Chacina Verde-Oliva
(Paulo Passarinho)
___________________________________As razões que explicam a degradação das condições de trabalho, recursos e projetos estratégicos de valorização das funções constitucionais das Forças Armadas são as mesmas que submetem as populações pobres de nossas favelas ao regime de miséria e abandono.
É a total submissão do Estado brasileiro à ditadura dos grupos financeiros globalizados, impondo-nos a renúncia a um projeto popular e soberano de nação.
Deixo de lado o tema relativo ao debate sobre os rumos da nossa economia, para abordar a discussão sobre o problema da violênciacriminal e o envolvimento das Forças Armadas com essa questão. Ainda que, indiretamente, trate-se de um assunto relacionado ao modelo de sociedade – e de economia – que estamos construindo. Vamos aos fatos. Até o momento, doze dias após o fatídico sábado em que três jovens moradores do morro da Providência foram executados - segundo a versão dos militares, por traficantes do morro da Mineira -, não houve nenhuma iniciativa mais consistente por parte da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, para uma instrução adequada do processo aberto para apurar as responsabilidades desses crimes. As armas dos militares não foram periciadas, para o necessário confronto com os projéteis encontrados nos corpos chacinados; nenhum esclarecimento foi dado quanto ao paradeiro dos bandidos do morro da Mineira, mantidos incólumes até o momento (ontem, 25/06, os jornais trazem a informação que a polícia já tem os nomes dos "suspeitos"); a reconstituição do crime não foi realizada; a informação dada pela mãe de uma das vítimas, que afirma ter visto o seu filho ensangüentado no pátio do quartel, não foi esclarecida; a versão apresentada pelos militares para explicarem o contato com os bandidos do morro da Mineira é inteiramente inverossímil; a hipótese de "venda" dos rapazes aos traficantes, por sessenta mil reais, não foi também esclarecida; a versão da insubordinação do tenente, em relação à ordem que lhe teria dado o capitão no comando do quartel, para a imediata soltura dos jovens, precisa também de maiores explicações. Em suma: até o momento, tivemos apenas a prisão dos militares diretamente envolvidos e os seus respectivos depoimentos. Aparentemente, por uma iniciativa isolada do delegado Ricardo Domingues, responsável pela Delegacia Policial da área onde o crime ocorreu. E que não foi acompanhada de uma série de outros procedimentos essenciais para o levantamento de provas e contraprovas que nos possam esclarecer o que de fato ocorreu e, principalmente, criar bases consistentes para o julgamento dos culpados. Os advogados da defesa é que devem estar até o momento contentes e confiantes no futuro dos seus representados. O papel do delegado deve ser destacado. Já no próprio sábado em que ocorreram os crimes, foi apurada a responsabilidade dos militares, bem como o possível paradeiro dos jovens. No domingo, depois de seis horas de depoimentos dos próprios militares, no Comando Militar do Leste, o delegado pediu à Justiça a prisão temporária do tenente responsável pelo comando do grupo que deteve os jovens, bem como dos outros sete soldados e três sargentos envolvidos. No próprio domingo, também, os corpos dos jovens foram encontrados. O rápido esclarecimento - apenas inicial - do caso é inédito, em casos de crimes dessa natureza, com envolvimento de militares. Não preciso lembrar aqui o absurdo fato de até os dias de hoje não terem sido esclarecidos os "desaparecimentos" de militantes políticos que faziam oposição à ditadura. Mas destaco fato ocorrido em 1994, por ocasião da intervenção militar no Rio de Janeiro. Naquela ocasião, o servidor público federal da Biblioteca Nacional, Marcos Rufino da Cruz, desapareceu após ter sido detido por uma patrulha do Exército, próximo ao morro do Fubá, entre Campinho e o viaduto de Madureira. Apesar de todos os esforços feitos à época – por parte de seus colegas da Biblioteca Nacional e do próprio então presidente daquela instituição, Affonso Romano de Sant’Anna -, o episódio jamais foi esclarecido e Rufino, conforme era conhecido e estimado por seus amigos, jamais voltou a ser visto. Devemos, por isso tudo, denunciar e nos opor aos procedimentos em curso no atual governo, e que ferem frontalmente a Constituição Federal. A criação da chamada Brigada GLO (Garantia da Lei e da Ordem), em Campinas, São Paulo, de treinamento específico para enfrentar distúrbios de natureza social, bem como a utilização de força militar nesta estapafúrdia, eleitoreira e ilegal ação no morro da Providência são exemplos de iniciativas que não poderiam ser tomadas, à luz dos preceitos constitucionais em vigor. No seu artigo 144, a Constituição Federal define que a segurança pública é exercida através da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da polícia ferroviária federal, das polícias civis e das polícias militares e corpo de bombeiros militares. No artigo 142 – específico das atribuições das Forças Armadas – é destacado que essas "destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". O parágrafo primeiro desse artigo define que "lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas". A legislação complementar existente é polêmica, inconstitucional para alguns, e inviável para os que querem as tropas militares nas ruas, em ações ostensivas de policiamento. É justamente em meio a essa confusão legal que, na prática, o Poder Executivo e o Ministério da Defesa vêm impondo uma realidade institucional que não encontra amparo na presente ordem legal do país. Cria-se mais uma vez a política do fato consumado. Já estamos assistindo a todo o polêmico processo de aquisição da BrasilTelecom pela OI/Telemar – uma das principais financiadoras da campanha de reeleição de Lula – mesmo antes das mudanças legais que buscariam "legalizar" a operação. Agora, em meio às perplexidades com relação a todos os absurdos envolvidos no caso da Providência, o ministro Jobim acena que urge a aprovação de uma nova lei, para que o que já está sendo feito, por iniciativa exclusiva dos militares e do presidente da República, venha a encontrar amparo constitucional. Mais grave: sabe-se que a política defendida pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos define que a única força militar abrangente, de combate e dissuasão para o conjunto das Américas, deva ser a sua própria força armada, dada a sua capacidade de ação e o seu poder de destruição. Aos demais países e às suas respectivas forças armadas deveriam ser definidas funções voltadas ao combate ao narcotráfico, ao terrorismo e aos distúrbios de natureza social. É dentro desse contexto que devemos compreender a razão da polêmica presença de tropas brasileiras no Haiti. A aceitação, portanto, dessa idéia de utilização de forças militares no combate à criminalidade possui implicações que vão muito além de uma mera discussão restrita à ordem interna. Em relação a essa, os que defendem o emprego das Forças Armadas contra a criminalidade urbana lembram que já existem áreas do território nacional onde o Estado não entra, locais que seriam "controlados" por grupos de bandidos, como é o caso de várias favelas do Rio de Janeiro. Ora, afirmar que o verdadeiro terror imposto por bandidos que controlam a venda de varejo de drogas ilícitas nessas favelas se constitui em "controle de território" é um verdadeiro acinte. Primeiramente, trata-se de fato de um terror, sustentado por armas sofisticadas, cuja origem, a polícia e as Forças Armadas nunca tiveram, curiosamente, a capacidade de esclarecer. Imaginar que jovens descalços, em geral analfabetos e extremamente drogados, sejam eles mesmos os articuladores dos esquemas de aquisição de armamentos sofisticados não nos parece plausível. Segundo: esses bandidos nada controlam e é falso que impeçam a ação do Estado. Exercem o seu terror, simplesmente na esteira da mais completa ausência da presença permanente e qualitativa do Estado. Este, o Estado, lá não se encontra por força de políticas que privilegiam o capital e as políticas voltadas para os setores mais ricos. Não existem nessas áreas escolas bem equipadas, professores preparados, assistentes sociais, postos de saúde ou hospitais dignos desse nome. Os seus moradores tampouco possuem condições de renda que lhes permitam alguma alternativa. Sequer policiamento há. As incursões das polícias se dão de forma esporádica, de maneira suspeita e, em geral, aumentando ainda mais a violência que afeta a população em seu cotidiano. São áreas, na prática, abandonadas pelo Estado, e onde a corrupção e a violência campeiam, além da promoção de valores e intensa propaganda – especialmente através da televisão – de um modo de vida que cada vez mais vincula a felicidade humana ao consumismo desenfreado de bens e serviços, inacessíveis para a maioria do povo. Os nossos generais deveriam refletir sobre isso e meditar sobre os riscos potencialmente apontados para a tropa profissional. Sobre todos os riscos que fizeram inclusive um tenente do Exército brasileiro comandar uma ação tão bárbara. Porém, a pior chacina verde-oliva será a de continuar envolvendo o Exército nesse tipo de operação, em um contexto onde sabidamente faltam investimentos, equipamentos e capacitação adequada de oficiais e praças, para a exigente defesa do nosso imenso e riquíssimo território. E o mais irônico. As razões que explicam a degradação das condições de trabalho, recursos e projetos estratégicos de valorização das funções constitucionais das Forças Armadas são as mesmas que submetem as populações pobres de nossas favelas ao regime de miséria e abandono. É a total submissão do Estado brasileiro à ditadura dos grupos financeiros globalizados, impondo-nos a renúncia a um projeto popular e soberano de nação. |
MARIA RITA KEHL*
Não haverá solução se a outra parte da sociedade, a zona sul, não se posicionar radicalmente contra esse extermínio não oficial.
Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós.
O INIMAGINÁVEL acontece. Supera nossa capacidade de prever o pior. Conduz-nos até a borda do real e nos abandona ali, pasmos, incapazes de representar mentalmente o atroz. O pior pesadelo do escritor Primo Levi, em Auschwitz, era voltar para casa e não encontrar quem acreditasse no horror do que ele tinha a contar.
Acreditar no horror exige imaginá-lo de perto e arriscar alguma identificação com as vítimas, mesmo quando distantes de nós. Penso no assassinato dos cidadãos cariocas David Florêncio da Silva, Wellington Gonzaga Costa e Marcos Paulo da Silva por 11 membros do Exército encarregados de proteger os moradores do morro da Providência. Assassinados por militares, sim, pois não há diferença entre executar os rapazes e entregá-los à sanha dos traficantes do morro rival. A notícia é tão atroz que o leitor talvez tenha se inclinado a deixar o jornal e pensar em outra coisa.
Não por insensibilidade ou indiferença, quero crer, mas pela distância social que nos separa deles, abandonamos mentalmente os meninos mortos à dor de seus parentes. Abandonamos os familiares que denunciaram o crime às possíveis represálias de outros "defensores da honra da instituição". Desistimos de nossa indignação sob o efeito moral das bombas que acolheram o protesto dos moradores do Providência.
Nós, público-alvo do noticiário de jornais e TV, que tanto nos envolvemos com os assassinatos dos "nossos", viramos a página diante da morte sob tortura de mais três rapazes negros, moradores dos morros do Rio de Janeiro. É claro que esperamos que a justiça seja feita. Mas guardamos distância de um caso que jamais aconteceria com um de nós, com nossos filhos, com os filhos dos nossos amigos.
O absurdo é uma das máscaras do mal: tentemos enfrentá-lo. Façamos o exercício de imaginar o absurdo de um crime que parece ter acontecido em outro universo. Como assim, demorar mais do que cinco minutos para esclarecer a confusão entre um celular e uma arma? E por que a prisão por desacato à autoridade? Os rapazes reclamaram, protestaram, exigiram respeito -ou o quê? Não pode ter sido grave, já que o superior do tenente Ghidetti liberou os acusados.
Mas o caso ainda não estava encerrado? O tenente, que não se vexa quando o Exército tem que negociar a "paz" no morro com os traficantes, se sentiu humilhado por ter sido desautorizado diante de três negros, mais pés-de-chinelo que ele? Como assim, obrigá-los a voltar para o camburão -até o morro da Mineira? Entregues nas mãos dos bandidos da ADA em plena luz do dia, como um "presentinho" para eles se divertirem? Era para ser "só uma surra"? Como assim?
Imaginaram o desamparo, o desespero, o terror? Não consigo ir adiante e imaginar a longa cena de tortura que conduziu à morte dos rapazes. Mas imagino a mãe que viu seu filho ensangüentado na delegacia e não teve mais notícias entre sábado e segunda-feira. E que depois reconheceu o corpo desfigurado, encontrado no lixão de Gramacho. Imagino a cena que ela nunca mais conseguirá deixar de imaginar: as últimas horas de vida de seu menino, o desamparo, o pânico, a dor. "Onde o filho chora e a mãe não escuta" era como chamávamos as dependências do Doi-Codi onde tantos morreram nas mãos de torturadores.
Ainda falta imaginar a promiscuidade entre o tenente, seus subordinados e os assassinos do morro da Mineira: o desacato à autoridade é crime sujeito a pena de morte e a tortura de inocentes é objeto de cumplicidade entre traficantes e militares? Claro, os traficantes serão mortos logo pelo trabalho sujo do Bope. Se outros cidadãos morrerem por acidente, azar; são as vicissitudes da vida na favela.
Quando membros corruptos da PM carioca mataram a esmo 30 cidadãos em Queimados, houve um pequeno protesto em Nova Iguaçu. Cem pessoas nas ruas, familiares dos mortos, nada mais. Nenhum grupo pela paz foi até lá. Nenhuma Viva Rio reuniu gente de branco a marchar em Ipanema. Ninguém gritou "basta!" na zona sul. Não é a mesma cidade, o mesmo país. Não nos identificamos com os absurdos que acontecem com eles.
Não haverá um freio espontâneo para a escalada da truculência da Polícia e do tráfico, nem para o franco conluio entre ambos (e, agora, membros do Exército) que vitima, sobretudo, cidadãos inocentes. Não haverá solução enquanto a outra parte da sociedade, a chamada zona sul -do Rio, de São Paulo, de Brasília e do resto do país-, não se posicionar radicalmente contra essa espécie de política de extermínio não oficial, mas consentida, a que assistimos incrédulos, dos negros pobres do Rio.
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ESTADO PROVIDÊNCIA
Renato Lessa*
Ocupação militar, sob uma aliança política fétida. Tortura. Morte. Revolta. Impunidade. Até onde vai nossa malignidade social?
O filósofo francês Jean Lyotard disse, em uma certa altura, que o Holocausto assemelhou-se a um terremoto que acabou por destruir os instrumentos de mensuração e detecção de terremotos. Ainda que nosso horizonte imediato de malignidade não se compare ao do extermínio brutal e cuidadosamente perpetrado pelos nazistas, há algo a reter na idéia de um desastre que corrói a própria possibilidade de compreendê-lo.
No calor dos acontecimentos iniciados pela ação do Exército no morro carioca da Providência, que culminaram com o trucidamento de três jovens, a opinião circunstanciada dos especialistas foi solicitada, como recurso de elucidação daquilo que a olhos, vá lá, normais aparecia como inexplicável. Entre as tentativas de elucidação, uma em particular chamou-me a atenção, pois viria a ser repetida por outros especialistas e por colunistas de notória expressão conservadora. Na noite do dia do enterro dos três jovens, um veterano especialista no tema da violência atribuiu - em entrevista televisiva - o evento a uma questão de treinamento (sic). Em termos diretos: o Exército não foi treinado para lidar com a segurança pública, logo, por mais lamentável que seja, o episódio inscreve-se na ordem das possibilidades.
Não desejo prosseguir com essa referência em chave assim tão pessoal, mas a reação de meu filho de 18 anos, a meu lado, abriu-me uma janela de reflexão. Ao ouvir a sábia explicação, disse meu filho em sua linguagem especial de rubro-negro carioca, a qual aqui penso traduzir: “Eu não fui treinado para lidar com segurança pública, mas não entregaria três seres humanos para a morte certa nas mãos de assassinos notórios”. Com efeito, a observação possibilitou o desfrute da elevação existencial que sobrevém com a indignação: acabam de trucidar três jovens inocentes e o sujeito põe-se a falar de “treinamento”.
Os instrumentos de mensuração de desastres sociais - e seus operadores - parecem ter sucumbido aos desastres. Há um evidente hiato entre possíveis despreparos operacionais, ou lapsos de treinamento, por parte dos chamados “agentes da lei” e aquilo que seres humanos se permitem fazer com outros seres humanos. E é disso, primariamente, que se trata. Uma ciência social sem espírito está, às cegas, à procura de regras e instituições para retificar a vida social. A boa regulação e o bom desenho institucional acabarão por nos redimir, dizem-nos. Claro está que uma nova escuta do social se impõe, que seja capaz de reorientar nossas observações e fazer do tema e do lugar do sofrimento humano o núcleo sobre o qual toda a atenção deve incidir. Há muitas camadas no evento em questão a considerar, antes que nos preocupemos com problemas de “treinamento”.
Antes de tudo, a primeira camada do evento, a do registro do nome de cada uma das vítimas, antes que caiam no abismo da numeração estatística: Wellington Gonzaga Costa, 19 anos; Marcos Paulo da Silva, 17; e David Wilson Florêncio da Silva, 24. Os três foram detidos no Morro da Providência por 11 militares do Exército brasileiro, chefiados por um tenente e, depois de um périplo que incluiu maus-tratos imediatos e uma ida ilegal ao quartel, foram entregues a traficantes de uma área “inimiga”, que procederam ao esperado. Um dos primeiros impulsos da cobertura jornalística consistiu em nos informar a respeito da folha penal de cada um dos vitimados, como que a sinalizar os limites adequados de nossas reações. Omito, aqui, tais dados, por absolutamente irrelevantes. O que importa registrar é que, em um intervalo de poucas horas - da detenção à morte -, os jovens só poderão ser descritos por aquilo que os laudos da necropsia revelariam do que foi imposto a seus corpos. São seus laudos cadavéricos que hoje servem de suporte à notoriedade que acabaram por obter, do único modo que lhes foi facultado.
Wellington foi severamente torturado, com golpes de madeira e barras de ferro; levou 26 tiros por todo o corpo - tiros nas mãos, nos pés e joelhos e em um olho. Teve ainda, durante o suplício, os braços amarrados e as coxas perfuradas por um vergalhão de ferro. David foi igualmente torturado e baleado com 18 tiros por todo o corpo; suas pernas foram quebradas e seu tormento arrastou-se por uma hora. Marcos levou apenas dois tiros, mas foi arrastado pelos cabelos, pelas vielas do Morro da Mineira. Um experimentado legista - testemunha do que existe de mais radical na dor humana - comentou: os três jovens sofreram barbaramente antes de morrer. É esse o ponto nuclear do evento: as marcas finais fixadas nos corpos dos três supliciados.
A câmara de gás de Auschwitz ainda hoje conserva em suas paredes as marcas das unhas dos que ali foram eliminados do mundo. Hoje se apresentam como pormenores e fragmentos que interpelam e obrigam a imaginar o complexo e imenso horror do campo de extermínio. Pequenos arranhões sobre as paredes são suficientes para que toda a experiência do horror seja evocada. Sabemos bem ler essa partitura. O que se nos impõe, agora, é aprender a ler os laudos de necropsia e de corpo de delito de jovens idênticos aos vitimados do Morro da Providência. Na impossibilidade de escutar seus gritos e pedidos de ajuda, o que dizem seus parentes, amigos e vizinhos deve ser tomado como uma arma de elucidação do que se passa nos meandros mais sombrios e letais da vida social.
Os relatos falam-nos de uma ocupação militar, suscitada por uma fétida aliança política, entre o presidente da República e seu candidato a prefeito do Rio de Janeiro. O rebatimento da aliança sobre a área do Morro da Providência deu-se sob a forma da participação do Exército em obras de recuperação de fachadas e telhados. Com a graciosa oferta de mão-de-obra, veio a ocupação militar, sob pretexto de dar segurança aos operários. No enterro dos rapazes, a comoção generalizada não inibiu a percepção adequada da rede de causalidades que tornou possível o evento em questão: Lula, o Exército e o senador Marcelo Crivella foram citados de modo pouco carinhoso, para dizer o mínimo. O que esperar de uma aliança desse tipo? Querem o quê? (Crivella, aliás, não fosse tudo isso, mereceria ainda assim severo castigo eleitoral pelo nome magnífico de seu programa, designado como “cimento social”).
Dos vizinhos, ouvimos o testemunho do toque de recolher, das repetidas revistas ilegais, das ameaças com armas e da menção a casos precedentes de entrega de “elementos” suspeitos a milícias e a traficantes. Melhor do que parafrasear, é ouvir o que diz uma mulher de 55 anos: “Eles (o Exército) fazem igual à polícia. Revistam nossas bolsas, colocam os moradores na parede, olham a mochila de crianças, jogam spray de pimenta”. No caminho para o enterro dos jovens, a bandeira brasileira que havia sido fincada pelos ocupantes foi arrancada pelos moradores que ali pretendiam pôr um pavilhão de cor mais adequada. Negra, por certo. O pavilhão foi reposto pelos soldados e, hoje, acrescenta à sua simbologia histórica o fato de indicar quem manda.
Duvido que um dos moradores ouvidos tenha lido o filósofo italiano Giorgio Agamben, famoso, entre outras coisas, por declarar que vivemos todos - e em toda parte - em um “estado de exceção permanente”. Mais contido, o morador sem metafísica afirmou: “Quarenta anos depois, voltamos à ditadura”. Por experiência pessoal, e não por pirotecnia intelectual, o morador introduz um aspecto central do drama: depois da evidência incontornável das marcas impostas aos corpos dos vitimados, segue-se o relato da experiência de viver sob estado de exceção, de suspensão de regras de previsibilidade e de proteção coletiva e individual.
Depois de 20 anos de vida democrática, o sistema de segurança e controle da ordem social parece ser irreformável. Os piores desenhos de política parecem encontrar abrigo perfeito na mão de psicopatas, tal como o infeliz que pretendia dar um “corretivo” e “apenas uma surra” nos “elementos”. Parece não haver alternativa imediata a não ser a resistência popular aos espasmos despóticos. As mães dos jovens do Morro da Previdência parecem ter entendido isso, da maneira mais dolorosa possível. O martírio de seus filhos valeu como um terrível ato de elucidação. Stabat mater dolorosa... lacrimosa...
*Renato Lessa é professor titular de Teoria Política do Iuperj (Inst. de Pesq. do Rio de Janeiro) e da UFF in: O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS em 22/06/2008
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