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quinta-feira, 26 de junho de 2008

100 mil contra a ditadura


100 mil contra a ditadura


“Enquanto eu estiver aqui, não permitirei que o Rio se transforme numa nova Paris”
(General-presidente Costa e Silva)

“Não se repetirá aqui o que houve na França. Vai ser muito pior”.
(Luís Raul Machado, vice-presidente da UNE)


Augusto Buonicore
25.06.2008
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Depois das grandes manifestações que se seguiram ao assassinato do secundarista Edson Luís, o movimento estudantil se retirou para as escolas. Esta foi uma das decisões tomadas pelo Conselho Nacional de Entidades da UNE, ocorrido na Bahia em maio. Além de concentrar a ação nas lutas específicas foi decidido aceitar a proposta de diálogo com a ditadura, como meio de desmascará-la. Teses defendidas pelas chamadas Dissidências do PCB em aliança com militantes deste mesmo Partido.
A Ação Popular (AP), que detinha a presidência da UNE, havia sido derrotada por um ínfimo número de votos nestes dois pontos cruciais. Ela defendia manter as mobilizações de rua, priorizando as bandeiras gerais contra a ditadura e o imperialismo, e rejeitava categoricamente qualquer tipo de diálogo com o regime, pois induziria o povo a uma ilusão perigosa.

Mas, a truculência policial iria, novamente, retirar os estudantes de dentro das universidades e lançá-los às ruas em defesa das liberdades democráticas. Em 20 de junho ocorreu uma assembléia dos estudantes  da UFRJ. Nela se discutiu a situação do ensino e a democracia interna daquele estabelecimento de ensino. A reitoria e o corpo de professores, muitos a contragosto, foram obrigados a participar. Em um certo momento o prédio foi cercado por um forte esquema policial-militar. O clima ficou tenso.

O próprio reitor assumiu a negociação entre os estudantes e a polícia. Depois de horas de tensão, ficou acertado que os jovens desocupariam o local pacificamente e a polícia não os atacaria. O governador confirmou o acordo. Mas tudo não passou de uma armadilha policial. Na saída os estudantes foram agredidos e uma parte acabou sendo encurralada e aprisionada dentro do campo do Botafogo. Ali ocorreram inúmeros atos de selvageria. Os estudantes foram obrigados a se deitarem no chão com as mãos na cabeça e espancados covardemente. Soldados urinavam sobre eles. O pior aconteceria com as moças que foram humilhadas sexualmente pelos policiais. Mais de 300 estudantes acabaram sendo presos naquela noite sombria.

As fotos publicadas nos principais jornais estarreceram a população. Este foi mais um grande golpe na imagem da ditadura junto à classe média. A cidade se transformou num verdadeiro paiol de pólvora. Bastava uma faísca para que tudo fosse pelos ares. Premonitoriamente o editorial do jornal oposicionista Correio da Manhã afirmou “A nação está diante de uma explosão de irracionalismo político que, se não for imediatamente detido, nos levará a um Calabouço ampliado”. Referia-se a morte de Edson Luís durante o protesto ocorrido na restaurante Calabouço.

Uma pequena manifestação estudantil saiu às ruas para condenar o que havia ocorrido no dia anterior e cobrar o diálogo do regime. Ela ameaçou se aproximar da Embaixada dos Estados Unidos – símbolo da opressão imperialista. A resposta foi uma primeira saraivada de balas disparada pela polícia. Três garotas foram atingidas e uma delas, Maria Ângela Ribeiro, faleceu. Diante da truculência as principais lideranças estudantis buscaram dispersar a manifestação. Pensavam preparar novas mobilizações para os dias seguintes. Mas, mesmo sem direção, a luta continuou pelas ruas da cidade.

Agora não eram apenas os estudantes que lutavam. A eles se juntaram um grande número de pessoas, em geral jovens, que trabalhavam no centro do Rio de Janeiro. Eram bancários, comerciários, escriturários, ofice boys, vendedores ambulantes etc. Do alto dos edifícios eram atirados todos os tipos de objetos. Um deles, por sinal, iria matar um dos soldados que participavam da repressão. Os policiais acuados atiravam a esmo contra o alto dos prédios e as pessoas que se aglomeravam. Dezenas delas – manifestantes ou não - caíram baleadas.

Assim descreveu a cena o então vice-presidente da UNE, José Roberto Arantes: “Às duas horas da tarde, praticamente, não existia estudantes  nas ruas. A maioria fugira do centro da cidade à bomba e à bala. Mesmo assim a violência continuou (...) Das janelas dos prédios começavam a despencar, jogados por funcionários de escritórios e moradores de apartamentos, os objetos disponíveis em cada lugar: água, grampeadores, prendedores de papel, garrafas e até máquinas de escrever. Quando um PM foi morto por um desses objetos, era preciso ver a gritaria com que sua queda foi recebida (..) E o tiroteio continuou até às 8 horas da noite, quando os últimos grupos de populares deixaram de responder à polícia”. José Roberto Arantes seria assassinado pela ditadura pouco tempo depois.

Segundo Zuenir Ventura: “O balanço de alguns hospitais – nem todos divulgaram os totais, registrou: 23 pessoas baleadas, quatro mortas, inclusive um soldado da PM (...) 35 soldados feridos a pau e pedra, seis intoxicados e 15 espancados pela polícia. No DOPS, à noite, amontoavam-se cerca de mil presos”. Concluiu Ventura: “nos seis governos militares pós-1964, incluindo a Junta, foi o que mais se pareceu com uma insurreição popular”.

A sexta-feira sangrenta, como ficou conhecido este dia, foi uma demonstração evidente do grau que havia chegado o desgaste do regime militar junto à população dos grandes centros urbanos.

No enterro do soldado, o chefe da Casa Militar do governo do estado afirmou: “a Guanabara não verá mais manifestações nas ruas, mesmo que para evitá-las a PM tenha que agir ainda mais violentamente”. Mais violentamente?! Este seria o tom do discurso assumido pela cúpula militar. Mas, o governo Costa e Silva, desgastado pelos últimos acontecimentos, seria obrigado a fazer uma concessão aos grupos oposicionistas.

As lideranças estudantis já haviam decidido realizar uma nova manifestação. Esta iniciativa foi apoiada por representantes de amplos setores sociais, mas que não queriam confrontos com a polícia. Uma comissão de cerca de 300 intelectuais e artistas foi ao governador para solicitar autorização para realizar uma passeata pacífica no centro do Rio de Janeiro. Da comitiva participavam Hélio Pelegrino, Oscar Niemeyer, Ferreira Gullar, Clarice Lispector, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Nara Leão, Paulo Autran, Tônia Carreiro e Odete Lara entre outros. A permissão acabaria sendo concedida. Esta decisão, sem dúvida, contou com o aval do general Costa e Silva, que queria diminuir o desgaste sofrido com o massacre no campo do Botafogo e a Sexta-feira sangrenta.

E assim foi sendo construída a grande manifestação de 26 de junho. Neste dia cerca de 100 mil pessoas marcharam calmamente pelas ruas da “cidade maravilhosa”, na maior manifestação oposicionista desde a implantação da ditadura militar em março de 1964. Ali estavam os estudantes, os professores, os intelectuais, os artistas, o clero progressista e os assalariados urbanos, que tiveram grande papel nos conflitos da “sexta-feira sangrenta”.

A polícia desapareceu das ruas que passaram a ser controladas pela massa estudantil. Uma convocatória assinada pelas mães dos estudantes cariocas afirmava: “Não vamos continuar assistindo impassíveis às humilhações e ao massacre de que estão sendo vítimas nossos filhos. Queremos assim manifestar a mais viva repulsa às últimas violências e pedir ao povo brasileiro que nos apóie com sua compreensão e nos acompanhe em nosso protesto”.

O Correio da Manhã descreveu, assim, a manifestação: “Por dez horas, mais de 100 mil cariocas protestaram contra o governo, apoiando o movimento dos estudantes que, conforme previsto, foi sem incidentes, com dezenas de discursos de universitários, operários, professores e padres, que definiram ‘o compromisso histórico da igreja com o povo”. “Com perfeito dispositivo de segurança, os estudantes garantiram a realização da passeata, sem depredações, chegando a prender e soltar um policial que incitava a que fosse apedrejado o prédio do Conselho de Segurança Nacional. A concentração começou às 10 horas, com os primeiros grupos de padres e estudantes, sem qualquer policiamento”. O jornal, ironicamente, afirmou: “A primeira conclusão a retirar-se é a de que a repressão policial contra atividades legítimas é que gera os conflitos”.

Um dos destaques daquele ato foi Dom José de Castro Pinto, vigário-geral do Rio de Janeiro, e uma grande comitiva de clérigos. O presidente da Associação Católica da Guanabara, Padre Vicente Adamo, também se fez presente. Após o golpe parte importante do clero passou a apoiar a luta pela democratização da sociedade e se solidarizar com as lutas populares e estudantis. Por isso a “passeata dos cem mil” foi uma “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, com sinais trocados.

A quase totalidade dos artistas e intelectuais, excetuando os mais reacionários, que estavam no Rio, participou da manifestação. Podiam ser vistos Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Vianinha, Paulo Pontes, Nara Leão, Vinícius de Moraes, Tônia Carrero, Paulo Autran, Ferreira Gullar etc.etc. Era mais fácil citar os artistas que não passaram por lá naquele dia.

Vladimir Palmeira, como representante da União Metropolitana dos Estudantes (UME), comandou a passeata. O presidente da UNE, Luís Travassos, também estava presente. Não era possível deixar de sentir a divisão que existia no movimento estudantil e popular. De um lado ouvia-se a palavra de ordem “o povo organizado derruba a ditadura”, entoado pelos simpatizantes e militantes vinculados ao PCB, e, de outro, “o povo armado derruba a ditadura”, bradado pelos militantes das dissidências armadas e da AP.

Palmeira dava o tom do comício: “Pessoal: a gente é a favor da violência quando ela é aplicada para fins maiores. No momento, ninguém deve usar a força contra a polícia, pois a violência é própria das autoridades, que tentam, por todos os meios, calar o povo. Somos a favor da violência quando através de um processo longo, chegar a hora de pegar em armas. Aí, nem a polícia, nem qualquer outra força repressiva da ditadura poderá deter o avanço do povo”. Antes de encerrar o ato os manifestantes queimaram “ordeiramente” uma bandeira dos Estados Unidos.

A manifestação, convertida em assembléia popular e com o aval da direção da UME e do PCB, elegeu uma comissão que iria apresentar as reivindicações da “sociedade civil” ao governo de Costa e Silva. Desta comissão participavam Hélio Peregrino, representando os intelectuais; Irene Papi, as mães, o padre João Batista, o clero; José Américo Pessanha, os professores e Franklin Martins e Marcos Medeiros, os estudantes. Estranhamente nenhum operário – ou representante popular - foi incluído nela.

Da pauta que seria apresentada constava: libertação de todos os presos, reabertura do restaurante Calabouço, anulação da censura aos teatros e uma reforma universitária democrática. Foi estabelecido um prazo de uma semana para que o governo desse uma resposta às reivindicações. A Ação Popular e o PCdoB não aprovaram a proposta de formação da comissão de negociação, pois a considerava uma tentativa envergonhada de estabelecer diálogo com a ditadura. (Trataremos especificamente da atuação do PCdoB em 1968 num dos próximos artigos)

A reunião da comissão com o general-presidente foi um completo fracasso. Nenhum dos itens apresentados foi atendido. Costa e Silva começou a conversa impondo uma condição: “vocês tem que parar as passeatas (...) Se vocês garantem, vou tomar providências para libertar os cinco presos da alçada do Executivo e pedir que se estude a situação dos demais.” Os estudantes presentes reagiram: “Não aceitamos condição. Queremos a libertação de todos os companheiros imediatamente. Não viemos aqui barganhar.” Mais à frente os representantes dos estudantes voltaram a questionar desdenhosamente o ditador: “Escuta aqui, professor, eu quero saber o seguinte: o senhor vai ou não vai soltar nossos companheiros?!”.

“Eu não aceito ultimato, nem desrespeito. A dignidade da Presidência não admite ameaças. Está encerrada a reunião”, bradou o general Costa e Silva. Deste modo chegava ao fim o breve “diálogo” com o regime. Era claro que a margem de manobra dos dois lados era bem próxima à zero.

Diante do não atendimento de suas reivindicações, os estudantes realizariam uma grande manifestação em três de julho, que ficaria conhecida como a “passeata dos 50 mil”. Nela já se percebia o abandono de alguns setores sociais que haviam participado da passeata anterior. O tom dos protestos se tornava mais radical. A idéia do diálogo, alimentado por inúmeros setores oposicionistas, ruía sob o golpe de cassetetes e balas de fuzil. Podia se sentir um forte cheiro de pólvora no ar. As férias de julho pareciam ter adiado o confronto final. Uma sombra sinistra se projetava no horizonte.

Augusto Buonicore: historiador, mestre em ciência política pela Unicamp.

Bibliografia Dirceu , José. Palmeira, Vladimir – Abaixo a ditadura, Ed. Grammond, 1998.

Martins Filho, João Roberto – Movimento estudantil e ditadura militar (1964-1968), SP: Ed. Papirus, 1987.

Poerner, Artur J. – O poder jovem, Ed. Civilização brasileira, 1979.

Reis Filho, Daniel Aarão e Moraes, Pedro de – 68: a paixão de uma utopia, Ed. FGV, 1988.

Sanfelice, José Luís – Movimento estudantil: a UNE na resistência ao golpe de 64, Ed. Autores Associados, 1986.

Santos, N. e outros – História da UNE – depoimentos de ex-dirigentes, vol. 1 – Ed. Livramento, 1980.

Valle, Maria Ribeiro do – 1968: O diálogo é a violência, ed. Unicamp, 2008.

Ventura, Zuenir – 1968: O ano que não terminou, Ed. Nova Fronteira, 1988. Ver também o artigo “Assassinaram um estudante, poderia ser seu filho”

Fonte: www.vermelho.org.br




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