Bastou que dois procuradores da República pedissem à Justiça que responsabilizasse os acusados de tortura, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar, para a blindagem jurídico-midiática reaparecer com disposição conhecida e os argumentos recorrentes.
Gilson Caroni Filho
"A tortura política em nenhum caso é mero procedimento técnico, crispação de urgência numa corrida contra o tempo, destinada à coleta fulminante de informações. Expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, ela visa à destruição do sujeito humano, na essência de sua carnalidade mais concreta."
Hélio Pellegrino
Volta e meia, como os personagens do romance "Incidente em Antares", os cadáveres insepultos dos porões voltam à cena para desespero dos coveiros em greve. Bastou que dois procuradores da República pedissem à justiça que responsabilizasse os acusados de tortura, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar, para a blindagem jurídico-midiática reaparecer com disposição conhecida e os argumentos recorrentes.
O apoio dos ministros da Justiça, Tarso Genro, e o da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, bem como os sólidos argumentos de ambos, foram imediatamente rechaçados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello e por Nelson Jobim, ministro da Defesa para quem " a Lei da Anistia, de 1979, já atendeu a seus objetivos, já realizou seus efeitos e não pode ser alterada". Mas em que momento se pediu sua alteração? A alegação de Genro é que ela não contempla crimes de tortura.
Desnecessário dizer que o discurso da imprensa seguiu na mesma toada, como isolamento acústico de um tempo que só será superado quando revisitado a contento. Sombrias são as dúvidas que, episódios como esse, lançam sobre a democracia que desejamos ter. Há uma correlação de forças que impede a apuração de crimes ou vivemos a plenitude de um Estado Democrático de Direito? Há no comando das Forças Armadas alguém com as mãos sujas de repressão ou nossos oficiais, por estarem plenamente integrados a um regime democrático, nada têm a temer?
Há quatro anos, uma matéria publicada no Correio Braziliense gerou o mesmo tipo de reação. Vale a pena relembrar o fato para observarmos como os sofismas não se alteram, existindo apenas um rodízio de quem os enuncia. Em nome de quem? Em nome de quê?
A penúltima semana de outubro de 2004 começou com três fotos e um fato. Se a vítima das fotos não era, como se chegou a supor, o jornalista Vladimir Herzog, o fato não perdeu em densidade política e importância jornalística. Pelo contrário, a primeira nota emitida pelo Exército lhe servia como legenda em preto e branco. O que víamos, independentemente de quem era o homem humilhado, é a tortura em estado bruto. Crime tão imprescritível quanto perene é a convicção dos que o perpetram. Não pode ser objeto de esquecimento, pois, como destacou Herbert Marcuse, "esquecer é perdoar o que não poderia ser perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem".
O trabalho dos jornalistas Rudolfo Lago e Erica Andrade mereceu destaque pelo que representou. Em tempos de produção de esquecimento, a matéria do Correio Braziliense reafirmava a memória como instrumento indispensável à consolidação democrática. Não seria fechando os olhos a crimes documentados pelos órgãos de repressão da ditadura que estaremos livres de recaídas autoritárias.
Pelas reações causadas em diversos setores, uma certeza se impôs: é necessário investigar os arquivos dos porões. Tanto os que guardam registros do regime militar quanto os que, certos da impunidade, reiteram que "as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas". O aspecto mais inquietante dessa nota diz respeito ao sensível ponto da hierarquia no estamento. Afinal, o comandante da arma, à epoca, general Francisco Albuquerque, foi conivente com seus autores ou por eles atropelado?
Muitos foram os temas levantados pela matéria. Se as fotos, e aqui pouco importa se de Herzog ou do padre canadense Leolpod D´Astous, foram garimpadas numa pasta que se encontrava dormitando havia sete anos na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, qual a vontade política daquela Casa em apurar os fatos? Mais, por que não avançaram as investigações sobre a guerrilha do Araguaia? Parafraseando versos conhecidos: "Quantas guerras teremos que esquecer por um simulacro de paz?"
Preocupantes, também, foram as declarações do então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Edson Vidigal, ao participar, sexta-feira (22/10), de cerimônia na Base Aérea de Brasília:
"Anistia é esquecimento. Não ajuda em nada agora mexer nessas fissuras. Essa história já foi sepultada. O povo foi às ruas, lutou pela anistia, pelo retorno dos brasileiros no exílio. A lei valeu para todo mundo. A agenda dos países é outra. Temos que avançar".
Será que o magistrado, assim como fazem agora os ministros da Defesa, Nélson Jobim, e do STF, Celso de Mello, julgava que a Lei de Anistia, de 1979, nada diz sobre tortura? E, como lembrou Paulo Sérgio Pinheiro, em seu artigo de quinta-feira (21/10), na Folha de S. Paulo, "para a Convenção Internacional contra a Tortura (da qual o Brasil é signatário) os crimes de tortura são imprescritíveis e a impunidade dos agentes de Estado torturadores e responsáveis por execuções sumárias pode a qualquer momento ser colocada em pauta".
Encontrará a interpretação do Sr. Celso de Mello, acolhimento entre seus pares? Eis uma questão da mais alta relevância.
Se for verdade que o diabo mora nos detalhes, nas redações jornalísticas, deve se sentir à vontade em editoriais ambíguos. Em sua edição de 21 de outubro de 2004, o jornal O Globo aconselhava em pouco mais de 550 caracteres, com espaço:
Fora do tempo
"Melhor teria sido que a primeira nota ficasse inédita. Já que foi divulgada, pelo menos o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, colocou a questão nos devidos termos: a Força lamenta a morte de Vladimir Herzog e a nota, lembra que um alto oficial foi punido por causa do crime e reafirma o compromisso do Exército com a democracia. Merece aplausos. Não faz qualquer sentido voltar-se a um tempo que ficou na História. A agenda do país é outra e dela não consta o retorno à radicalização ideológica".
O que vem a ser uma agenda? Quem a define? E em que termos? Estes são pontos que precisavam, e ainda precisam, de melhor esclarecimento. Se os destinatários do artiguete são os autores da nota do Exército, o jornal manifestava sincera preocupação com movimentos antidemocráticos. Deveria, porém, tornar a interlocução mais clara para o público-leitor. Se o endereçava a grupos de direitos humanos desejosos em aprofundar a investigação, fazia papel de um conselheiro de passado suspeito. Por que não faria sentido acertar as contas com um período recente da história? Ao não fazê-lo, o jornal não continuaria excluindo do espaço discursivo os que foram massacrados na ditadura?
Certamente haveria receio fundamentado. Um retorno ao que aconteceu naquele período poderia revelar como o Globo agiu quando as liberdades civis foram suprimidas. É provável que, em papéis amarelados, reaparecessem editoriais raivosos contra os oponentes do regime militar. Imprecações contra o Comitê Brasileiro de Anistia. Condenações sumárias aos movimentos sindicais e estudantis. Era a "agenda" da época. E nela, as Organizações Globo transformaram o chumbo, elemento metálico azulado, no ouro do império. A grande imprensa foi pródiga em alquimias do gênero.
Parece que a concentração informativa leva ao monopólio da significação. Agenda, governabilidade, revanchismo são palavras de uma novilíngua. Ocultam a própria origem e substituem vocábulos incômodos. Como se vê, foram múltiplos os questionamentos produzidos a partir da matéria publicada pelo Correio Braziliense, naquele outubro de 2004 . Daria um amplo leque de sugestões de pauta.
É fato que veio a segunda nota do Exército. Nela lamentava-se a morte de Herzog e havia reconhecimento de que a nota anterior, publicada no domingo, não condizia com o momento histórico. Mas esta foi produto de pressão governamental. A primeira, sem dúvida, é mais significativa. Diz muito sobre as especificidades de nossa fauna. Se, em países frios, durante o inverno, animais que se alimentam de frutas e sementes entram em estado letárgico, aqui quem hiberna são os gorilas. E o fazem por mais de quatro décadas.
Já passou da hora de aprofundar o debate.
Gilson Caroni Filho
"A tortura política em nenhum caso é mero procedimento técnico, crispação de urgência numa corrida contra o tempo, destinada à coleta fulminante de informações. Expressão tenebrosa da patologia de todo um sistema social e político, ela visa à destruição do sujeito humano, na essência de sua carnalidade mais concreta."
Hélio Pellegrino
Volta e meia, como os personagens do romance "Incidente em Antares", os cadáveres insepultos dos porões voltam à cena para desespero dos coveiros em greve. Bastou que dois procuradores da República pedissem à justiça que responsabilizasse os acusados de tortura, mortes e desaparecimentos durante a ditadura militar, para a blindagem jurídico-midiática reaparecer com disposição conhecida e os argumentos recorrentes.
O apoio dos ministros da Justiça, Tarso Genro, e o da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, bem como os sólidos argumentos de ambos, foram imediatamente rechaçados pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello e por Nelson Jobim, ministro da Defesa para quem " a Lei da Anistia, de 1979, já atendeu a seus objetivos, já realizou seus efeitos e não pode ser alterada". Mas em que momento se pediu sua alteração? A alegação de Genro é que ela não contempla crimes de tortura.
Desnecessário dizer que o discurso da imprensa seguiu na mesma toada, como isolamento acústico de um tempo que só será superado quando revisitado a contento. Sombrias são as dúvidas que, episódios como esse, lançam sobre a democracia que desejamos ter. Há uma correlação de forças que impede a apuração de crimes ou vivemos a plenitude de um Estado Democrático de Direito? Há no comando das Forças Armadas alguém com as mãos sujas de repressão ou nossos oficiais, por estarem plenamente integrados a um regime democrático, nada têm a temer?
Há quatro anos, uma matéria publicada no Correio Braziliense gerou o mesmo tipo de reação. Vale a pena relembrar o fato para observarmos como os sofismas não se alteram, existindo apenas um rodízio de quem os enuncia. Em nome de quem? Em nome de quê?
A penúltima semana de outubro de 2004 começou com três fotos e um fato. Se a vítima das fotos não era, como se chegou a supor, o jornalista Vladimir Herzog, o fato não perdeu em densidade política e importância jornalística. Pelo contrário, a primeira nota emitida pelo Exército lhe servia como legenda em preto e branco. O que víamos, independentemente de quem era o homem humilhado, é a tortura em estado bruto. Crime tão imprescritível quanto perene é a convicção dos que o perpetram. Não pode ser objeto de esquecimento, pois, como destacou Herbert Marcuse, "esquecer é perdoar o que não poderia ser perdoado se a justiça e a liberdade prevalecessem".
O trabalho dos jornalistas Rudolfo Lago e Erica Andrade mereceu destaque pelo que representou. Em tempos de produção de esquecimento, a matéria do Correio Braziliense reafirmava a memória como instrumento indispensável à consolidação democrática. Não seria fechando os olhos a crimes documentados pelos órgãos de repressão da ditadura que estaremos livres de recaídas autoritárias.
Pelas reações causadas em diversos setores, uma certeza se impôs: é necessário investigar os arquivos dos porões. Tanto os que guardam registros do regime militar quanto os que, certos da impunidade, reiteram que "as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas". O aspecto mais inquietante dessa nota diz respeito ao sensível ponto da hierarquia no estamento. Afinal, o comandante da arma, à epoca, general Francisco Albuquerque, foi conivente com seus autores ou por eles atropelado?
Muitos foram os temas levantados pela matéria. Se as fotos, e aqui pouco importa se de Herzog ou do padre canadense Leolpod D´Astous, foram garimpadas numa pasta que se encontrava dormitando havia sete anos na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, qual a vontade política daquela Casa em apurar os fatos? Mais, por que não avançaram as investigações sobre a guerrilha do Araguaia? Parafraseando versos conhecidos: "Quantas guerras teremos que esquecer por um simulacro de paz?"
Preocupantes, também, foram as declarações do então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Edson Vidigal, ao participar, sexta-feira (22/10), de cerimônia na Base Aérea de Brasília:
"Anistia é esquecimento. Não ajuda em nada agora mexer nessas fissuras. Essa história já foi sepultada. O povo foi às ruas, lutou pela anistia, pelo retorno dos brasileiros no exílio. A lei valeu para todo mundo. A agenda dos países é outra. Temos que avançar".
Será que o magistrado, assim como fazem agora os ministros da Defesa, Nélson Jobim, e do STF, Celso de Mello, julgava que a Lei de Anistia, de 1979, nada diz sobre tortura? E, como lembrou Paulo Sérgio Pinheiro, em seu artigo de quinta-feira (21/10), na Folha de S. Paulo, "para a Convenção Internacional contra a Tortura (da qual o Brasil é signatário) os crimes de tortura são imprescritíveis e a impunidade dos agentes de Estado torturadores e responsáveis por execuções sumárias pode a qualquer momento ser colocada em pauta".
Encontrará a interpretação do Sr. Celso de Mello, acolhimento entre seus pares? Eis uma questão da mais alta relevância.
Se for verdade que o diabo mora nos detalhes, nas redações jornalísticas, deve se sentir à vontade em editoriais ambíguos. Em sua edição de 21 de outubro de 2004, o jornal O Globo aconselhava em pouco mais de 550 caracteres, com espaço:
Fora do tempo
"Melhor teria sido que a primeira nota ficasse inédita. Já que foi divulgada, pelo menos o comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque, colocou a questão nos devidos termos: a Força lamenta a morte de Vladimir Herzog e a nota, lembra que um alto oficial foi punido por causa do crime e reafirma o compromisso do Exército com a democracia. Merece aplausos. Não faz qualquer sentido voltar-se a um tempo que ficou na História. A agenda do país é outra e dela não consta o retorno à radicalização ideológica".
O que vem a ser uma agenda? Quem a define? E em que termos? Estes são pontos que precisavam, e ainda precisam, de melhor esclarecimento. Se os destinatários do artiguete são os autores da nota do Exército, o jornal manifestava sincera preocupação com movimentos antidemocráticos. Deveria, porém, tornar a interlocução mais clara para o público-leitor. Se o endereçava a grupos de direitos humanos desejosos em aprofundar a investigação, fazia papel de um conselheiro de passado suspeito. Por que não faria sentido acertar as contas com um período recente da história? Ao não fazê-lo, o jornal não continuaria excluindo do espaço discursivo os que foram massacrados na ditadura?
Certamente haveria receio fundamentado. Um retorno ao que aconteceu naquele período poderia revelar como o Globo agiu quando as liberdades civis foram suprimidas. É provável que, em papéis amarelados, reaparecessem editoriais raivosos contra os oponentes do regime militar. Imprecações contra o Comitê Brasileiro de Anistia. Condenações sumárias aos movimentos sindicais e estudantis. Era a "agenda" da época. E nela, as Organizações Globo transformaram o chumbo, elemento metálico azulado, no ouro do império. A grande imprensa foi pródiga em alquimias do gênero.
Parece que a concentração informativa leva ao monopólio da significação. Agenda, governabilidade, revanchismo são palavras de uma novilíngua. Ocultam a própria origem e substituem vocábulos incômodos. Como se vê, foram múltiplos os questionamentos produzidos a partir da matéria publicada pelo Correio Braziliense, naquele outubro de 2004 . Daria um amplo leque de sugestões de pauta.
É fato que veio a segunda nota do Exército. Nela lamentava-se a morte de Herzog e havia reconhecimento de que a nota anterior, publicada no domingo, não condizia com o momento histórico. Mas esta foi produto de pressão governamental. A primeira, sem dúvida, é mais significativa. Diz muito sobre as especificidades de nossa fauna. Se, em países frios, durante o inverno, animais que se alimentam de frutas e sementes entram em estado letárgico, aqui quem hiberna são os gorilas. E o fazem por mais de quatro décadas.
Já passou da hora de aprofundar o debate.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.
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