoas entendam que pertencemos todos a uma mesma raça, somos todos seres humanos, todos temos um legado que nos conecta direta ou indiretamente à escravidão, não importa de onde a pessoa seja.

Houve escravidão em todos os lugares, inclusive na Europa.

Não temos de conhecer a história dos negros porque é a história dos negros; na verdade é a nossa história porque somos todos seres humanos.

E, em última análise, a Humanidade saiu da África, todos viemos de lá. Então é só uma questão de quando e como as pessoas saíram de lá, um reconhecimento de que temos de compartilhar nossa humanidade e devolver a dignidade às pessoas que a tiveram solapada por causa da discriminação.

O senhor acredita que as pessoas já estão tendo uma percepção maior do que significou a escravidão?

- LOVEJOY: Sim, nas universidades há uma discussão crescente sobre a escravidão e seu legado, e a única forma de superar isso é não esquecendo, é confrontando esse legado.

Temos que entender o que a História é. Se não fizermos isso, vamos repetir os erros do passado. A única forma de superação é compreendermos como a escravidão foi penetrante e suas implicações.

Temos de ter uma discussão aberta para que as pessoas possam ter idéias, sentimentos e memórias que possam ser avaliados. É realmente animador que aqui no Brasil e em outras partes do mundo as pessoas estejam mais dispostas a conhecer esses assuntos e confrontá-los. As pessoas estão aprendendo mais sobre a História, de modo que não podem negar cumplicidade e envolvimento em erros do passado. Não vamos viver num mundo com uma humanidade comum e justiça para todos a menos que confrontemos o passado.

O Brasil está implementando atualmente políticas de cotas raciais como compensação pela escravidão. O senhor acha que essas políticas são um instrumento importante e eficiente para consertar erros do passado?

- LOVEJOY: Isso tem a ver com compensação, e reparação é tanto uma questão financeira como cultural e intelectual.

A reparação tem de incluir essa educação sobre como a influência africana é importante na nossa cultura, na nossa língua, na nossa arte, na nossa música. Mas há também um componente financeiro, e vou da rum exemplo de situações em que as reparações financeiras devem ser feitas. Por um século, de 1824 até a década de 1920, o Haiti pagou compensações à França pelo reconhecimento de Paris à sua independência. Isso é totalmente absurdo! Na minha opinião, todo esse dinheiro deveria ser devolvido ao Haiti.

O Globo, 1 dez. 2007. Suplemento Prosa & Verso.


O ´bruxo africano´ de Salvador

Biografia de negro alforriado que praticava o candomblé e morreu como católico é exemplar

(Mary Del Priore)

João José Reis não é apenas um historiador de imenso talento. É também um pesquisador completo. Com este seu magnífico “Domingos Sodré, um sacerdote africano”, consolida posição de destaque na constelação dos melhores estudiosos de nosso passado. Biografias de escravos e afro-descendentes no Brasil já foram feitas. Tanto as dos grandes personagens, abolicionistas, jornalistas e poetas negros quanto as dos anônimos da História, cujos registros são tão mais eloqüentes quanto tais atores são discretos. Este gênero narrativo está em crescente ascensão desde os anos 80. Nessa década, nomes como Georges Duby, Giovanni Levi ou Nathalie Davies convidaram-nos a pensar a biografia por um ângulo diferente. Enterrou-se a biografia positivista dos tempos de antanho, “superficial, anedótica e incapaz”, segundo Jacques Le Goff. A reabilitação da biografia histórica integrou, então, as aquisições da história social e cultural, oferecendo aos diferentes atores históricos uma importância diferenciada.

Não se tratava mais de fazer a história dos grandes nomes, em formato hagiográfico — quase uma vida de santo, sem máculas. Mas de examinar os atores, como testemunhas e como reveladores de uma época. Nada de heróis. Porém narrativas, capazes de tornar tangível a significação histórica de uma vida individual.

Alforriado, desenvolveu a fama de “papai de terreiro”

É o caso deste fascinante Domingos Sodré. Nascido no pequeno reino de Onim, atual Lagos, Domingos veio criança para a “cidade da Bahia”, no apogeu da produção açucareira. Começou a vida como escravo num engenho do Recôncavo de cujo dono herdou o sobrenome e era parte de uma comunidade de cativos da mesma nação: os nagô. Alforriado, desenvolveu a fama de “papai de terreiro” numa época em que a imprensa acusava a polícia e as autoridades de conivência com batuques e candomblés. Morador do sobrado no7, da íngreme ladeira de Santa Tereza, possuiu pelo menos seis escravos e foi casado duas vezes.

Foi, ainda, ativo membro de “juntas de alforria”, ou seja, uma instituição de crédito dedicada a libertar africanos escravizados. Recebia os clientes numa salinha recheada de santos católicos, enquanto o altar de candomblé, com seus “objetos de feitiçaria”, se abrigava num quarto próximo. Ali realizava obrigações religiosas e preparava ebós, amuletos e beberagens. Acusado de receber objetos roubados como forma de pagamento, Domingos deixou um processo que permitiu ao historiador a reconstituição minuciosa de sua vida.

Estes eram tempos em que os candomblés batiam seus tambores com força e recrutavam novos adeptos, enquanto a campanha repressiva, da qual Domingos foi vítima, prosseguia. Os jornais protestavam contra animais sacrificados e gritarias nos terreiros. Mas quem ouvia tais sons, não reclamava. Nem as freirinhas do convento vizinho, pois o rufar de atabaques atraíam inclusive, “pessoas de certa ordem”. A clientela era constituída por esposas que não queriam que seus maridos esquecessem os deveres conjugais, escravos desejosos de amansar senhores e negociantes em busca de bons negócios. Nesta época, brancos já integravam terreiros como médiuns e líderes.

Ao longo do livro desfilam chefes de polícia e delegados que achavam que os candomblés não passavam de “divertimentos”, perseguindo-os por “imorais e supersticiosos”. No fim da década de 1850, a linha dura contra candomblés começou a ser traçada, mas nem sempre foi obedecida. Por um lado, havia os que achavam que demonstravam a falta de controle dos escravos por seus senhores e que tais batuques impediam o florescimento da civilização em terras baianas. Por isso mesmo, além de dificultar suas vidas, as autoridades promoviam o retorno dos africanos à África. Por outro, havia os que conheciam e freqüentavam os “papais”, com profundo respeito e admiração.

Ativo dentro de uma rede social e religiosa africana, o liberto Domingos dava as cartas no candomblé oitocentista baiano. Apesar das pressões que sofria da sociedade e da polícia, tinha recursos e mobilidade social para organizar sua experiência ritual com autonomia. Egresso de uma vivência cosmopolita, Domingos soube também mixar suas práticas religiosas com aquelas dos dominantes. O poderoso “bruxo africano” morreu como católico, fazendo testamento e pedindo missas por sua alma. Ao longo da vida, batizou livres e escravos, assumindo compromissos de proteção de seus afilhados. Construiu assim vários tipos de alianças na sociedade baiana, sendo conhecido e respeitado numa elite de libertos

Obra merece se tornar leitura obrigatória

Mergulhado no Arquivo Público da Bahia, Reis escrutou centenas de documentos, uns levando a outros. Com cuidados de entomologista, rastelou informações e reconstituiu as múltiplas redes de relações de Domingos: amigos e senhores, vizinhos e desafetos. Iluminou também a vida de escravos: dos que viviam do aluguel de outros escravos. De escravos, traficantes de escravos. De escravos, donos de escravos, que maltratavam seus semelhantes. Um mundo fervilha nas informações cuidadosamente costuradas pelo autor.

Mapas apontam com nitidez os roteiros do bruxo e fotografias de época, apóiam as interpretações extraídas da documentação, reproduzida em cuidadosos anexos. Essa obra merece se tornar leitura obrigatória nos departamentos de história. Não só pela qualidade da narrativa e a importância do tema, mas pela eficiente demonstração do que seja o ofício do historiador: a exploração metódica nos fundos que não os marinhos, mas que exigem a mesma atenção de quem percorre as praias, depois de grandes marés. Ao definir o olhar que lançou sobre a massa documental e ao formular a interrogação que lhe permitiu captar mudanças no tempo, Reis nos legou um trabalho ímpar que, além de revelar um personagem, sua vida e o mundo em que se movia, colocou em evidência um método de trabalho que deveria se tornar imperativo.

Dialogando com a historiografia mais atualizada, evitou citar autores que nada têm a ver com o tema, mas que servem de suporte aos modismos das linhas de pesquisa acadêmica. Como já disse alguém: “é mania de brasileiro lançar de mão de Althusser para estudar a escravidão em Conceição do Mato Dentro”. Reis foge destas armadilhas e oferece aos historiadores uma verdadeira aula sobre como fazer História, enfrentando os arquivos e evitando escolhos teóricos. Seu livro é uma obra de mestre e por seu fascínio, por que não dizer, de bruxo, também.

O Globo, 8 nov. 2008.


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