O verdadeiro alvo
*Vladimir Safatle
Afinal de contas, quem exatamente o governo de Israel quer atacar?
“Gostaria de terminar este artigo dizendo que, se o verdadeiro alvo desta invasão é o bloco pacifista e esquerdista judaico que um dia teve peso real na constituição da agenda política da região e que poderia começar a desatar o nó entre política e teologia que parece querer colonizar os dois lados, então cabe a todos realmente interessados na paz lutar por construir uma alternativa política real com forte poder de transformação social. Diria que esta alternativa já havia sido sintetizada de maneira decisiva por um intelectual cuja grandeza faz falta em um momento com este: Edward Said. Sua luta incansável por um Estado bi-nacional entre judeus e palestinos deve nos servir de guia.”
Não há hoje assunto, ao mesmo tempo, mais urgente e mais bloqueado do que o conflito palestino. Mais urgente porque ele há muito deixou de ser um problema regional. Seus desdobramentos influenciam de maneira decisiva a relação entre os árabes e o que convencionamos chamar de ocidente. Esta é uma peça maior não apenas da pauta da política externa mundial. Levando em conta que os árabes e turcos compõem atualmente o conjunto mais expressivo de trabalhadores pobres em países europeus, além de parcela significativa da classe média de países sul-americanos, não é difícil compreender como a "questão árabe" tornou-se ou pode tornar-se, em muitos países, um assunto de política interna.
No entanto, a urgência do assunto só não é maior que seu bloqueio. De fato, encontramos todos os dias textos e mais textos sobre o problema. Mas a grande maioria está bloqueada pela profusão infindável de preconceitos toscos, assim como amálgamas intelectualmente desonestos e apressados produzidos por ambos os lados. Isto quando não se entra no mais raso psicologismo. Assim, os palestinos são muitas vezes apresentados como crianças que não sabem escolher (já que votaram no Hamas nas eleições legislativas de 2006 "contra seus próprios interesses"). Os israelenses por sua vez seriam arrogantes e egoístas.
Não se vai muito longe com análises deste calibre. Muito menos com análises que não cansam de repetir o mantra do "terrorismo islâmico" ou do "Estado assassino". Na verdade, não precisamos de julgamentos sumários nem pregações morais, mas de análises que demonstrem onde falham certos discursos oficiais hegemônicos que tentam definir a interpretação do conflito, onde a argumentação precisa parar a fim de que procedimentos de estigmatização possam começar. Talvez isto nos ajude a compreender como, em pouco mais de dez anos, conseguimos passar de uma situação de paz à vista a uma sucessão de ações militares cada vez mais chocantes.
O argumento do direito de auto-defesa é consistente?
Nos últimos dias, o governo de Israel tem patrocinado uma larga operação militar para, segundo Shimon Perez, "dar uma lição no Hamas". Até agora, o resultado são mais de 700[1] mortos, sendo 257 crianças. Contra críticas internacionais, o governo de Israel afirma ter o direito de agir em defesa de sua integridade territorial e da segurança de seus cidadãos. Tal segurança teria sido colocada em cheque devido a ataques com foguetes arcaicos operados pelo Hamas após uma longa trégua. Que tais ataques não tenham produzido vítimas, isto não significa que o governo de Israel não deveria lutar para evitar vítimas futuras. E, neste caso, lutar consistiria em "quebrar definitivamente a capacidade de ataque do Hamas", como disse o próprio governo.
O raciocínio todo é correto desde que aceitemos que o direito de defesa se aplica à relação entre Israel e Palestina. No entanto, este direito não pode ser aplicado quando se trata de ações referentes à gestão de um território ocupado ilegalmente. Ou seja, não posso alegar direito de defesa quando reajo a ataques vindos de um território que invadi ilegalmente.
Infelizmente, esta é claramente a situação em que Israel se encontra em relação à Palestina (composta, de maneira indissociável, da faixa de Gaza e da Cisjordânia).
O direito internacional, representado pela ONU (diga-se de passagem, a mesma instituição que criou o Estado de Israel, o que lhe dá toda a legitimidade para enunciar uma lei sobre a situação), reconhece à Palestina o estatuto jurídico de "território ocupado", ocupação considerada totalmente ilegal pelas resoluções 242 e 338 há mais de quarenta anos. A decisão é tão claramente aceita por instâncias internacionais que, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal brasileiro deverá indeferir o pedido israelense de deportação de um fanático que cometeu crimes na Cisjordânia e que veio a esconder-se em nosso território, já que a jurisdição de Israel sobre os territórios ocupados não é reconhecida. Ou seja, uma situação ilegal anula a possibilidade de fazer apelo a um direito internacionalmente reconhecido.
Mas é claro que virá a pergunta: não teriam os israelenses a obrigação de assegurar seus cidadãos contra ações de um grupo vergonhosamente anti-semita que assassina civis e prega claramente a destruição do Estado de Israel ao invés de pregar apenas a defesa dos palestinos contra a ocupação? Afinal, a luta dos povos árabes contra o Estado de Israel não é uma invenção paranóica. As guerras de 1967 e de 1973 são prova maior de que toda vigilância é necessária. Ainda mais com o crescimento do caráter beligerante do dito fundamentalismo islâmico, representado na região pelo Hamas. Não estaríamos aí diante de uma situação de exceção, onde os critérios tradicionais de direito e justiça devem ser suspensos?
Aqui, vale a pena fazer duas colocações. Primeiro, o estado contínuo de guerra contra Israel desde sua fundação, em 1948, nunca foi o resultado de algum pretenso ódio milenar irracional entre árabes e judeus provocado por fanatismos religiosos, como muitas vezes se procura vender, mas de um clássico conflito territorial derivado do mais catastrófico processo de descolonização do século XX. Povos que ainda nos anos 20 viam-se como irmãos semitas foram jogados em um conflito fraticida devido a uma descolonização, operada sobretudo pela Grã-Bretanha, que prometia reiteradamente a ambos o direito sobre as mesmas terras.
De qualquer forma, esta situação há muito perdeu força, principalmente depois da antiga OLP de Yasser Arafat reconhecer as fronteiras de 1967. O único país que ainda está em estado de beligerância com Israel é a Síria devido a invasão israelense das Colinas de Golã.
Um histórico processo de negociação iria começar agora, graças a mediação da Turquia, no qual Israel devolveria o território ocupado em troca da normalização das relações. Algo nos moldes do que ocorreu com o Egito e a Península do Sinai. Mas a invasão da faixa de Gaza jogou uma verdadeira pá de cal em tudo isto.
Por outro lado, se a questão gira em torno da implementação de políticas sólidas de segurança nacional, só podemos repetir uma pergunta de Daniel Baremboin, alguém cuja grandeza de espírito só é comparável à sua inteligência musical impar: "Esta é, afinal, a maneira mais eficaz de defender-se?". A resposta é simplesmente: não. Na verdade, não haveria maneira mais eficaz de defesa do que fazer aquilo que disse o Prêmio Nobel da Paz e ex-presidente norte-americano, Jimmy Carter: "negociar diretamente com o Hamas" e suspender o bloqueio a Gaza, que além de ser mais uma afronta ao direito internacional, alimenta o desespero e humilhação dos palestinos: solo fértil para o crescimento do apoio ao grupo islâmico.
Da mesma forma, não haveria atualmente as deploráveis bravatas anti-semitas de Ahmadinejad e o perigo real do Irã transformar-se em potência nuclear descontrolada se a política mundial não tivesse enveredado pelo caminho brutal da administração Bush.
Lembremos que o Irã estava em um claro movimento de abertura de seu regime e normalização de relações internacionais, primeiro com Rafsanjani e depois com o reformista Kathami. Este movimento foi quebrado em 2005 como uma das consequências do recrudescimento das tensões produzidas pela invasão no vizinho Afeganistão. O desejo iraniano de transformação em potência nuclear foi resultado de um cálculo simples: os EUA invadiram o Iraque mesmo sem mandato da ONU e não invadiram a Coréia do Norte (com suas ameaças à "ordem mundial") porque o primeiro não tinha armas nucleares e o segundo tinha. Logo, esta é a condição para a sobrevivência.
Gênese do fundamentalismo islâmico popular Mas voltemos à idéia de que a melhor política de segurança teria sido negociar diretamente com o Hamas. De fato, ele deu claros sinais, desde que venceu as eleições legislativas de 2006, que sentaria à mesa de negociações. O Hamas aceitou longas tréguas, como esta que terminou em 19 de dezembro. Alguns de seus líderes, como o chefe do conselho político Kahled Mechaal, chegaram mesmo a afirmar: "queremos um Estado nas fronteiras de 1967". Outro chegou a propor uma "trégua de cem anos". Ou seja, havia indícios de que poderia acontecer com o Hamas o que aconteceu com o IRA, na Irlanda do Norte: a transformação de um grupo armado em ator político.
De qualquer forma, é oportuno contextualizar um dos dispositivos maiores que fundamentam a recusa do governo de Israel em negociar com o Hamas: "Não é possível negociar com alguém que não reconhece seu direito de existência". Sim, é verdade. Por isto, é muito difícil avançar enquanto existir, em Israel, partidos importantes como o Likud (atualmente na frente nas pesquisas eleitorais) cuja carta programática simplesmente não reconhece o direito à existência de um estado palestino. Ou seja, os palestinos também não têm seu direito a um estado reconhecido por todos os principais atores políticos israelenses.
No entanto, durante o governo do likudista Netanyahu, Arafat negociou com um partido que, em sua carta, não reconhecia o direito a um estado palestino a oeste do Rio Jordão. Se Arafat fez, os políticos israelenses também podem fazer. Diga-se de passagem, mesmo aquilo que o atual partido governista Kadima propõe aos palestinos, além de ignorar frontalmente todas as resoluções da ONU a respeito dos territórios ocupados, dificilmente pode ser chamado de "estado" pois não leva em conta princípios fundamentais de autonomia e auto-determinação.
Mas podemos ainda dizer, juntamente com o atual governo de Israel: "Não negociamos com terroristas". Em uma ironia maior da história, ele repete as mesmas palavras usadas pela administração colonial britânica na Palestina, referindo-se a grupos judaicos de luta armada atuantes nos anos 40, como o Irgun e o grupo Stern. Isto sem falar que foi com o adjetivo de "terrorista" que Albert Einstein e Hannah Arendt trataram o futuro primeiro ministro de Israel, Menachen Begin (carta ao #ew York Times, 4 de dezembro de 1948), líder do futuro Likud do qual saiu o atual primeiro-ministro israelense, Ehud Olmert. Mas se há algo que a história das lutas de ocupação (Argélia, Vietnã, Irlanda etc.) nos ensina é: chega uma hora em que você terá que negociar com os "terroristas". Por sinal, foi este o destino das relações entre o governo de Israel e os "terroristas" da OLP de Arafat[2].
Pode-se contra-argumentar, no entanto, que entre o Hamas e a antiga OLP há uma diferença maior. Arafat não queria criar um estado islâmico às portas de Israel. Seu grupo era laico. Sim, é verdade mas isto, por si só, não justifica que o conflito palestino seja visto como uma situação de exceção. Pois a pergunta que deve ser respondida é: como um grupo como o Hamas, com um programa minoritário no início dos anos 90, transformou-se hoje no partido mais popular da Palestina? Uma popularidade que irá aumentar significativamente após este conflito, tal como aconteceu com o Hizbollah. Cada palestino morto significa a consolidação de um sentimento de humilhação e descrença em relação à negociação política. E o que é expulso do campo simbólico da política retorna sob a forma de violência real. Por sinal, esta foi a equação que sempre alimentou o Hamas e que continuará a alimentá-lo. Pois não se destrói um grupo armado aumentando seu apoio popular. Quem duvida do aumento do apoio ao Hamas, convido que veja a versão inglesa do canal de TV mais assistido no mundo árabe (Al-Jazeera) e analise a maneira com que seus militantes são retratados. Tudo isto demonstra que o ataque a Gaza não era justificado nem do ponto de vista do direito de defesa, nem sequer do ponto de vista da eficácia de medidas de segurança.
Neste ponto, gostaria de esclarecer minha posição. Robert Kurz, em um artigo profundamente confuso (Folha de São Paulo, 11/01/2008), critica o que ele chama de "esquerda pós-moderna (?)" que estaria disposta a "identificar-se com a administração autoritária da crise mundial [do capitalismo] aceitando como inevitável a guerra islâmica contra os judeus, como se ela fosse um mero flanqueamento ideológico". Como se esta tal esquerda pós-moderna defendesse o Hamas por confundi-lo com uma força dos antigos "movimentos anti-imperialistas" e misturasse isto com tendências culturalistas e relativistas.
Juntar-se-ia a isto um velho neoestatismo [o fantasma clássico a assombrar a vida de Robert Kurz] que crê valer a pena pacificar as massas por meios autoritários de um estado forte, nem que seja um estado islâmico. Contra isto, diz Kurz, deveríamos insistir na necessidade de "aniquilamento" do Hamas e do Hizbollah.
Há tempos não se via uma análise tão fora de esquadro, pois esta esquerda pós moderna que apóia o Hamas e flerta com neoestatismo simplesmente não existe. Talvez Kurz pense em Foucault com seu fascínio inicial equivocado pela revolução iraniana e acredite que os críticos atuais da invasão a Gaza partilhem um erro simétrico. No entanto, se este for de fato o esquema na mente de Kurz, só podemos dizer que ele é delirante. Ninguém está procurando defender um grupo claramente racista e reacionário. Trata-se simplesmente de constatar que todas as tentativas de "aniquilá-lo" militarmente só aumentaram sua força pois tais ações militares criaram o quadro narrativo ideal para que o Hamas aparecesse, aos olhos dos palestinos, como representante legítimo da resistência à ocupação. Basta lembrar que, em 1994, na época dos acordos de Oslo, a popularidade do grupo não passava de 15%.
Hoje, ela é assustadoramente alta. Quer dizer, só há uma maneira de "aniquilar" o Hamas e esta maneira não passa pela vitória militar, seja lá o que isto possa significar[3]. Ninguém está aqui fazendo "vistas grossas" para os perigos do fundamentalismo islâmico, mas procurando a melhor maneira de desativar a bomba que ele representa.
Não esqueçamos que esta recrudescência do sentimento religioso no Oriente Médio é o resultado direto de um longo bloqueio, patrocinado pelo ocidente, de modificações políticas nos países árabes. Desde os anos 50, o ocidente vem sistematicamente minando todos os movimentos políticos árabes de auto-determinação e independência. O caso da conspiração contra o líder nacionalista iraniano Mossadegh é aqui paradigmático. Por outro lado, os regimes mais corruptos e totalitários da região são apoiados de maneira irrestrita pelo ocidente (Paquistão, Arábia Saudita, Jordânia, Tunísia, Egito - cujo "presidente" Hosni Mubarak está no poder há meros 37 anos). Ou seja, a experiência cotidiana de um árabe em relação aos valores modernizadores e democráticos ocidentais é que eles servem apenas para justificar o contrário do que pregam. Os árabes fizeram a prova do caráter formalista e "flexível" dos valores ocidentais. Neste ambiente de cinismo e bloqueio do campo político, o retorno à tradição religiosa com suas promessas de revitalização moral é sempre uma tendência. Foi isto o que aconteceu. Ou seja, não se trata aqui de traço arcaizante algum típico de civilizações refratárias ao nosso "choque civilizatório". Trata-se de um sintoma recente de bloqueio do potencial transformador do campo político. Por isto, os movimentos islâmicos não são apenas, com diz Kurz, "uma ideologia culturalista pós-moderna da crise de uma parte das elites há muito tempo ocidentalizadas nos países islâmicos". Eles são movimentos de forte apoio popular e este é o caráter verdadeiramente dramático da situação. Desmontar este apoio popular só é possível criando alternativas políticas reais e com forte potencial de transformação social. Só que todas as vezes que tais alternativas foram tentadas, elas logo foram abortadas pelo ocidente. O que nos permite acreditar que apenas a construção do campo político no mundo árabe irá, a médio termo, instaurar uma situação na qual o apelo à religião não terá mais ressonância social. Elas podem voltar a ser sociedades indiferentes à religião.
Por outro lado, basta ver a Arábia Saudita para perceber que a criação de um estado islâmico nunca foi realmente problema a tirar o sono do ocidente.
O sócio do Hamas
Mas voltemos à questão principal. Se os ataques não são justificáveis do ponto de vista do direito de defesa, nem são úteis como medidas de segurança, afinal para que eles servem?
Algumas pessoas mal-intencionadas dizem que se trata de estratégia eleitoral para vitaminar os combalidos candidatos da coalização no poder. Tanto a direitista Tizpi Livni quanto o trabalhista Ehud Barak, membros do consórcio governista, estavam predestinados a perder a eleições de fevereiro. O Partido trabalhista de Barak estava condenado a ter uma das participações mais humilhantes de sua história. Como em um passe de mágica, tudo isto mudou. Mas, não. Não é possível que alguém íntegro como o primeiro-ministro Ehud Olmert possa ter tramado isto. É verdade que nenhum governante na história de Israel foi alvo de tantos processos judiciais por corrupção, teve índices tão baixos de popularidade (3% de aprovação em 2007) e foi tão acusado de incompetência como Olmert. Mas isto é certamente uma intriga da oposição.
Ao invés de usar este argumento. que é circunstancial, gostaria, no entanto, de usar um argumento "estrutural". Na verdade, esta incrível ascensão do Hamas só foi possível porque eles têm um sócio poderoso e sempre pronto a fortalecê-lo. Não, este sócio não é o Irã. Este sócio é a direita israelense que está ininterruptamente no poder desde a época de Benjamin Netanyahu (como gostaria de mostrar, o governo do trabalhista Ehud Barak não foi uma exceção) e que nunca acreditou nos acordos de Oslo. A direita israelense é o grande sócio do Hamas porque, graças a ele, ela consegue atingir seu verdadeiro alvo: os judeus esquerdistas, anti-comunitaristas e pacifistas de Israel e do mundo que sempre criticaram duramente e com os melhores argumentos a situação nos territórios ocupados, chegando mesmo às heróicas ações dos refuseniks (israelenses que se recusavam a servir o exército na Cisjordânia e na faixa de Gaza). Tais proposições podem parecer gratuitas e profundamente arbitrárias, fruto de alguma espécie de delírio esquerdista diversionista. No entanto, elas não o são.
Voltemos, por exemplo, à época dos acordos de Oslo. Naquele momento em que a paz parecia possível, um fenômeno extrememante relevante mostrou toda sua amplitude.
Enquanto os governos de Rabin e Arafat tentavam implementar o plano, uma oposição que tudo fazia para minar os acordos foi mostrando sua verdadeira face. No caso do governo de Israel, víamos não apenas colonos judeus que afrontavam o exército israelense em processos de desocupação da assentamentos e discursos incendários de rabinos conservadores contra o próprio governo israelense. Muitos hão de se lembrar, por exemplo, destas inacreditáveis campanhas publicitárias feitas por organizações judaicas fundamentalistas que conclamavam os judeus do mundo, com armas em punho, a impedirem a entrega de terras aos palestinos. O final deste processo foi o chocante assassinato de Rabin por um colono judeu.
Nunca na história de Israel seu povo se mostrou tão dividido. O que levou alguns a acreditar que a unidade do povo israelense poderia ser seriamente ameaçada com o avanço do processo de paz. Pois há uma ambiguidade maior no cerne da concepção israelense de nação.
Por um lado, ela é assentada na criação de um estado moderno e laico onde haveria espaço inclusive para os árabes (mesmo que em número limitado), mas de outro, ela é assombrada por fantasmas religiosos e comunitaristas no interior dos quais um messianismo redentor se mistura perigosamente com a tentativa de criar vínculos orgânicos entre nação, estado e povo.
Poderíamos mesmo dizer que um espectro ronda o Estado de Israel: o espectro do teológicopolítico. Foi ele que ganhou encarnação trágica com o assassinato de Rabin por um colono.
Do lado de Israel, ficou claro que o avanço do processo de paz só seria possível através de uma confrontação corajosa com este núcleo teológico-político que sempre serviu de alimento para uma parte de seu imaginário como nação. No entanto, isto seria simplesmente a morte da direita israelense com seu comunitarismo indisfarçável e seus partidos religiosos que visam colonizar o campo social com narrativas mítico-religiosas. Por isto, para ela, tratava-se no fundo de adiar o processo de paz ad infinitum e retirar qualquer força de pressão social dos grupos pacificistas esquerdistas. E a melhor maneira para isto era alimentando a popularidade de um grupo de fanáticos islâmicos através de uma escalada de provocações, ações militares e humilhações ao governo da Autoridade Palestina. Foi assim que a direita israelense e o Hamas cresceram juntos a partir do final do governo Rabin. Um precisa do outro para existir. Foi assim também que os grupos judaicos pela paz, espalhados pelo mundo, foram impiedosamente esvaziados.
Mas pode-se dizer que o argumento aqui apresentado é falho. Afinal, e o que dizer do Partido Trabalhista, que governou Israel com Ehud Barak e que está atualmente na coalização governista que comanda a invasão? Trata-se também de um membro da direita israelense?
Hoje, certamente sim. O que vemos é um partido que, como seus congêneres sociaisdemocratas na Europa, não tem mais criatividade política alguma nem força suficiente para escapar de uma agenda securitária que foi posta em circulação pela direita e pela extremadireita.
Tanto que hoje ele não passa de um sócio indistinguível do Kadima. Este destino havia ficado muito claro com o governo Barak. Mas não foi Barak que propôs em Camp Davis o melhor plano de paz para os palestinos, com garantias de um estado com 92% da Cisjordânia e a divisão de Jerusalém? Sim, e, diga-se de passagem, foi um erro crasso de Arafat não o ter aceitado. O argumento da recusa é que o acordo não tratava do direito de retorno dos mais de 900.000 refugiados palestinos a Israel, tal como garantido pela resolução 194 da ONU. Em nome de um direito estruturalmente semelhante, a OTAN havia invadido o Kosovo. Mesmo que Arafat tivesse legalmente razão, era hora de pegar o que estava sendo oferecido.
No entanto, vale a pena aqui também uma contextualização. O governo Barak nunca conseguiu escapar de uma agenda securitária e de retaliação militar contínua já então dominante, até porque sua coalização era muito heteróclita para tanto e, de fato, porque talvez ele não tivesse nada mais a oferecer. Pois hoje temos relatos de membros do gabinete Clinton (então mediador do processo) a respeito das negociações de Camp Davies que deixam sérias dúvidas sobre as reais intenções de Barak. Já a situação guardava algo de surreal: uma negociação daquela envergadura sendo feita por um presidente e um primeiro-ministro que iriam sair do cargo meses depois e que por isto, em última instância, não poderiam garantir a implementação do que seria acordado. Na verdade, temos todo o direito de perguntar por que Barak esperou os últimos dias de seu governo para apresentar tal plano.
Dois povos, um estado
Gostaria de terminar este artigo dizendo que, se o verdadeiro alvo desta invasão é o bloco pacifista e esquerdista judaico que um dia teve peso real na constituição da agenda política da região e que poderia começar a desatar o nó entre política e teologia que parece querer colonizar os dois lados, então cabe a todos realmente interessados na paz lutar por construir uma alternativa política real com forte poder de transformação social. Diria que esta alternativa já havia sido sintetizada de maneira decisiva por um intelectual cuja grandeza faz falta em um momento com este: Edward Said. Sua luta incansável por um Estado bi-nacional entre judeus e palestinos deve nos servir de guia.
De fato, os defensores da criação de um estado palestino esquecem de um dado simples: ele não seria viável economicamente e serviria apenas de dormitório para mão-de-obra barata e sem direitos trabalhistas a ser explorada por seus vizinhos. Gaza é uma faixa de terra árida com 11 km de extensão e 44 km de largura. A Cisjordânia é do tamanho do Distrito Federal. Não se constrói um estado com tão pouco.
Mas, para além deste "detalhe" pragmático há uma questão maior. Um Estado binacional criaria uma dinâmica sócio-política realmente transformadora com poder irradiador para toda a região. Muitos rechaçam a idéia dizendo: "No fundo, isto significa dizer que o povo judeu (ou o povo palestino) não tem direito a ter um estado". Bem, neste caso, devemos dizer claramente: nenhum povo tem direito a ter um estado pois o ímpeto fundamental do Estado moderno é a dissociação radical entre estado, nação e povo. O Estado moderno deve ser uma construção que permita aos sujeitos serem reconhecidos para além de suas etnias, religiões e culturas enquanto cidadãos indiferentes a suas diferenças. Por acreditarmos no caráter emancipador desta indiferença, devemos rejeitar radicalmente todo o qualquer nacionalismo com seus motivos de conservação de hábitos e tradições enquanto guia de conduta, assim como devemos rejeitar as armadilhas que procuram nos aprisionar em identidades sociais construídas no bojo de tradições religiosas. Lutemos pois por uma época em que as nações sejam peças políticas do passado.
É verdade que nosso tempo parece particularmente triste para defesas desta natureza.
Pois vivemos em uma era onde belgas se digladiam a fim de se separarem, onde franceses criam Ministérios da identidade nacional, onde estruturas como a Comunidade européia são, na verdade, federações comerciais que só conseguem estabelecer algum acordo político quando é questão de correr atrás de imigrantes. Mas talvez estes sejam sintomas de uma época esgotada que teima em não morrer. Acelerar seu desabamento é nossa tarefa.
Por isto, contra aqueles que vêem no conflito palestino o último capítulo da luta milenar na defesa dos valores da civilização judaico-cristã, devemos afirmar, com um sorriso:
"Então parem o carro porque eu quero descer. Já vi montanhas de cadáveres demais em nome desta civilização esclarecida". Sejamos fiéis à grandeza dos críticos de nossa própria tradição e digamos, junto com eles: a civilização judaico-cristã só foi grande quando teve a força de suspeitar de seus próprios valores, de se auto-criticar impiedosamente, de esquecer suas raízes religiosas. Então ela aprendeu, como disse Nietzsche, a força dos que sabem que é necessário se perder para poder encontrar seu verdadeiro destino. Talvez a criação de um Estado binacional nesta região carregada de tanto simbolismo como é o "oeste do Rio Jordão" seria o começo necessário para esta perda que emancipa. Cabe a estes dois povos igualmente vítimas do exílio, do desterro, da perseguição e da humilhação a tarefa de ser fiel a essa experiência histórica comum e transformá-la na mola mestra de um novo momento de criatividade política. Com a inteligência que transforma sofrimento em criação, diremos: o exílio é nossa verdadeira força.
*Vladimir Safatle, Professor de filosofia da Universidade de São Paulo e autor de, entre outros, Cinismo e falência da crítica (Boitempo, 2008), Lacan (Publifolha, 2007) e A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Unesp, 2006)
[1] (nota da autora deste blog] Antes do cessar-fogo israelense, ao final de janeiro, o número já havia passado de 1300 mortes sendo 410 crianças.
[2] Bush Júnior, quando perguntado sobre a possibilidade de negociar com o Hamas, disse a frase: "Você acredita que venceríamos Hitler com diálogo e diplomacia?". Que este amálgama tenha saído da boca de Bush Júnior, bem, isto não impressiona ninguém, mas que intelectuais inteligentes operem com ele, eis algo de inaceitável.
Primeiro, deveríamos parar de vez com esta tendência nefasta, presente em ambos os lados do conflito, de comparar o opositor aos nazistas. Assim, o Hamas é igual a Hitler e o "estado sionista" age como o "estado nazista". Francamente, esta é uma maneira de simplesmente não querer discutir o problema. E se for para apoiar-se nas infames declarações racistas dos radicais palestinos, deveríamos lembrar da profusão de racismo que ultimamente sai da boca de políticos israelenses influentes, alguns comparando os árabes a "vermes" e "povo que tem a mentira no sangue". Melhor seria assumir o conflito por aquilo que ele é: não um conflito de civilizações, uma reedição das cruzadas ou uma luta do bem contra o mal radical, mas um conflito territorial que assumiu proporções que nunca deveria ter assumido.
[3] Diga-se de passagem, é assustador ver o vocabulário do "aniquilamento" sair da boca de um pretenso leitor da Escola de Frankfurt, mesmo relacionando-se com fanáticos religiosos. Rezemos para que este seja apenas um erro de tradução. Pois, se não for este o caso, poderíamos dizer: sendo a ordem "aniquilar o Hamas" de nada adianta desmantelá-lo como se fez inúmeras vezes com o ETA ou o IRA. Como nestes dois casos, logo ele se recomporá. Melhor seria eliminar fisicamente seus membros, já que eles não se deixam prender facilmente. Mas também de nada adianta eliminar apenas os membros. Tenho todo o direito de acreditar que os filhos e irmãos dos membros alimentarão o ódio contra o inimigo e pegarão em armas na primeira oportunidade. Devemos ter a responsabilidade preventiva de eliminar também os filhos e irmãos. Mas o que dizer também dos vizinhos que cresceram juntos com estes "eliminados" e que podem se ver na obrigação moral de continuar a batalha? Talvez devêssemos também cuidar dos vizinhos. Ou seja, como dizia o "neoestatista" Hegel, as piores catástrofes são normalmente feitas com as melhores razões.