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quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O fim da era pós-Guerra Fria

por M. K. Bhadrakumar [*]

O dia em que a China mostrava a sua potência e estabelecia novas fronteiras para a celebração global, com cerca de 80 líderes mundiais a assistirem a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Verão da China, deveria ter sido a notícia principal de sexta-feira. Mas os acontecimentos no Cáucaso determinaram que isso não se verificasse.

A morte de milhares de pessoas da separada região georgiana da Ossétia do Sul acabou por ser um momento memorável nas relações da Rússia pós soviética com o ocidente. O ataque georgiano de sexta-feira à Ossétia do Sul foi concebido como uma provocação. O ataque matou 13 soldados russos, feriu 150 e ceifou a vida de 2000 civis, a maior parte cidadãos russos. A capital da Ossétia do Sul, Tskhinvali, foi totalmente arrasada. Mais de 30 mil refugiados cruzaram a fronteira russa.


A crise no Cáucaso do Sul havia estado a construir-se vagarosamente desde que o Kosovo, província em ruptura da Sérvia, declarou independência em Fevereiro. Em Agosto, 45 países haviam sido persuadidos pelos Estados Unidos a conceder reconhecimento ao Kosovo, incluindo as maiores potências europeias: França, Alemanha e Grã-Bretanha. Esperava-se que a Rússia retaliasse com a promoção do secessionismo na Geórgia e na Moldova, mas, ao contrário das expectativas, a Rússia adoptou uma política perspicaz de mobiizar a opinião pública mundial contra o separatismo político.

Tacticamente, satisfazia Moscovo que a Geórgia abrigasse a esperança de que, com a "boa vontade" russa, pudesse ser concluído um entendimento com as suas províncias em ruptura. Por outras palavras, Moscovo esperava trabalhar no plano diplomático conseguindo que a Geórgia correspondesse à "boa vontade" russa e ao seu espírito de acomodação. Colocado de forma simples, Moscovo esperava que em compensação Tíflis seria sensível aos interesses da Rússia no Cáucaso.

Sempre existiu dentro do Kremlin o corpo de opinião significativo de que a Geórgia nunca esteve irrevogavelmente perdida para os EUA a seguir à "revolução colorida" de Novembro de 2003, e que com paciência e tacto e um jogo criterioso dos factores da história, da cultura e dos laços económicos, Tíflis podia ser levada a apreciar que relações amistosas com Moscovo eram vantajosas a longo prazo. Na verdade, também existia em Tíflis a tendência de opinião semelhante – embora de uma forma muda – de que o futuro da Geórgia não pode ser antagónico em relação à Rússia e que uma correcção de rota pelo regime do presidente Mikheil Saakashvili era adequada.

Quando uma crise económica e a ilegalidade aumentavam na Geórgia, no passado recente, a diplomacia russa começou a mudar as marchas em Tíflis, encorajando os elementos que apoiavam melhores relações com Moscovo. Até um certo ponto, Moscovo estava correcta em fazer isso. Mas ela deixou de ver que da perspectiva de Saakashvili, quando o seu regime autoritário se tornava cada vez mais impopular e o entulho da má governação, corrupção e venalidade começou a acumular-se, valia a pena incitar à xenofobia. A Rússia era o alvo melhor, pois nada inflama mais as paixões georgianas do que a questão da integridade do país.

Eis porque Moscovo protestou quando se começou a saber que, com encorajamento dos Estados Unidos, Tíflis estava a embarcar num plano para aumentar dramaticamente o seu orçamento militar em 30 vezes. Este movimento georgiano verificou-se em conjunto com a crescente assistência dos EUA no treino do exército georgiano. Moscovo começou a perguntar a questão pertinente de com quem Tíflis encarava entrar em guerra.


Moscovo propôs então um acordo comprometendo todos os protagonistas a não utilizarem a força para dirimirem as suas diferenças. Mas Tíflis não aceitou tal acordo. Nem tão pouco Washington convenceu Tíflis a aceitar um acordo deste tipo. Não só isso: Washington fechou os olhos quando fornecimentos clandestinos de armas começaram a ser entregues em Tíflis. Em Julho, o Departamento da Defesa dos EUA financiou um exercício militar com a Geórgia. Em retrospectiva, o ponto de viragem deu-se quando a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice, visitou Tíflis no mês passado.

Saakashvili buscou inspiração nas declarações de Rice que endossavam o pedido da Geórgia de ser tornar membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) e de apoio aberto à posição da Geórgia no seu impasse com a Rússia. É um ponto discutível se Saakashvili retirou unilateralmente conclusões do gesto diplomático de Rice ou se um entendimento tácito Washington-Tíflis teve lugar.

De qualquer modo, Saakashvili soltou os cães da guerra um mês após a visita de Rice a Tíflis. E ele actuou com um cronograma imaculado – quando o presidente russo Dmitry Medvedev estava em férias de Verão e o primeiro-ministro Vladimir Putin havia deixado Moscovo para comparecer à cerimónia de abertura das Olimpíadas. No cômputo geral, é inconcebível que Washington estivesse às escuras acerca de como a cabeça de Saakashvili estava a funcionar.

Ficamos com uma sensação de estar numa máquina do tempo, de volta à Guerra Fria. Os mestres conspiradores em Washington agora observarão intensamente como a liderança de Medvedev no Kremlin manuseia a crise. Eles procurarão por pistas para saber se tem o punho de ferro e os nervos de aço de Putin. Quando Putin tomou posse em 2000, um teste semelhante aguardava-o na Chechenia. Ele começou a fazer o que a Rússia tinha de fazer. Mas os tempos haviam mudado. Ventos gélidos haviam começado a soprar nas relações Leste-Oeste.


Na verdade, subsiste a questão: o que são as opções da Rússia? Uma enorme catástrofe humanitária precisa ser evitada quando muitos milhares de civis ossetianos jazem enterrados nas ruínas deixadas pela ofensiva em grande escala da Geórgia, apoiada por tanques, aviões de combate, artilharia pesada e infantaria. Enquanto isso, a Rússia deve actuar com uma mão amarrada atrás das costas. A propaganda ocidental está ansiosa por avançar.

O think tank Stratfor, que muitas vezes reflecte a comunidade americana de inteligência, já descreveu isto como a chegada do "momento de definição" na era pós Guerra Fria e que o mundo está a testemunhar "a primeira grande intervenção russa desde a queda da União Soviética [em 1991]". O Stratfor considerou que as antigas repúblicas soviéticas que fazem fronteira com a Rússia estariam agora "terrificadas quanto ao que enfrentam no longo prazo".

Tíflis também comutou para a retórica. O presidente georgiano, educado nos EUA, disse: "Isto não é mais acerca da Geórgia. É acerca da América, dos seus valores". Lá longe, em Pequim, o presidente George W. Bush concordou imediatamente.

Bush disse estar "profundamente preocupado" e que a intervenção russa é uma "escalada perigosa" ... perigando a paz regional". E acrescentou: "Apelamos a um fim nos bombardeamentos russos, e a um retorno das partes ao status quo de 6 de Agosto".

Mas ao estalar a violência, a Rússia tentou fazer com que o Conselho de Segurança das Nações Unidas emitisse uma declaração apelando à Geórgia e à Ossétia do Sul para deporem armas. Contudo, Washington desinteressou-se. Como disse o embaixador russo nas Nações Unidas, Vitaly Churkin, havia uma "ausência de vontade política" dentro do Conselho de Segurança. Parece que Washington esperava que pudesse ser trabalhada uma permuta (quid pro quo) também com uma nova resolução do Conselho de Segurança a impor sanções mais duras ao Irão, a qual os EUA tinham estado a pressionar, e a Rússia até então a resistir.

O que é o plano de jogo dos EUA? Para começar, Saakashvili é um rebento da "revolução colorida" na Geórgia, a qual foi financiada, encenada e administrada pelos EUA em 2003. A Geórgia e o Cáucaso do Sul constituem uma região criticamente importante para os EUA uma vez que assenta uma movimentada rota de transporte para energia – como o Oceano Índico ou o Golfo Pérsico. Ela pode ser utilizada como um ponto de obstrução (choke point). Dito simplesmente, mantê-la sob controle como uma esfera de influência é altamente vantajoso para atingir os interesses geopolíticos dos EUA na região euroasiática. Uma reversão da influência russa torna-se portanto um objectivo desejável.

A geopolítica da energia está no núcleo do conflito no Cáucaso. Os EUA sofreram uma série de grandes reveses nos últimos dois anos no grande jogo da energia do Cáspio. O êxito de Moscovo em conseguir que o Turquemenistão comprometesse virtualmente toda a sua produção de gás para exportação junto ao gigante Gazprom foi uma pancada estonteante para a diplomacia americana da energia. Analogamente, os EUA fracassaram em conseguir que o Casaquistão jogasse fora os seus estreitos laços com a Rússia, especialmente o acordo para encaminhar suas exportações de petróleo primariamente através de oleodutos russos.

. Em consequência, há incertezas acerca da viabilidade do muito falado projecto de oleoduto Baku-Tíflis-Ceyhan, o qual foi contratado em 2005 com financiamento e apoio político aberto dos EUA. Analogamente, o projecto South Stream da Rússia destinado a transportar gás russo e do Cáspio para os Balcãs e os países ao Sul da Europa e o fracasso do projecto do gasoduto Nabucco patrocinado pelos EUA (o qual em termos gerais tem a mesma orientação do South Stream) surgiram como derrotas para Washington.

Em termos geopolíticos, um ponto explosivo no Cáucaso nessa conjuntura satisfaz Washington. Uma furiosa barragem de propaganda contra a Rússia já começou. Ela já está num tom estridente. Declarações estado-unidenses virtualmente ignoraram a carnificina georgiana na Ossétia do Sul e o ataque às forças russas de manutenção da paz. O foco é sobre a resposta russa à provocação georgiana. Começou uma tentativa de retratar a Rússia como o agressor. Washington está a cultivar cuidadosamente nas capitais ocidentais a opinião de que Moscovo está a "intimidar" Tíflis.

Esta propaganda é destinada a fortalecer a argumentação de Washington para introduzir a Geórgia na NATO. Na cimeira da NATO em Abril, ficou evidente que apesar das suas fortes tentativas durante meses, Washington precisava ultrapassar a resistência interna da NATO quanto à incorporação da Geórgia, especialmente da Alemanha, França e Itália. Os países europeus cuidam-se de provocar Moscovo e criar novas barreiras Leste-Oeste, especialmente num momento em que os imperativos de segurança energética estão nas cabeças de toda a gente.

Foi portanto trabalhada uma fórmula de compromisso na cimeira na Roménia no sentido de que os ministros de Negócios Estrangeiros da NATO na sua reunião de Dezembro revisitarão a questão do pedido de adesão da Geórgia. Rice tornou claro na Roménia que os EUA não estavam em vias de desistir e afastar-se, mas que insistiriam na questão. Agora, a reunião de Dezembro também será o último grande evento da NATO na era Bush. A Geórgia tem sido um projecto acarinhado da administração Bush, e a sua admissão na NATO seria uma herança requintada da era Bush. A guerra no Cáucaso nesta conjuntura foi conveniente para a administração Bush pressionar a introdução da Geórgia (e da Ucrânia) na NATO.

O ingresso da Geórgia na NATO tem implicações estratégicas de extremo alcance. Com introdução da Geórgia, a NATO transpõe a região do Mar Negro e aproxima-se da Ásia. Isto constitui um grande salto em frente para a aliança, a qual até recentemente nem mesmo estava certa – ostensivamente, pelo menos – do seu destino pós Guerra Fria no século XXI.

O ingresso da Geórgia na NATO assegura que o arco de envolvimento da Rússia pelos EUA é fortalecido. Ligações à NATO facilitam a instalação do sistema de defesa de mísseis estado-unidense na Geógia. Os EUA pretendem ter uma cadeia de países amarrados a "parcerias" com a NATO para servir o seu sistema de defesa de mísseis – estendendo-se desde os seus aliados no Báltico e na Europa Central, Turquia, Geórgia, Israel, Índia e indo até à Ásia-Pacífico.

Na perspectiva de Washington, não há nada como conseguir que a Rússia se atole no Cáucaso se isto sapa a capacidade da Rússia de desempenhar um papel efectivo no cenário mundial. Isto tudo é tão evidente que Moscovo temia uma guerra total a irromper no Cáucaso e estava desesperadamente ansiosa por evitá-la.

Moscovo é fundamentalmente adversa a qualquer confrontação com o ocidente. Sua política externa dá prioridade principal à integração da Rússia com a Europa. Mas a melhor esperança de Washington é que com algum grau de "isco para urso", em algum momento Moscovo perderá a paciência e atacará, mesmo que isso possa afectar a imagem da Rússia na Europa.

Na verdade, se Moscovo se concordar com o antigo pedido da Ossétia do Sul para se tornar parte da Federação Russa, isto será transformado em ração para a crítica ocidental de que um Kremlin "revanchista" anexa territórios. Mas se Moscovo permanecer passiva, o Cáucaso poderia tornar-se a "ferida sangrenta" da Rússia e o prestígio de Moscovo no espaço pós-soviético diminuiria.

Em suma, isto camufla a lógica de que Saakashvili actuou impulsivamente. Os georgianos têm uma reputação de serem coléricos, mas ele também é um jurista – treinado nos EUA. Não é possível que ele seja tão ingénuo acerca dos factos da vida e da certeza de que ficaria com o nariz sangrento se tentasse enfrentar o exército russo.

O que são os factos? De acordo com a Jane's, a Geórgia tem 26.900 militares contra 641 mil da Rússia; 82 tanques de batalha contra 6.717; 139 veículos blindados para transporte contra 6.388; e sete aviões de combate contra 1.206. Mais: há indicações de que na segunda-feira a Geórgia retomou o bombardeamento de Tshhinvali e de posições russas na região, matando mais três russos da força de manutenção da paz. As perdas militares russas elevaram-se agora a 18 mortos, 14 desaparecidos e mais de 50 feridos.

No domingo aviões militares dos EUA transportaram 800 tropas georgianas que serviam no Iraque, juntamente com "cerca de 11 toneladas de carga, de volta à Geórgia". A visão convencional levar-nos-ia a acreditar que os EUA mal podem permitir-se um "abandono" georgiano do Iraque. O contingente de 2000 georgianos estava envolvido na tarefa sensível de impedir que milicianos xiitas contrabandeassem armas através da fronteira iraniana. Como disse um académico americano, "Uma ponte aérea americana de 2000 tropas georgianas para combater tropas russas nesta conjuntura não parece amistosa para com Moscovo".

A questão é que a administração Bush não se pode permitir fracassar nesta aventura caucasiana. Ela será vista como tendo sangue desnecessário nas suas mãos a menos que a diplomacia dos EUA tenha êxito em mudar as coisas a seu favor e levar o assunto à sua conclusão fria e lógica – a introdução da Geórgia na NATO.

Washington tem escassos quatro meses para alcançar este objectivo. Mas não é uma exigência absurda. Se a administração Bush tiver êxito, uma página da história será escrita. Poderemos conclusivamente dizer adeus à era pós Guerra Fria. As relações da Rússia com a Europa e os EUA nunca poderão ser as mesmas outra vez. Foi derramado sangue, afinal de contas. A significância das Olimpíadas de Pequim, em comparação, empalidece.

[*] Diplomata de carreira do Indian Foreign Service. Suas missões incluíram a União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão, Kuwait e Turquia.

O original encontra-se em a Times Central Ásia


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