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No denso artigo reproduzido a seguir o professor Bernardo Kucinski traça um retrato das grandes transformações da mídia nacional no Brasil ao longo desses cinco anos.
Vale a pena ler o artigo, refletir sobre ele. Vale a pena passar a observar a prática de produção de factóides que ele denuncia e formular as próprias conclusões.
MÍDIA & PODER - CARTA MAIOR
'A VEJA lançara sua própria operação de objetivos estratégicos muito antes. Entre 2003 e 2006, VEJA produziu 50 capas contra Lula , sendo 18 delas consecutivas.'
Por que o governo Lula perdeu a batalha da comunicação
E como a Globo definiu a narrativa dominante e única da crise do mensalão. A central de Brasília, dizem jornalistas que trabalharam no sistema Globo, formou uma espécie de “gabinete de crise" com líderes da oposição do qual faziam parte ACM Neto e Paes de Andrade. Fechar a Radiobrás foi o ato síntese de todos os grandes erros na política da comunicação do governo Lula. A análise é de Bernardo Kucinski.
Bernardo Kucinski*
A mídia na era Lula deixou de funcionar como mediadora da política, passando a atuar diretamente como um partido político de oposição. Apesar de disputarem agressivamente o mercado entre si, há mais unidade programática hoje entre os veículos da mídia oligárquica do que no interior de qualquer partido político brasileiro, até mesmo partidos ideológicos como o PT e o PSOL. Todos os grandes veículos, sem exceção, apóiam as privatizações, a contenção dos gastos públicos, a redução de impostos; a obtenção de um maior superávit primário, a adesão do Brasil à ALCA; todos são críticos à criação de um fundo soberano, ao controle na entrada de capitais, ao Bolsa Família, à política de cotas nas universidades para negros, índios e alunos oriundos da escola pública, à entrada de Venezuela no Mercosul e ao próprio Mercosul. Todos criticam o governo sistematicamente, em todas as frentes da administração, faça o governo o que fizer ou deixar de fazer.
Na campanha da grande imprensa que levou Vargas ao suicídio, o governo ainda contava como apoio da poderosa cadeia nacional de jornais Última Hora. Hoje, não há exceção entre os grandes jornais. Outra diferença desta vez é a adesão ampla de jornalistas à postura de oposição, e sua disseminação por todos os gêneros jornalísticos tornando-se uma sub-cultura profissional. Emulada por editores, prestigiada por jornalistas bem sucedidos e comandada pelos intelectuais orgânicos das redações, os colunistas, essa sub-cultura é dotada de um modo narrativo e jargão próprios.
Em contraste com o jornalismo clássico, que trabalha com assertivas verazes para esclarecer fatos concretos, sua narrativa não tem o objetivo de esclarecer e sim o de convencer o leitor de determinada acusação, usando como fio condutores seqüências de ilações. É ao mesmo tempo grosseira na omissão inescrupulosa de fatos que poderiam criar outras narrativas, e sofisticada na forma maliciosa como manipula falas, datas e números. O enunciador dessa narrativa conhece os bastidores do poder e não precisar provar suas assertivas. VEJA acusou o PT de receber dinheiro de Cuba, admitindo na própria narrativa não ter provas de que isso tenha acontecido. Em outra ocasião, justificou a acusação alegando não haver nenhuma prova de que aquilo não havia acontecido.
Trata-se de uma sub- cultura agressiva. Chegam a atacar colegas jornalistas que a ela se recusaram a aderir, criando nas redações um ambiente adverso a nuances de interpretação ou divergências de análise. O meta-sentido construído por essa narrativa é o de que o governo Lula é o mais corrupto da história do Brasil, é incompetente, trapalhão, só tem alto índice de aprovação porque o povo é ignorante ou se deixa levar pelo bolso, não pela cabeça.
Levantam como principal bandeira o repúdio à corrupção. Mas como quase todo o moralismo em política, trata-se de mais uma modalidade de falso moralismo: é o “moralismo dirigido” que denuncia os “ mensaleiros do PT” e deixa pra lá o valerioduto dos tucanos, onde tudo de fato começou, e mais recentemente o escândalo do Detran de Yeda Crusius, no Rio Grande do Sul onde tudo continua. É “moralismo instrumental”, que visa menos o restabelecimento da ética e mais a destruição do PT e do petismo.
O que poucos sabem é que essa sub-cultura se tornou dominante graças a uma mãozinha da Globo. Quando foi revelada em fevereiro de 2004 a propina recebida dois anos antes por Waldomiro Diniz, sub-chefe da assessoria parlamentar da Casa Civil do governo Lula, a Globo vislumbrou a oportunidade de uma ofensiva de caráter estratégico: cortar o barato do petismo e de sua ameaça de governar o Brasil por 40 anos. Com esse objetivo, mudou o modus operandi do seu jornalismo político. Logo depois das denúncias de Roberto Jefferson, criou uma central de operações, em Brasília, unificando as coberturas de política da TV, CBN e jornal O Globo sob o comando de Ali Kamel, que para isso se deslocou para Brasília.
Em quase todas as campanhas eleitorais os grandes jornais criam uma instância adicional de decisão sob o comando de alguem de confiança da casa, que passa a centralizar toda a cobertura política. A central coordenada por Ali Kamel em Brasília reflete essa passagem de um jornalismo normal para um jornalismo de campanha, apesar de não estar em curso uma campanha eleitoral.
A central de Brasília, dizem jornalistas que trabalharam no sistema Globo, formou uma espécie de “gabinete de crise" com líderes da oposição do qual faziam parte ACM Neto e Paes de Andrade, pautando-os e por eles se pautando. Vários jornalistas faziam parte da operação, cada um encarregado de uma “fonte” da oposição. Tinham a ordem de repercutir junto àquela fonte, todos os dias, falas e acusações, matérias do dia anterior, entrevistando sempre os mesmos protagonistas: Heloísa Helena, ACM Neto, Gabeira, Onix Lorenzoni. No dia seguinte, os jornais davam essas falas em manchete, como se fosse fatos. Assim surgiu todo um processo de construção de um relato da crise destinado a se tornar a narrativa dominante e única.
A VEJA lançara sua própria operação de objetivos estratégicos muito antes. Entre 2003 e 2006, VEJA produziu 50 capas contra Lula , sendo 18 delas consecutivas.
Quando surgiu a fita de Waldomiro Diniz, a revista revelou esse objetivo em ato falho: “Os ares em torno do Palácio tinham na semana passada sabor de fim de governo.”
Na Globo, a operação encontrou resistências internas de jornalistas que ainda lambiam as feridas provocadas pelo falseamento do debate Collor- Lula, e da cobertura da campanha das Diretas Já. Deu-se então a marginalização de Franklin Martins da cobertura política. Esse afastamento teve grande importância porque institui no corpo de jornalistas a sensação de insegurança e o medo, necessários para a imposição da nova ordem. Sua saída foi um baque”, avaliou Luiz Nassif em entrevista a Forum.
Com o vazamento de informações sobre o clima interno de intolerância, em especial uma reportagem de Raimundo Pereira em Carta Capital, e matérias críticas em blogs e no site Carta Maior, a cúpula jornalística da empresa mandou circular um manifesto cobrando lealdade à casa. Três jornalistas que se recusam a assinar foram expurgados.
Da Globo o expurgo respingou a outros veículos da grande imprensa. O último capítulo desse processo foi a não renovação do mandato do Ombudsman da Folha, Mário Magalhães por criticar na internet a forma como a Folha reportou o vazamento dos gastos do governo FHC com cartões corporativos. Apontou falta de transparência por não indicarem as fontes da acusação de que Dilma Roussef foi a mandante, e a falha de não ouvir os causados. No caminho também perdeu seu espaço Paulo Henrique Amorim. Mino Carta, em solidariedade, desligou-se do IG.
Na campanha contra Getúlio a sobre-determinante era a guerra-fria, que desqualificava o nacionalismo e as demandas sindicais como meros instrumentos do comunismo. Hoje a sobre-determinante é o neoliberalismo que desqualifica opções de política econômica em nome de uma verdade única à qual é atribuído o monopólio da eficácia. A unanimidade anti-Lula da grande mídia só tem paralelo na unanimidade pró-neoliberal dessa mesma mídia.
Mas temos um paradoxo. O governo Lula tem mantido religiosamente seu acordo estratégico com o capital financeiro, que é o setor dominante hoje no capitalismo mundial e brasileiro. E apesar do vasto leque de políticas públicas de apoio aos pobres, não brigou com nenhum dos outros grupos de interesses do grande capital. Por que então tanta hostilidade da mídia? É como se a grande mídia agisse por conta própria, pouco ligando para a dupla capital financeiro-capital agrário e na qual se apóia.
É uma mídia governista, ou ”áulica”, na adjetivação de Nelson Werneck Sodré, quando o governo faz o jogo da dependência, como foram os governos de Dutra, Café Filho, Jânio Quadros e Fernando Henrique. E anti-governista, quando os governos são portadores de projetos de autonomia nacional, como foram os governos de Getúlio, Juscelino, que rompeu com o FMI, Jango e agora o de Lula.
Uma mídia que já nasceu neoliberal, muito antes do neoliberalismo se impor como ideologia dominante e organizativa das políticas públicas. Nunca aceitaram o Estado que chamam pejorativamente de “populista”. Em artigo recente na Folha, Bresser Pereira associou diretamente o discurso da mídia contra o populismo e sua inclinação pelo golpe à nossa extrema pobreza e polarização de renda. “Como a apropriação do excedente econômico não se realiza principalmente por meio do mercado mas do Estado, a probabilidade de que facções das elites recorram ao golpe de Estado quando se sentem ameaçadas é sempre grande.” Diz ainda que nossas elites “estão quase sempre associadas às potências externas e às suas elites.” Daí, diz ele ”O que vemos na imprensa, além de ameaças de golpe é o julgamento negativo dos seus governantes...”
A incompatibilidade entre governos populares portadores de projetos nacionais e a mídia oligárquica é de tal ordem que muitos desses governantes tiveram que jogar o mesmo jogo do autoritarismo, para dela se proteger. Getulio criou a Hora do Brasil como programa informativo de rádio para defender a revolução tenentista contra a oligarquia ainda em 1934, quando o regime era democrático, fundado na Constituição de 34. No Estado Novo foi ao extremo de instituir a censura previa criando o Departamento de Imprensa e Propaganda. (DIP). No retorno democrático, estimulou Samuel Wainer a criar sua cadeia Última Hora.
Estas reflexões, se tem algum fundamento, mostram como foi equivocada a política de comunicação do governo Lula, a começar por não atribuir à comunicação e às relações com a mídia o mesmo peso estratégico que atribuiu às suas relações com a banca internacional. Nem sequer havia um comando único para a comunicação, que sofreu um processo de feudalização. Só na presidência, três feudos disputavam espaço: a Secom, o Gabinete do Porta-Voz e Assessoria de Imprensa. Fora dela, dois ministérios definiam políticas públicas na esfera da comunicação: Ministério das Comunicações e Ministério da Cultura.
Propostas longamente discutidas ainda no âmbito dos grupos de jornalistas do PT, e pelos funcionários da Radiobrás, não foram sequer discutidas. Nesse vazio, o único grande aparelho de comunicação social do governo, o sistema Radiobrás acabou embarcando numa política editorial chamada de “comunicação cidadã”, que tinha como preocupação fundamental e explícita de dissociar-se do governo do dia. O que é pior: despojava a Radiobrás de sua atribuição formal de sistema estatal de comunicação. Isso num momento histórico que exigia, ao contrário, reforçar o sistema estatal de comunicação.
Pouco experiente em jornalismo político, a equipe não conseguiu resolver de forma criativa a contradição entre fazer um jornalismo veraz de qualidade e politicamente relevante, e ser ao mesmo tempo um serviço estatal de comunicação. Com definições opacas, que nada acrescentavam ao que se entende por jornalismo, acabaram desenvolvendo um jornalismo de tipo alternativo, parecido ao que fazem as ongs e movimentos sociais.
A importante mudança do papel da Radiobras nunca foi discutida no Conselho da Radiobrás. O corpo da Radiobrás chegou a se entusiasmar com a idéia sempre simpática a jornalistas, mas simplória, de deixar de ser “chapa-branca”, mas acabou não havendo muita harmonia entre a nova direção e as bases. Uma apregoada “gestão participativa”, ficou mais no papel do que na prática.
Em minucioso relatório sobre as conquistas da Radiobrás perto do final do primeiro mandato, o presidente do Conselho enumerou os muitos avanços técnicos, mas apontou que a Radiobrás havia criado uma outra missão e outro papel para si, sem discutir essas mudanças previamente com o próprio governo. Também apontou ser falso o debate que contrapõe comunicação de caráter oficial com o direito do cidadão à boa informação.
Mais equivocada ainda foi a proposta de acabar com a obrigatoriedade da Voz do Brasil, formulada pela direção da Radiobrás logo no primeiro ano do mandato de Lula, a partir dos conceitos neoliberais de que o Estado não faz parte da esfera pública e a liberdade de imprensa do baronato da mídia é a própria liberdade de imprensa. A Radiobrás chegou a co-patrocinar no anexo II da Câmara dos Deputados, junto com os Mesquitas um seminário para apoiar a flexibilização da Voz do Brasil.
Essa mesma visão ingênua levou a Radiobrás a adotar como sua e como se fosse a única possível, a narrativa da grande imprensa na grande crise do mensalão, que como vimos foi em grande parte articulada entre o sistema Globo e a oposição. Embora só hoje se saibam alguns detalhes dessa operação, as forçadas de barra no noticiário e nas manchetes eram discerníveis a qualquer jornalista experiente.
Naquele momento, a Radiobrás era o único sistema de comunicação social capaz de criar uma narrativa realmente independente da crise, que sem ser chapa branca também não fosse submissa à articulação comandada pela Globo. Mas quando veio a crise, seu projeto editorial entrou em parafuso. Mais do que isso: a crise traumatizou a direção da empresa que viu ruir a bandeira ética do PT, sob a qual muitos deles cresceram, formaram-se e criaram sua identidade pública. Só um estado catatônico poderia explicar o fato da Radiobrás dar ao vivo e na íntegra o depoimento de Roberto Jefferson de junho de 2005 como se quisesse se colocar à frente do sistema Globo. No momento crucial da crise cortou um discurso de Lula em Luziania, o que nem a Globo fez.
Foi a fase em que manchetes da Agência Brasil rivalizavam com as da grande imprensa na espetacularização da crise e na disseminação de noticias infundadas. Entre essas manchetes está a acusação nunca comprovada do dia de renuncia de Zé Dirceu (16/06/05) : “Ex-agente do SNI diz que Casa Civil está envolvida nas provas dos correios”. E a noticia falsa de que “Miro Teixeira confirmou as acusações de Jeffersson”, dada no mesmo dia 21/06;05 em que até a grande imprensa admitia que Miro Teixeira não havia confirmado essas acusações. Mesmo sem atentar para a dimensão política desse tipo de noticiário, sua fragilidade era incompatível com o padrão que se espera de uma comunicação de Estado.
Outras manchetes meramente reproduziam falas de líderes da oposição: ”Nada poderá restringir nosso trabalho na CPI”, diz líder do PFL (17/056/05) ou “PFL e PSDB alegam que PT violou legislação (22/06/05). A Radiobrás, sem perceber, havia entrado no esquema orquestrado por Ali Kamel. Naquele momento nascia o processo de colonização da comunicação de governo e do Estado pelo ideário liberal-conservador , que acabou levando ao fechamento intempestivo da própria Radiobrás.
Fechar a Radiobrás foi o ato síntese de todos os grandes erros na política da comunicação do governo Lula. Ademais, ao fechar a Radiobrás o governo violou a Constituição que manda coexistirem os três sistemas; púbico, privado e estatal. E não é à toa que a Constituinte cidadã assim decidiu. Como sabemos, diversas vezes a grande mídia latino-americana apoiou golpes de Estado, algo inimaginável nas democracias dos países centrais. Ter um sistema estatal de comunicação minimamente funcional , com credibilidade e legitimidade junto à população é uma espécie de apólice de seguro contra golpes de Estado.
O governo lidou com a comunicação como se a nossa democracia fosse igualzinha a democracia americana. Mas o que vale para os Estados Unidos da América, pode não valer para o Brasil. O Estado americano não tem uma Radiobrás ou uma Voz do Brasil, porque nunca sofreu um golpe midiático, mas tem a Voice of America, para defender seus interesses imperiais. O Estado brasileiro não contempla interesses imperiais, mas precisa se defender do golpismo e das pressões externas sobre a Amazônia. Por isso precisa de uma Radiobrás e de uma Voz do Brasil.
Vale a pena reservar um tempo para ler e refletir sobre as considerações deste importante pensador, crítico radical da sociedade onde está inserido.
MÍDIA E PODER
ENTREVISTA COM NOAM CHOMSKY
por Regina Zappa (outubro de 2002)
Não faz muito tempo, o New York Times anunciou que o lingüista mais famoso do mundo, Noam Chomsky, era também o mais importante intelectual vivo. Chomsky, crítico feroz da "cumplicidade" entre a mídia e o poder e que chamou jornalistas do NYT de cães de estimação do Imperador, disse que se assustou. Estaria ele entregando os pontos? Não, mais provável é que a grande imprensa americana estivesse, finalmente, reconhecendo a importância do homem que revolucionou a lingüística dos anos 1960, desenvolveu uma ativa militância política e social num país desacostumado a botar tão fundo o dedo na própria ferida, e escreveu mais de 50 livros sobre política interna e externa dos EUA, e a mídia. Este tranqüilo professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology) já foi chamado de anarquista e paranóico. Ele falou ao Idéias em sua sala do MIT, em Cambridge, enfeitada com palavras de ordem em cartazes defendendo a luta palestina, da mulher, do Timor Leste, e contra a fome, a máquina e a discriminação. Em outubro, ele vem ao Brasil para uma série de conferências e para desvendar com a clareza e tranqüilidade de sempre os demônios do poder, do capital e da doutrinação sistemática da sociedade. E mostrar porque o próprio NYT o considerou a mais clara voz da dissenção da história americana.
- Ao olhar para trás, para toda sua trajetória acadêmica e militância política, o sr. se sente satisfeito com o que conseguiu? E o que acredita que conseguiu?
- Muitas coisas aconteceram nos últimos 40 anos que foram alcançadas por muitas pessoas diferentes que trabalharam juntas ou paralelamente de maneiras diferentes, mas muitas vezes interagindo. Acho que o resultado final foi bastante substancial. Os Estados Unidos são hoje um país muito diferente do que eram há 30 anos. Poderia mencionar coisas específicas que foram alcançadas. Mas não sei se estou completamente satisfeito porque tudo que foi obtido foi parcial e ao mesmo tempo houve muita regressão. Muitas coisas estão melhor do que eram, mas não dá para se sentir completamente satisfeito.
- O que está melhor?
- Tomemos o pecado original da sociedade americana, o que aconteceu com a população indígena. Em 1969, o principal estudo sobre história diplomática americana feito por um historiados muito bom, Thomas Bailey, descreve o que aconteceu depois da Revolução americana. Os colonizadores se voltaram para a derrubada de árvores e matança de índios, expandindo suas fronteiras naturais. Hoje, mesmo no país de Jesse Helms, você não sai por aí matando índios e árvores. Em 1969, minha filha estudava numa escola de Lexington, uma cidade de profissionais de classe média. Ela tinha um livro de História na oitava série e de curiosidade fui dar uma olhada para ver como eles lidavam com a questão dos massacres de índios. Para minha surpresa, o livro contava como os colonizadores esperavam os homens saírem e entravam na aldeia, matando mulheres e crianças. É muito positivo que essas coisas sejam contadas assim. Hoje, não há nenhuma região do país onde se possa enganar os alunos a respeito disso. O mesmo é verdade no caso da guerra do Vietnam. Só em 1966 é que começou a haver reuniões contra a guerra. Em 1965, não consegui que professores de Harvard assinassem um documento suave que criticava a guerra.
- Eles tinham medo?
- Não, eles achavam que não tinha problema os EUA atacarem outro país. Quando Kennedy começou a bombardear o Vietnã do Sul não houve protestos. Na realidade, se você perguntasse aos professores de Harvard quando os EUA atacaram o Vietnã do Sul eles não saberiam do que você estava falando. Isto já não acontece. Nos anos 80, quando Reagan tentou fazer o mesmo na América Central, houve reação aqui dentro. Agora, no caso de um conflito com um inimigo mais fraco, não só tínhamos que derrotá-lo, mas tínhamos que fazê-lo rápido e firme porque o governo não encontraria mais apoio popular interno. Portanto, não podemos mais perpetrar longas guerras contra inimigos mais fracos, o que tem sido a base da história americana. Portanto, essa é uma mudança bastante radical em 300 anos de História, desde a década de 60.
- Então a comunidade acadêmica mudou?
- A comunidade acadêmica não mudou muito. O que mudou foi a opinião pública. Por exemplo, em relação à guerra do Vietnã, as opiniões dos setores mais instruídos da população e do público em geral divergiam totalmente. A posição mais crítica desses setores com elevado grau de instrução, por exemplo, em Harvard, é que a guerra foi um erro desastroso que começou a partir de boas intenções. O público em geral não concorda. Pesquisas de opinião feitas entre 1970 e 1990 indicam que cerca de 70% creditam que a guerra não foi um erro, mas uma decisão fundamentalmente errada.
- O sr. fala muito em doutrinação e em como a sociedade está sujeita a isso através de vários meios, inclusive os meios de comunicação. Como explicaria, então, a mudança de opinião do público em geral?
- Doutrinação funciona melhor entre as pessoas mais instruídas. As mudanças ocorreram, na sua maior parte, através do ativismo político. É difícil definir como a cabeça das pessoas muda, mas uma série de questões estavam brotando ao mesmo tempo. Por exemplo, a questão do feminismo. Existe hoje uma atitude totalmente diferente daquela de 30 anos atrás.
- Como se encara o feminismo hoje?
- Hoje já há uma aceitação dos direitos da mulher. A idéia de que o mundo da mulher deve girar em torno do cuidado com a família e das vontades do marido passou a ser vista como uma posição sustentada por extremistas. Na década de 60, esta seria a atitude considerada normal. Uma vez, uma outra filha minha que estava na escola na mesma cidade que mencionei antes resolveu fazer curso de técnicas industriais. Só os garotos podiam fazer e ela achou que isto era errado. Então ela foi chamada pelo orientador que explicou que, se ela fizesse o curso estaria tirando o lugar de um menino que poderia depois estudar engenharia ou mecânica. Aí ela perguntou: e se eu quiser me tornar uma engenheira aeronauta? O orientador não sabia que responder porque isso nunca lhe tinha ocorrido. Hoje isso tudo é muito diferente. Hoje somos um país muito mais civilizado. É isso num espaço de 30 anos.
- Nas décadas de 60 e 70 o sr. nadava contra a corrente. Isso o empurrou para as margens?
- Certamente.
- Apesar disso, o sr. acredita que conseguiu influenciar a sociedade dominante?
- Se você quer dizer os setores articulados da sociedade, talvez não. Mas se você se refere à sociedade em geral, não apenas eu, mas muitos outros conseguiram. Eu passo agora boa parte do meu tempo fazendo conferências para milhares de pessoas. Na década de 60, eu falava para meia dúzia. Não fui eu quem mudou, mas o país. Mas as coisas não mudaram em Harvard Square (onde fica a Universidade de Harvard). Nunca sou convidado para falar na Escola Kennedy de Governo de Harvard. As estações de rádio públicas de Boston e as rádios nacionais públicas, consideradas a mídia liberal, ou criticadas por isso, já disseram que sou o único liberal que Harvard não publica [seus livros], mas, em relação ao público em geral, não dá nem para começar a responder aos convites para fazer palestras.
- Então, com exceção de Harvard...
- Harvard Square é apenas simbólico.
- O sr. acha que há um EUA mais democrático? Existe democracia verdadeira neste país?
- Não. Há uma cultura mais democrática, mas há uma sociedade organizada muito menos democrática. A democracia deteriorou-se substancialmente nos EUA em termos do seu funcionamento e a população está consciente disso. Mais de 80% da população acha que o governo não funciona, que trabalha para uma minoria e para interesses especiais.
- É isso que o sr. quer dizer com "funcionar"?
- Há uma pergunta específica nas pesquisas Gallup que diz: a quem você acha que o governo serve? Uma das respostas é: a interesses especiais, não ao povo. Antes essa resposta representava 50%. Hoje é 80%. Portanto, se o governo trabalha para poucos e para interesses especiais, então não funciona para o povo. E isso é um percentagem bem alta que responde. Eu suspeito que isso esteja ligado ao fato das pessoas não votarem.
- Por que as pessoas ficam tão alienadas? Elas não acreditam em votar para mudar a situação?
- Se elas tiverem alguém em quem votar. Suponhamos que se tenha dois republicanos moderados, ninguém se interessa. Mas há uma diferença entre política pública e opinião pública. Por exemplo, a discussão principal no ano passado era a questão do equilíbrio orçamentário. Só se falava nisso na mídia. Era a manchete de todos os jornais. Até que o governo fechou no ano passado. Mas o público não se interessou. E algum jornal disse que o público se opunha ao equilíbrio do orçamento? Assim que os políticos tiveram que se defrontar com o público a discussão acabou. Enquanto eles falavam para o New York Times, o Wall Street Journal, o Boston Globe, a NPR (National Public Broadcasting, a rádio pública) e os ricos eles podiam dizer que a prioridade máxima era o equilíbrio orçamentário. Mas quando falam para o público, não podem dizer a mesma coisa. Repare o que aconteceu na campanha. Quem foi o primeiro candidato a desaparecer nas primárias no começo do ano? Foi Phil Grant. Sua campanha tinha muitos recursos mas ele era diferente dos outros candidatos: ele era o representante dos republicanos no Congresso. E ele morreu instantaneamente. Há anos vinha-se lendo que estávamos diante de uma avalancha conservadora, uma revolução, e seu único deputado teve morte instantânea. Ele poderia prever isto se lesse as pesquisas de opinião em vez dos jornais.
- O sr. acha que ao mudar o discurso e se voltar para as preocupações verdadeiras das pessoas...
- Ninguém acredita numa palavra. Eles continuam tentando equilibrar o orçamento.
- Então as pessoas não acreditam?
- Não acreditam em nada. A questão é que você não pode entrar numa primária anunciando que vai cortar a verba da saúde ou da educação. Aí eles começam a falar sobre valores. Quando os políticos começam a falar sobre valores você põe a mão no bolso para ter certeza de que a carteira ainda está ali. Mas eles falam sobre valores porque não conseguem pensar em outra coisa para falar. Então eles continuam a trabalhar nisso, no orçamento porque o mundo dos negócios e a comunidade financeira estão interessados, mas a população não. Então é seu papel, se você for um jornalista, de suprimir tudo isso. Essas são coisas muito dramáticas.
- E quanto à diferença entre republicanos e democratas?
- A diferença é se você quer equilibrar o orçamento em sete anos ou sete anos e meio.
- E o público em geral? Votar democrata é mais ideológico?
- Não é ideológico. Se você olhar bem, são questões como personalidade que contam na hora da escolha. Mas não diferenças de política, ou melhor, há pequenas diferenças de políticas, mas são sutis.
- Mas nada que faça grande diferença?
- Não há ninguém que apareça e diga: queremos um programa de criação de empregos e não equilibrar o orçamento. Isso é o que o público quer, mas não é o que o mundo dos negócios quer. E esse é o mundo dos negócios. Mas esse é o tipo de coisa que não se é permitido saber em Harvard Square. O mundo dos negócios quer equilibrar o orçamento. E não é apenas o orçamento, é cada posição. Há duas partes do orçamento, por exemplo, cujos custos estão subindo e não sendo equilibrados. Uma é o Pentágono e a outra é o sistema de segurança, as prisões. Essas duas coisas estão subindo e os chamados conservadores as estão empurrando para cima. O público quer isso? Não. Mas não importa. Newt Gringrich quer e outros também. E eles o querem por uma razão muito boa: eles entendem que o sistema do Pentágono é a técnica pela qual o público financia a indústria de alta tecnologia. Você força o público a financiar a indústria de high tech através dos sistema do Pentágono. Essa é sua principal função. Tome o exemplo da NPR (rádio pública). Na campanha eleitoral de 1994, quando Newt Gringrich era o grande herói e se preparava para ser eleito, os republicanos caíram de pau nos democratas por causa da política de welfare (bem-estar social). Pois bem. Tem um pequeno fato escondido, do qual todo jornalista tinha conhecimento: Gringrich ganha mais benefícios da Previdência em seu distrito que qualquer outro candidato. Seu distrito recebe mais subsídios de welfare que qualquer outro distrito suburbano do país. Ninguém escreveu sobre isso.
- Isso nunca foi publicado?
- Não. Uma vez dei uma palestra na Carolina do Norte na época da eleição. Pouco depois da palestra, perguntaram a um diretor da emissora porque a rádio pública não divulgava isso. Ele simplesmente disse que esse fato não era cutting edge news (notícia quente). E ele sabe que não se expõe o fato, por exemplo, que o sistema do Pentágono é uma forma de transferir os recursos públicos para os ricos.
- O sr. acha que a anunciada revolução republicana morreu na praia?
- Não tinha nada para morrer. Em 1994, os republicanos tinham cerca de 20% do eleitorado. Foi um aumento de 2% comparado a 1992, portanto, uma mudança muito pequena. E essa pequena adesão foi proporcionada quase que toda por estudantes saídos do curso secundário, brancos, começando a trabalhar, que se afastaram do Partido Democrata. Não porque eles adoravam os republicanos, mas porque odiavam os democratas. E tinham uma boa razão para odiá-los: seus salários eram péssimos. É a raiva do homem branco se voltando contra os democratas. E por falar nisso, poucos democratas concorreram à eleição baseados num programa ao estilo New Deal. Esses se deram bem. Os novos democratas, os democratas do Clinton, que eram basicamente republicanos, é que foram esmagados. Mas a mudança foi muito pequena. Nunca houve uma revolução republicana. Outra coisa interessante sobre as primárias é que ninguém falou sobre o Contrato com a América. E por quê? Porque o público odeia isso. Quando a eleição foi realizada, apenas cerca de um quarto do público tinha ouvido falar disso. E quando perguntavam a essas pessoas sobre sua posição, elas diziam ser totalmente contra. É assim que funciona o sistema. Pode-se manter um gap substancial entre opinião pública e política de governo. Desde que você não diga às pessoas qual é a política.
- Mas há muitos jornalistas que têm consciência disso.
- Então eles são mentirosos fantásticos.
- Alguns tentam lutar contra essa tendência.
- Muito poucos.
- Qual o jornal deste país o sr. considera mais confiável?
- Se eu tivesse que ler os jornais de apenas um país leria os jornais deste país (EUA). Não que sejam mais confiáveis, mas eles apresentam muita informação. O que eu disse antes estava na imprensa de alguma maneira, só que ficou meio escondido. Se você lê o Wall Street Journal, o New York Times, o Boston Globe, o Washington Post, o Christian Science Monitor, você encontra uma quantidade boa de informação confiável. A maior parte apresentada na forma de histórias. A informação está lá mas você tem que saber o que está procurando. E a não ser que tenha o tempo e a energia... Para a maioria das pessoas isso é irrelevante. Elas não têm o tempo, os recursos e o conhecimento.
- Elas apenas querem os fatos?
- Na verdade, elas nem querem os fatos. Não estão interessadas nos jornais. Obtêm sua informação da televisão. Elas não têm tempo para a imprensa. É trabalho demais tentar separar os pedacinhos de verdade de toda a enganação maciça. Mas está lá. Essa é parte da técnica da propaganda.
- E isso é parte do que o sr. costuma chamar de doutrinação?
- É doutrinação quando você está falando dos setores mais instruídos da sociedade, e é mais marginalização quando se trata dos setores da sociedade com menos instrução. Se você olhar o mapa da mídia como um todo, estamos então falando de um setor pequeno, das classes que tomam as decisões, que têm educação universitária. A maior parte do público vê televisão ou se liga na indústria de diversão e o objetivo dessa mídia é marginalizar, transformar essa gente em consumidores passivos.
- E qual é, na sua opinião, a verdadeiraa função da mídia?
- A mídia deveria ser o que todos anunciam no discurso de formatura: o alicerce da sociedade democrática, que desafia a autoridade e oferece ao povo a oportunidade igual de aprender e participar. Tudo bem com o discurso, só que as pessoas que estão discursando não sabem que elas estão mentindo, na pior das hipóteses, ou sabem que estão mentindo, mas acham que esta é a única maneira de funcionar. Se você quer saber o que a mídia deve ser, leia a decisão da Suprema Corte americana quando ela deu permissão ao New York Times para publicar os Documentos do Pentágono [quer revelaram toda a história suja por trás da Guerra do Vietnã ou o artigo de Anthony Lewis [jornalista americano] falando sobre liberdade de imprensa.
- O sr. acha muito difícil desenvolver um pensamento independente?
- Difícil, mas não impossível.
- Mesmo com todo o preparo que uma pessoa pode ter ou é aí mesmo que mora o perigo?
- Uma boa dose de educação e socialização e treinamento para a obediência ajudam. E se você tiver cursado boas escolas, como eu cursei e você também, a sua história foi sendo moldada para a obediência. Para a maioria da população, a educação é uma forma de colocá-la no seu nicho na sociedade e de fazer com que elas não causem problema. De fazer essas pessoas prestarem atenção em outra coisa - esporte, moda, comédias, mas não nos perturbe. Por exemplo, o fenômeno Bill Gates e seus planos para a Internet. Se as pessoas estiverem sentadas na frente de seus computadores, apertando botões para satisfazer formas artificialmente criativas, você não precisa se preocupar.
- Por falar em Bill Gates, o sr. que é professor aqui no MIT (Massachusetts Institute of Technology) e que caminha por esses corredores respirando tecnologia, como vê a chamada revolução tecnológica deste fim de século? Trata-se de um mal, um bem, tem os dois componentes? Vai privilegiar aqueles que têm mais acesso à informação?
- É como qualquer outro tipo de tecnologia.
- Mas desta vez é chamada de revolução.
- Certamente tem grandes efeitos. Como a revolução das telecomunicações, que foi bem real e que levou a essa enorme explosão do capital financeiro que está, entre outras coisas, minando as opções democráticas. Atualmente há cerca de 1 trilhão de dólares girando por dia, sendo a maior parte de capital especulativo passeando pelos mercados financeiros, procurando as menores taxas internacionais e os menores salários e isso tem um tremendo efeito social. Nos Estados Unidos também. No governo Reagan, o Banco Central (Federal Reserve Board) estimou que cerca de metade do declínio na taxa de crescimento do país foi atribuído à especulação. Esse foi o efeito significativo da revolução das telecomunicações. Está fazendo este país se parecer mais com o Brasil: um pequeno setor de pessoas extremamente ricas e um setor enorme de pessoas sofrendo miséria. Criou-se um abismo maior. Esse é o maior efeito da revolução das telecomunicações, apenas através dos mercados financeiros. É claro que isso não foi a única coisa que causou essa situação. Foi preciso também desregulamentar o mercado, como Nixon fez. Mas este foi um efeito gigantesco. Isto não é inerente às telecomunicações, mas é provocado pela maneira como funcionam as telecomunicações sob condições de poder específicas. Sob outras condições de poder, a mesma tecnologia poderia ter uma abordagem mais libertadora. A tecnologia em si não traz um rótulo dizendo que 'vou ajudar'ou 'vou causar danos'. Depende das condições sociais sob as quais ela é usada. A tecnologia da impressão poderia libertar as pessoas ou aprisioná-las. A automação pode ser usada para eliminar gerentes, ou para colocar a produção sob controle dos trabalhadores mais especializados. No segundo caso, eles passam a ter maior controle administrativo, o que é um aperfeiçoamento do poder e não uma distorção.
- É muito comum dizer hoje que a Internet é um meio de informação intrinsicamente democrático. O sr. concorda?
- Um por cento da população mundial tem acesso à Internet. Mesmo nos países ricos, são as pessoas relativamente privilegiadas que têm acesso ou pessoas ligadas a instituições. Mas quantas pessoas podem? Agora, quando você olha a Internet é difícil dizer. A Internet em si tem todas as possibilidades. Pode ser usada para atolar engolir? (swamp) as pessoas com propaganda, criando necessidades artificiais, anúncios. Uma sociedade que gasta um trilhão de dólares todo ano só com marketing...Isso é basicamente enganação e manipulação. Um trilhão não é uma pouca coisa. E cerca de 7% do GDP (PIB). E com a Internet disponível, uma grande parte disso vai passar para esse veículo. Esse tipo de coisa vem acontecendo desde o inicio da Revolução Industrial, mas tem aumentado recentemente. Você quer controlar as pessoas e fazer com que elas acreditem que precisam de uma coisa que elas se matam para conseguir ou gastam todo seu tempo perseguindo aquele objetivo. Essa é uma maneira fantástica de controle. A Internet pode ser usada para isso. E pode ser usada para fornecer informação. Mas depende de quem esta manipulando.
- Depende então de quem está fornecendo a informação?
- É de quem tem acesso. Como toda tecnologia moderna, ela foi patrocinada pelo governo, mas agora que está desenvolvida, ela foi entregue ao lucro privado.
- E essa palavra moderna para relações internacionais que é globalização? O que o sr. pensa da doutrina que prega a abertura dos mercados, da economia...
- Sim, exceto a sua própria. Você nunca abre a sua própria economia. Você prega isso para os outros.
- Mas, por causa disso, não se fala mais em desenvolvimento. A palavra parece que saiu de moda.
- Quem não fala? O Consenso de Washington não fala. Mas a ONU fala. Ela está pressionando para que seja realizada uma convenção internacional sobre o direito ao desenvolvimento que tem sido vetada pelos Estados Unidos. Não se fala no assunto em Harvard Square, mas quando se sai desse tipo de lugar, se fala nisso o tempo todo. No Brasil, as elites não falam nisso porque é a mesma coisa que Harvard Square, mas vá ao interior do país que você verá sobre o que se fala. Se você for à Índia é a mesma coisa. As pessoas ricas ficam falando sobre as maravilhas do neoliberalismo. Mas vê que o assunto é totalmente outro. Eles falam sobre desenvolvimento. Portanto, depende da pessoa com quem você está falando.
- Bem, as pessoas que influenciam ou que elaboram a política.
- Claro. Eles estão numa posição de poder, tomando as decisões, justamente porque eles servem ao poder ou têm poder. Eles falam sobre essas coisas, mas isso não é o que todas as pessoas pensam. Mesmo na ONU, a convenção sobre o direito ao desenvolvimento é muito falada. É por isso que os Estados Unidos vetaram. A idéia da convenção chegou à ONU e foi votada, mas os EUA vetaram. Os EUA não assinam a maioria das convenções, mas desta vez eles a bloquearam.
- Mas a tendência na maioria dos países é abrir a economia e seguir os passos da globalização.
- Isso é muito bom para os grupos de liderança. Por exemplo, pega o México. Ele era a menina dos olhos das instituições financeiras internacionais. Era um grande sucesso, um milagre econômico total, funcionava perfeitamente para quem deveria funcionar. Para a população foi uma catástrofe. Foi ótimo para os que desenharam o experimento, foi muito bom para investidores estrangeiros, para bilionários. Então foi um grande sucesso para as pessoas que idealizaram o projeto. Agora, eles têm que admitir que foi, na verdade, uma catástrofe por causa do colapso do sistema. Se voltarmos na História, toda experiência que observei, começando em 1793, quando os britânicos impuseram sua colonização permanente na Índia, que ia ser uma grande experiência em engenharia social. Foi um desastre para o povo, mas um sucesso para o investidor britânico. É assim que as experiências normalmente acabam: muito bem para os idealizadores e uma tragédia para a população que está testando o projeto.
- E o Brasil?
- O Brasil é do mesmo jeito. O Brasil foi tomado pelos EUA em 1945 e foi uma das áreas de testes de métodos científicos de desenvolvimento do capitalismo americano. Os técnicos americanos tomaram grandes decisões e se orgulharam muito do seu projeto. Eles se orgulhavam inclusive de imporem uma ditadura neonazista. Esse teria sido um passo maior para se chegar à liberdade em meados do século XX, segundo disse o embaixador de Kennedy, em 1964. O Brasil era o queridinho latino-americano da comunidade empresarial. Até 1989, continuava a ser tratado como um sucesso fantástico para o capitalismo americano. De repente, essa história desabou.
- Começou a desabar pouco antes de 64.
- Sim, começava a tomar outro rumo, mas aí veio a ditadura militar e voltou a ser o queridinho. E permaneceu assim até 1989, quando veio a explosão da bolha econômica (economic flap).
- Aí perdeu-se o interesse?
- É, porque os mesmos métodos que todos louvavam como capitalismo americano, de repente viraram socialismo de Estado. Não deu mais certo. Mas isso é apenas rotina. Enquanto isso, muita gente lucrou. Os ricos no Brasil estão muito bem, estão entre os mais ricos do mundo, os investidores estrangeiros estão muito bem e, enquanto isso, a população está passando fome. O Brasil tem estatísticas de qualidade de vida comparáveis às da Albânia. Poderia ser um dos países mais ricos do mundo. Acho que em má distribuição de renda é batido apenas pela Guatemala. Mas a América Latina, de uma maneira geral, é a pior região do mundo. Está repleta de milagres econômicos e experimentos que sempre funcionaram muito bem. O neoliberalismo, por exemplo, que de novo não tem nada. Estes são exatamente os mesmos métodos com os quais a Grã-Bretanha desendustrializou a India e se enriqueceu. Com algumas adaptações, essa política terá o mesmo efeito: a intenção é essa e é isso que ela vai fazer. Enquanto isso, os países ricos ficam mais ricos. Como digo, Newt Gingrich se assegura sempre de receber bastante welfare dos EUA para seu eleitorado rico. Os EUA se encaminharam para abrir seu mercado e reduzir as tarifas em 1945, pela mesma razão que os britânicos o fizeram em 1845. Mas os britânicos o fizeram apenas depois de 150 anos de protecionismo, quando eles já estavam tão à frente de todo mundo que supuseram já ser seguro abrir a economia. Mesmo então, eles exportavam 40% de seus produtos para as colônias. Por volta de 1945, os EUA já eram quase totalmente dominantes e achavam que abrir o mercado poderia ser vantajoso, então se sentiram perfeitamente à vontade para reduzir as tarifas.
- Por que era vantajoso?
- Em toda sua história, os EUA sempre foram, extremamente protecionistas. Mas em 1945, parecia uma boa jogada diminuir as tarifas. Ao mesmo tempo, eles trataram de debilitar radicalmente o mercado livre ao instituir o sistema do Pentágono, que é simplesmente um sistema que joga as verbas do Estado na indústria de alta tecnologia. E isso é uma violação radical do mercado livre. Então, tá. Nós vamos reduzir as tarifas porque esse jogo nós já ganhamos. E enquanto isso, vamos garantir que o público continue a financiar vários setores da indústria, porque não queremos mercados livres. Bem, por volta da década de 70, os EUA já não estavam indo tão bem no comércio, então o que aconteceu? Reagan dobrou as tarifas. O governo Reagan foi mais protecionista que todos os outros governos do pós-guerra juntos. Mas para os outros, continuava a retórica do mercado livre. Não para nós. Eles também aumentaram o setor estatal da economia.
- Diante desse panorama, que deveria um país como o Brasil fazer?
- O Brasil é um país grande, tem muitas opções. A primeira coisa que o Brasil tem que fazer é controlar seus ricos. Uma das diferenças entre os países em desenvolvimento do Leste asiático e os países da América Latina, é que qualquer estágio das classes ricas está bastante sob controle. O Estado é forte o suficiente não só para controlar o trabalho, mas também o capital. Assim você não tem o capital voando para Formosa ou para a Coréia do Sul. Na verdade, o Japão nem mesmo permitiu a fuga de capitais até que sua economia estivesse bem forte. Na América Latina, existe uma fuga de capitais imensa, que chega perto do volume da dívida externa. Grande parte dessa dívida poderia ser paga com esse fluxo de capitais. Outra coisa que não há no Leste asiático e que há na América Latina é um enorme déficit comercial de importações de produtos supérfluos. Na América Latina há uma enorme importação de supérfluos por causa da profunda divisão das sociedades e os ricos importam produtos como Mercedes Benz. No Leste asiático isto não acontece. Lá existe uma sociedade muito mais igualitária, onde as importações são controladas com muito mais cuidado para suprir as necessidades dos países. Só esses dois fatos já fazem uma grande diferença. Significa que os asiáticos não têm uma dívida nem um déficit avassaladores. E há outras coisas. Como outros países, eles protegeram seus mercados, mas o fizeram com eficiência. O fizeram de forma a criar a base para a promoção das exportações. A América Latina é muito mais aberta aos mercados internacionais e muitos dos problemas são conseqüência desse fato. Por razões históricas e outras, o Leste Asiático não é. Esses são países, sobretudo Coréia do Sul e Formosa, que foram colônias japonesas. Os japoneses tratavam suas colônias de forma muito diferente da Europa. Eles eram brutais, mas desenvolviam suas economias. Então, essas colônias se desenvolveram tão rapidamente quanto o Japão, ou até mais rápido. O que certamente não é verdadeiro em relação aos EUA com as Filipinas, ou a Grã-Bretanha com a Índia, ou a Holanda com a Indonésia. Eles arruinaram suas economias. O Haiti era um dos países mais ricos do mundo antes dos europeus chegarem lá. O Japão desenvolveu suas colônias e criou bases para o desenvolvimento social. É claro que há todo tipo de diferenças específicas, mas elas mostram que tipo de coisas países ricos como o Brasil podem fazer.
- Agora mudando radicalmente de assunto. Porque a esquerda nunca foi uma força poderosa nos Estados Unidos?
- Os EUA são um país bem interessante. Especialmente para uma sociedade guiada pelo business. Os EUA foram uma sociedade criada, que não cresceu de alguma coisa que já estava organicamente ali. Então, até certo ponto era uma tábula rasa. A população indígena foi dizimada, os colonos chegaram. Não havia instituições tradicionais, então prevaleceu o sistema feudal, com a Igreja, etc...E foi o único país que foi desenhado de uma forma específica. A Constituição foi moldada para ser de uma determinada forma. E foi tudo armado para ficar essencialmente sob controle do processo de business. Aí as coisas se desenvolveram. Os EUA têm uma história de sindicalismo muito violenta. Nunca desenvolveu o contrato social que os países europeus têm, que, até certo ponto, saiu de certas instituições tradicionais que os Estados Unidos não tinham. Aqui existia a ideologia capitalista e ela dizia que ninguém tem direitos humanos, você só tem o direito de entrar no mercado de trabalho. A Europa nunca instituiu isso por causa de toda uma série de coisas complicadas. Aqui, o trabalho foi brutalmente reprimido. Centenas de trabalhadores estavam sendo mortos nos EUA no começo do século. Os trabalhadores americanos só tiveram direito de se organizar em 1935. Esses direitos há muito existiam na Europa. Aqui era uma sociedade muito rica, então era fácil convencer as pessoas a desistir dos direitos em troca de bens. Na década de 20, os trabalhadores americanos não tinham nem uma fração dos direitos dos trabalhadores europeus, mas tinham muito mais bens. É um país muito livre, mas extremamente opressivo.
- O que aconteceu com o movimento sindical?
- Logo depois do primeiro movimento de organização de direitos de 1935, começou uma enorme propaganda do business, que foi interrompida durante a guerra e retomada logo depois, que incluía a indústria de relações públicas, de diversão, televisão, mídia, etc.. Elas tinham basicamente dois papéis: um era retratar o sindicalismo como sendo um demônio e o outro botar as pessoas contra o governo federal. Porque o governo federal é a única força suficientemente forte para enfrentar os interesses das corporações, que querem eliminar tudo e repassar tudo para os estados, onde pode haver controle. E isso envolve uma imensa propaganda. Que você vê em todo lugar, da mídia da elite até os seriados de crimes na TV. Na TV, se você tem um seriado com um agente do FBI e um policial local, o sujeito do FBI vai ser o mau e o policial vai ser o bom. Tudo é muito bem planejado: destruir os sindicatos e destruir qualquer idéia de que o governo pode ser um instrumento que as pessoas podem usar em seu próprio benefício. Ele tem que ser seu inimigo. O governo e os sindicatos são inimigos. As corporações não existem - são só aqueles sujeitos bonzinhos que estão aí para ajudar.
- E os sindicatos?
- Não acho que os sindicatos, os líderes sindicais, possam se eximir de responsabilidade. Eles compraram essa idéia e fizeram mais ou menos um acordo: vocês dão aos nossos trabalhadores salários decentes e nós aceitamos seu sistema. Eles tem uma horrível reputação internacional por enfraquecer o movimento sindical em todo mundo, incluindo o Brasil. Depois da guerra, o sindicalismo americano foi fundamental no enfraquecimento do movimento sindical na Itália e na restauração do fascismo. E fizeram o mesmo em todo lugar. Horrível. Aliás, o movimento sindical americano nada tem a ver com os trabalhadores. O AFL-CIO, o setor do sindicalismo que fez isso tudo, é uma instituição que funciona totalmente com verbas do governo dos EUA. Estava sabotando sindicatos na América Central - esse é o seu trabalho. Tudo isso faz parte do cenário e está preso a uma moldura que tem a ver com ideologia. Então sim, eles tem uma grande responsabilidade sobre os rumos do movimento e estão pagando por isso. O governo Reagan, por exemplo, informou à comunidade de business que não iria seguir as leis e deixou claro para as corporações que elas podiam demitir trabalhadores e não precisavam cumprir as leis. Essa é uma sociedade dirigida pelo business e boa parte do business são instituições totalitárias.
- Outra vez, mudando de assunto. O sr. acha que a Ação Afirmativa acaba aprofundando as divergências entre as raças. Será essa discriminação positiva um paliativo ou uma política necessária? O fato de grupos preservarem suas culturas dividem a sociedade em compartimentos?
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