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segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Jogos Olímpicos: a mistificação do herói esportivo

A submissão corporal ao controle científico passa a ser a marca do esporte moderno


Para se atingir um corpo funcional, deve-se dedicar a incontáveis repetições do mesmo gesto, suportar a dor e o cansaço, elementos próprios do treinamento esportivo, e tal dedicação revela traços de masoquismo. Mas, o culto ao domínio do próprio corpo, às custas de seu embrutecimento, pode ser a expressão da dificuldade de se suportar o corpo flexível, o corpo descoordenado, o corpo deficiente, não disciplinado, que porta algum traço de fragilidade. O culto desmedido à força física e ao ídolo esportivo parece revelar a sua contra face, o recalque do corpo frágil, cujo conteúdo reaparece nas ações violentas contra os fracos, no preconceito contra os deficientes, expressões do sadismo presente na formação cultural.


A submissão corporal ao controle científico passa a ser a marca do esporte moderno

18/08/2008


Ricardo Casco

O alarido ensurdecedor da massa inebriada pela pirotecnia cuidadosamente planejada, os desfiles glamurosos de ícones esportivos renomados - que tiveram lugar na abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim -, seguidos por olhos atentos de bilhões de telespectadores espalhados pelo planeta, não deixam pairar qualquer dúvida sobre o impacto que tem o evento olímpico sobre a vida cotidiana contemporânea.

Os momentos fugazes de entorpecimento coletivo, proporcionado ao custo de bilhões de dólares, têm, ao menos, três objetivos claros: operar a dissimulação da barbárie cotidiana que assola a vida do homem comum que habita as cidades e os campos dos mais diversos países; aumentar o lucro de poderosas empresas transnacionais, responsáveis pelas grandes transformações urbanas de cidades das nações organizadoras e pela produção dos bens de consumo identificados com o ideário esportivo; desviar a atenção de grande parcela da população das atrocidades cometidas contra a liberdade e a dignidade humana, tais como as restrições ao acesso à informação ou o exercício da repressão contra movimentos de oposição política. Nesse sentido, as Olimpíadas de Pequim são análogas a outros eventos esportivos de massa, como as Olimpíadas de 1936, que tiveram lugar em Berlim durante a ascensão nazista; as Olimpíadas de 1968 e a Copa do Mundo de futebol de 1970 (ambas no México) e de 1978, na Argentina, todas elas ocorridas em meio às atrocidades promovidas pelas ditaduras militares; e as Olimpíadas de Moscou de 1980, que se deram em meio ao envio para o cárcere de políticos oposicionistas ao regime totalitário. As associações entre o movimento esportivo contemporâneo, a dominação social e os movimentos nacionalistas saltam aos olhos.

Educação física

Para se compreender o desenvolvimento do ideário esportivo moderno e seus significados, é interessante remontar os seus primórdios. As Olimpíadas de Estocolmo de 1912, as primeiras a utilizar a cronometragem eletrônica - considerada, portanto, um marco tecnológico na história dos Jogos -, foi fruto de um processo que teve início em 1888. Nesse ano, Pierre de Coubertin preside o Comitê para a preparação dos exercícios físicos na educação, tendo como objetivo o desenvolvimento do esporte escolar francês e a organização de competições esportivas. Esse comitê tornar-se-ia, em 1889, a Union Sportive Française de Sports Athlétiques (USFSA) [União Esportiva Francesa de Esportes Atléticos], que formularia os programas escolares, tornando-se o embrião de uma reforma pedagógica que integraria a Educação Física e o esporte no ensino escolar. Para Coubertin, o desenvolvimento do esporte seria a contribuição que a burguesia ofereceria à formação de um operariado mais sadio, para que enfrentasse os problemas ocasionados pelo desenvolvimento urbano e industrial. Coubertin objetivava não apenas a formação de operários mais robustos, saudáveis e resistentes, visando o aumento de produtividade, como também apreciava o desenvolvimento do esporte como fator de estabilidade social.

Educação moral

Ao visitar os EUA, em 1889, ele vê no programa de boxe, oferecido nos bairros mais “problemáticos” (visando a diminuição da violência), a comprovação da tese do esporte como fator de estabilidade da ordem social. Em 1894 - em meio à ascensão do movimento operário internacional -, o comitê geral da USFSA decide restabelecer os Jogos Olímpicos, sob a influência dos pilares propostos por Coubertin: o esporte auxiliaria a educação moral da juventude, preparando-a para a vida. Além de corresponder à educação moral e à saúde corporal, o esporte cumpriria a função de racionalizar a imaginação da juventude, preparando-a, por meio da educação esportiva, para o cumprimento das expectativas socialmente ordenadas. Considerava, ainda, o esporte um elemento apaziguador dos interesses dispersos e conflituosos entre a juventude burguesa e a juventude proletária, contribuindo para melhorar as relações entre os diferentes extratos sociais, em prol de colaborações mais eficazes. Coubertin almejaria o desenvolvimento de relações sociais no qual o esporte, institucionalizado nos Ginásios Municipais, ocuparia um lugar central, cumprindo a função de pacificar as tensões sociais e propiciar o desenvolvimento de hábitos saudáveis num proletariado bem integrado, não violento e trabalhador. Por meio do esporte, seria possível uma cooperação profissional: o cientista, o homem político, o homem privado, o praticante, o teórico, o sindicalizado e o independente, compartilhariam de uma promiscuidade benfeitora, promotora da compreensão e da paz social, uma célula de emulação e de cooperação que a democracia teria necessidade. Assim, o esporte seria alçado a uma espécie de “cimento social”, cumprindo a tarefa de dissimular as diferenças sociais e de obscurecer os conflitos de classe.

Coubertin, após ter ganho uma medalha de ouro em literatura (os organizadores resolveram inovar nas Olimpíadas de Estocolmo, em 1912, e promoveram uma disputa artística, com provas de literatura, música, pintura e arquitetura), é encarregado pelo então Ministro da Instrução Pública, Albert Sarraut, em 1915, a percorrer os liceus franceses para estimular a formação física e muscular dos alunos como preparação para a longa duração da 1ª Guerra Mundial (1914-1918). No mesmo ano, publicaria “Aux jeunes français, le Décalogue de 1915” [“Aos jovens franceses, o Decálogo de 1915”], no qual incita a juventude para o desenvolvimento pelo esporte e a defesa da civilização francesa. Com o fim da guerra, em 1918, o marechal Lyautey escreve a Coubertin, considerando-o um dos responsáveis pelo triunfo francês devido ao treinamento esportivo da juventude.

Homem-máquina

Entretanto, o desenvolvimento do esporte moderno não parece passível de entendimento sem a compreensão da importância do desenvolvimento científico-tecnológico que constitui uma de suas bases. Os subsídios necessários para se forjar as técnicas de treinamento, que são apropriadas segundo o rendimento que proporcionam ao gesto esportivo, segundo os resultados que oferecem, são frutos desse desenvolvimento. Objetivando a melhoria do rendimento do atleta, o treinamento esportivo reduz a natureza corpórea às metáforas da máquina, os processos vivos aos processos energéticos e econômicos de produção, reduz a criança ao esportista potencial, o movimento é capturado pelo treinamento pedagogizado em detrimento da ludicidade: o corpo é racionalizado, esquadrinhado, domesticado. Por meio da revolução científica e técnica, o corpo entra na era tecnológica, na era do maquinário industrial, torna-se, pois, ele mesmo, o objeto privilegiado dessa revolução. O espírito da técnica corrobora a mudança social no esporte e nos valores da organização social contemporânea. Assim como na vida cotidiana, para o esporte, a racionalidade tecnológica constitui uma de suas bases: a busca do melhor meio para se atingir o melhor resultado, e isso é próprio da técnica e o seu grande objetivo é a formação do campeão.

Poesia corporal da hierarquia

O movimento esportivo, suas instituições esportivas e os eventos de massa por elas organizados, segundo a compreensão de Jean Marie-Brohm, um dos principais teóricos, na França, da Teoria Crítica do Esporte - repousam essencialmente sobre a idéia da hierarquia física consagrada, a formação do campeão esportivo: o esporte é a poesia corporal da hierarquia. O fato de que toda instituição esportiva tenha como fundamento a hierarquia de performances corporais corresponde de maneira análoga à própria sociedade burocrática, estratificada em classes (sociais), organizada segundo a lógica da competitividade e da meritocracia. O modelo esportivo apóia-se numa pirâmide de conquistas corporais que objetivam, em última análise, a descoberta e o desenvolvimento do talento esportivo, aquele que poderá se tornar capaz de performances extraordinárias. A figura do campeão é a referência absoluta que encarna o ideal esportivo, sendo o próprio motor do desenvolvimento da técnica esportiva.

Apoiado sob um sistema objetivo de medidas e treinamentos estandardizados, a figura do campeão define a imagem do corpo em que se operam as identificações da massa. Pierre Laguillaumie - um dos teóricos da Teoria Crítica do Esporte, em sua vertente francesa - destaca que o esporte, como fator de socialização e educação, constitui o mesmo papel que a família e a religião na estruturação das pulsões do ego e sobretudo na estruturação do superego. Brohm já havia problematizado a importância conferida à imagem do corpo para a estruturação das identificações fornecidas pela mass-media. O autor assinala, influenciado pelo crítico alemão Herbert Marcuse, que a sociedade se interioriza, se incrusta nas emoções e movimentos dos indivíduos. Com efeito, é pela modificação da consciência do eu muscular que opera a influência da sociedade sobre o indivíduo. A imagem do corpo forjada segundo a identificação com o campeão esportivo é uma construção social moderna, tendo uma conseqüência política importante: a imbricação estrutural entre o corpo-organismo e o corpo social concebido sobre um modelo.

Dinheiro e recorde

Com o desenvolvimento industrial e a urbanização, o esporte moderno se desenvolveu à medida que avançavam as forças produtivas com a revolução científica e tecnológica. A criação e a expansão de instrumentos tecnológicos, os laboratórios de fisiologia e os aparelhos de medição de tempo (cronômetro), fornecem alguns dos subsídios que favoreceram a expansão do movimento esportivo. Nos laboratórios são forjadas as bases científicas do treinamento esportivo, a padronização dos instrumentos de medição favoreceram a criação de critérios estandardizados e a codificação dos objetivos a serem atingidos em cada modalidade esportiva, independentemente do país no qual é praticado, favorecendo, paulatinamente, a padronização do esporte em escala global: a sua linguagem comum é a busca do recorde, o feito extraordinário. Por meio da criação de critérios objetivos de comparação, o movimento esportivo pode realizar o seu papel político professando a união dos povos. Para Laguillaumie, o recorde é para o esporte o que o dinheiro é para a economia política: o meio de comparação e de troca abstrata. Segundo sua compreensão, o recorde une o esportista amador ao campeão de todos os tempos, dá ao esporte o seu conteúdo objetivo, e o meio para atingi-lo é o treinamento, o uso das técnicas adequadas para o aperfeiçoamento do gesto esportivo. A submissão corporal ao controle científico passa a ser a marca do esporte moderno.

A necessidade de dominar o corpo, treiná-lo, “endurecer” os seus músculos, expressa o medo do homem frente às ameaças representadas pelas forças da natureza hostil. Ameaça anacrônica, pois com o desenvolvimento das forças produtivas e a riqueza material produzida, já seria possível garantir a auto-preservação de todos os indivíduos. Na vida social danificada, o homem, por ser também natureza, deve dominar seu corpo, suas paixões, seus desejos e dos outros. Assim, como o corpo frágil lembra a natureza hostil, não dominada, ele deve ser constantemente rechaçado ou reeducado. O culto ao domínio do corpo e à força física, podem acentuar o desenvolvimento do sadomasoquismo. Para se atingir um corpo funcional, deve-se dedicar a incontáveis repetições do mesmo gesto, suportar a dor e o cansaço, elementos próprios do treinamento esportivo, e tal dedicação revela traços de masoquismo. Mas, o culto ao domínio do próprio corpo, às custas de seu embrutecimento, pode ser a expressão da dificuldade de se suportar o corpo flexível, o corpo descoordenado, o corpo deficiente, não disciplinado, que porta algum traço de fragilidade. O culto desmedido à força física e ao ídolo esportivo parece revelar a sua contra face, o recalque do corpo frágil, cujo conteúdo reaparece nas ações violentas contra os fracos, no preconceito contra os deficientes, expressões do sadismo presente na formação cultural.

O manipulador

O crítico alemão Theodor Adorno destacava, em Educação após “Auschwitz”, a necessidade de se extirpar da formação cultural a promoção da virilidade e da resistência à dor. Para o autor, a educação que promove o culto à virilidade, ao “ser duro”, favorece a indiferença contra a dor em geral. Quem é rigoroso consigo mesmo não tem dificuldade em ser com os outros, dando continuidade ao ciclo de violência sofrida. A indiferença contra a dor alheia é uma das características do caráter manipulador (destacado do estudo “A Personalidade Autoritária”, de Adorno e colaboradores). Entre outras disposições, o manipulador confere demasiada importância aos aspectos técnicos da vida, apoderando-se de suas categorias como forma de administrar o existente, desenvolvendo uma tendência para tratar os outros como massa amorfa, trata o existente como objeto. É sabido o quanto, na Alemanha nazista, o culto ao ideal do homem ariano, belo e forte culminou no extermínio de milhares de deficientes físicos, deficientes mentais e idosos.

Por meio da veiculação midiática dos feitos extraordinários dos atletas olímpicos, são inculcados processos culturais que não necessariamente se orientam para a edificação da vida humana. É importante pensar a possibilidade de uma formação que possa resistir aos apelos encantatórios dos modelos estereotipados e à violência, que se possa dotar o corpo de sensibilidade em prol da felicidade humana. A formação do indivíduo deve voltar-se para a vida.


Ricardo Casco é licenciado em Educação Física e mestre em Psicologia Escolar pela Universidade de São Paulo (USP). É Doutor em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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