Luiz Carlos Azenha 26 de junho de 2008
Os direitos constitucionais dos índios estão expressos num capítulo específico da Carta de 1988 (título VIII, "Da Ordem Social", capítulo VIII, "Dos Índios"), além de outros dispositivos dispersos ao longo de seu texto e de um artigo do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Trata-se de direitos marcados por pelo menos duas inovações conceituais importantes em relação a Constituições anteriores e ao chamado Estatuto do Índio. A primeira inovação é o abandono de uma perspectiva assimilacionista, que entendia os índios como categoria social transitória, fadada ao desaparecimento. A segunda é que os direitos dos índios sobre suas terras são definidos enquanto direitos originários, isto é, anterior à criação do próprio Estado. Isto decorre do reconhecimento do fato histórico de que os índios foram os primeiros ocupantes do Brasil.
A nova Constituição estabelece, desta forma, novos marcos para as relações entre o Estado, a sociedade brasileira e os povos indígenas.
Com os novos preceitos constitucionais, assegurou-se aos povos indígenas o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Pela primeira vez, reconhece-se aos índios no Brasil o direito à diferença; isto é: de serem índios e de permanecerem como tal indefinidamente. É o que reza o caput do artigo 231 da Constituição:
"São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
Note-se que o direito à diferença não implica menos direito nem privilégios. Daí porque a Carta de 88 tenha assegurado aos povos indígenas a utilização das suas línguas e processos próprios de aprendizagem no ensino básico ( artigo 210, § 2º), inaugurando, assim, um novo tempo para as ações relativas à educação escolar indígena.
Além disso, a Constituição permitiu que os índios, suas comunidades e organizações, como qualquer pessoa física ou jurídica no Brasil, tenham legitimidade para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses.
Direito à terra
A nova Constituição inovou em todos os sentidos, estabelecendo, sobretudo, que os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam são de natureza originária. Isso significa que são anteriores à formação do próprio Estado, existindo independentemente de qualquer reconhecimento oficial.O texto em vigor eleva também à categoria constitucional o próprio conceito de Terras Indígenas, que assim se define, no parágrafo 1º. de seu artigo 231:
"São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições."São determinados elementos, portanto, que definem uma sorte de terra como indígena. Presentes esses elementos, a serem apurados conforme os usos, costumes e tradições indígenas, o direito à terra por parte da sociedade que a ocupa existe e se legitima independentemente de qualquer ato constitutivo. Nesse sentido, a demarcação de uma Terra Indígena, fruto do reconhecimento feito pelo Estado, é ato meramente declaratório, cujo objetivo é simplesmente precisar a real extensão da posse para assegurar a plena eficácia do dispositivo constitucional. E a obrigação de proteger as Terras Indígenas cabe ao Estado.
No que se refere às Terras Indígenas, a Constituição de 88 ainda estabelece que:
- incluem-se dentre os bens da União;
- são destinadas à posse permanente por parte dos índios;
- são nulos e extintos todos os atos jurídicos que afetem essa posse, salvo relevante interesse público da União;
- apenas os índios podem usufruir das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes;
- o aproveitamento dos seus recursos hídricos, aí incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, só pode ser efetivado com a autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados da lavra;
- é necessária lei ordinária que fixe as condições específicas para exploração mineral e de recursos hídricos nas Terras Indígenas;
- as Terras Indígenas são inalienáveis e indisponíveis, e o direito sobre elas é imprescritível;
- é vedado remover os índios de suas terras, salvo casos excepcionais e temporários, previstos no § 6º do artigo 231.
Nas Disposições Constitucionais Transitórias, fixou-se em cinco anos o prazo para que todas as Terras Indígenas no Brasil fossem demarcadas. O prazo não se cumpriu, e as demarcações ainda são um assunto pendente (ver Demarcação).
Outros dispositivos
Dispersos pelos texto constitucional, outros dispositivos referem-se aos índios:
- a responsabilidade de defender judicialmente os direitos indígenas inclui-se dentre as atribuições do Ministério Público Federal;
- legislar sobre populações indígenas é assunto de competência exclusiva da União;
- processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas é competência dos juízes federais;
- o Estado deve proteger as manifestações das culturas populares, inclusive indígenas.
Na prática
A Constituição de 88 criou a necessidade de revisão da legislação ordinária e inclusão de novos temas no debate jurídico relativo aos índios. A partir de 1991, projetos de lei foram apresentados pelo Executivo e por deputados, a fim de regulamentar dispositivos constitucionais e adequar uma velha legislação, pautada pelos princípios da integração dos índios à "comunhão nacional" e da tutela, aos termos da nova Carta.
Assim, a base legal das reivindicações mais fundamentais dos índios no Brasil foi construída pela nova Constituição e vem sendo presentemente ampliada e rearranjada. Porém, a realidade brasileira demonstra que cabe aos índios e seus aliados a difícil tarefa de, fazendo cumprir as leis, garantir o respeito aos direitos indígenas na prática, diante dos mais diversos interesses econômicos que teimam em ignorar-lhes a própria existência.
Assegurar plena efetividade ao texto constitucional é o desafio que está posto. Cabe aos índios, mas também às suas organizações, entidades de apoio, universidades, Ministério Público e outros mais. Sabe-se que se trata de um processo lento, que está inclusive condicionado à tarefa de conscientização da própria sociedade. O êxito dependerá necessariamente do grau de comprometimento diário nessa direção por parte de todos os que atuam na questão.
Constituições anteriores
Todas as Constituições de nossa era republicana, ressalvada a omissão da Constituição de 1891, reconheceram aos índios direitos sobre os territórios por eles habitados:Constituição de 1934
"Art. 129 – Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las."
Constituição de 1937
"Art. 154 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que se achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las".
Constituição de 1946
"Art. 216 – Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem."
Constituição de 1967
"Art. 186 – É assegurada aos silvícolas a posse permanente das terras que habitam e reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes".
Emenda Constitucional número 1/ 1969
"Art. 198 – As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos em que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas e de todas as utilidades nelas existentes".
Carlos Frederico Marés (sócio fundador do ISA e colaborador do Programa de Política e Direito Socioambiental/ISA) aborda o universo das Constituições nacionais das Américas e traça comparações entre algumas delas:
Até a década de 80, com raras exceções, as Constituições nem sequer se referiam aos direitos dos povos indígenas. Alguns países, como a Bolívia, de maioria de população indígena, criaram um sistema jurídico à margem da diferença étnica, alterando a situação somente em 1994.
Neste conjunto, a Constituição brasileira é um marco. Antes dela, o tratamento das Constituições era reticente e remetia sempre à legislação infra-constitucional, ainda assim não conseguia reconhecer a etnodiversidade e a multiculturalidade. Quem lê a Constituição do Panamá (1983) , por exemplo, é incapaz de saber que a realidade construiu comarcas indígenas com verdadeira jurisdição alternativa. Ver também Canadá (1982), Equador (1983), Guatemala (1985), Nicarágua (1987).
Em 1988, embora sem coragem para declarar o país multiétnico e pluricultural, a Constituição brasileira reconheceu a diversidade na fórmula de reconhecer a organização social, os costumes, a língua, crença e tradições dos povos indígenas além do direito originário sobre as terras que habitam.
Aberta a porta, as novas constituições americanas vão reconhecendo a sociodiversidade de nossos países: Colômbia (1991) reconhece e protege a sua diversidade étnica e cultural; México (1992) assume que tem uma "composição pluricultural";Paraguai (1992), além de reconhecer a existência dos povos indígenas, se declara como um país pluricultural e bilíngüe, considerando as demais línguas patrimônio cultural da Nação; o Peru (1993) não vai tão longe e apenas admite como línguas oficiais, ao lado do castelhano, o quetchua, o aimara e outras línguas "aborígenas"; finalmente, a Bolívia (1994), com sua fulgurante maioria indígena, admite romper a tradição de silêncio integracionista e se define como multiétnica e pluricultural.
Na década de 1990, houve, portanto, um significativo avanço no reconhecimento constitucional dos povos indígenas da América. Oxalá os próximos anos sejam conhecidos como anos em que a realidade latino-americana ficou parecida com suas Constituições! (Carlos F. Marés – 1995).
Depois de escrito este texto, a Venezuela (1999) também reconheceu direitos específicos para povos indígenas que vivem em seu território.
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