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sábado, 9 de agosto de 2008

O ACERTO DAS CONTAS DO PASSADO e outros textos sobre ditadura, repressão, anistia e reparação

Celso Lungaretti (*)

O mérito do audiência pública promovida no último dia 31 (julho de 2008) pelo Ministério da Justiça foi abrir o debate sobre a punição dos responsáveis pelas atrocidades cometidas na última ditadura.

Como sempre, há gente demais falando coisas demais ao mesmo tempo, o que acaba confundindo o cidadão comum. Vamos sistematizar a discussão:

· conspiradores militares e civis deram um golpe de estado contra o governo legítimo do presidente João Goulart em 1964, usurpando o poder e submetendo o Legislativo e o Judiciário à vontade do Executivo;

· a ditadura de 1964/85 foi responsável por arbitrariedades, truculência, torturas e assassinatos desde o início, mas em escala bem menor no período de 1964/67, até por não ter enfrentado, de imediato, uma resistência mais efetiva por parte da esquerda e dos democratas;

· a partir de 1968, quando ressurgem os movimentos de massa, a escalada repressiva foi se acentuando cada vez mais, com a generalização das torturas e o aumento dos casos de assassinato (repressão “oficial”), além das intimidações e atentados cometidos impunemente pelas organizações para-militares de extrema-direita (repressão “oficiosa”);

· em 1968, umas poucas dezenas de militantes de esquerda começaram a confrontar a ditadura por meio da luta armada, assaltando bancos, lojas de armas e pedreiras, cometendo atentados com explosivos, etc.;

· a assinatura do AI-5, em dezembro de 1968, radicalizou ao máximo o regime de exceção, concedendo ao aparato repressivo poderes ilimitados;

· com o País submetido ao terrorismo de estado, os movimentos de massas e outras formas de resistência pacífica se tornaram suicidas (para os que teimavam em continuar atuando de peito aberto), ou inócuas (caso, p. ex., do abandono de panfletos nos banheiros de locais de trabalho, escolas e casas de espetáculo);

· foi quando a luta armada passou para o primeiro plano na resistência à ditadura, com os partidos e organizações guerrilheiros recebendo a adesão de um considerável número de cidadãos antes dedicados aos movimentos de massa;

· ao final de 1970 a guerrilha já estava militar e politicamente derrotada, passando então a repressão a exterminar sistematicamente os últimos combatentes, inclusive prendendo-os com vida, levando-os a centros clandestinos de tortura, executando-os depois de arrancar-lhes as informações que possuíam (ou de concluírem que nada falariam) e dando sumiço em seus restos mortais;

· a Lei da Anistia de 1979, promulgada ainda sob regime de exceção, constituiu-se numa imposição dos vencedores aos vencidos, já que a contrapartida da libertação de presos políticos e da permissão de volta dos exilados foi a colocação das barbaridades praticadas pelos agentes do estado fora do alcance da Justiça.

Este é o tabuleiro. Vejamos, agora, os movimentos das peças.

A esquerda e uma ala do Governo Lula querem o levantamento do embargo às punições de torturadores. Mas, ainda não sabem exatamente como proceder: revogando ou contornando a anistia de 1979.

O ministro da Justiça Tarso Genro sustenta que tal lei cobriu apenas as práticas policiais legalizadas; quem torturou e executou resistentes, teria extrapolado os poderes que lhe foram concedidos pela própria legislação de exceção, cometendo crimes comuns pelos quais deve responder individualmente.

É uma tese conveniente, mas falaciosa. Evidentemente, o AI-5 não iria ao cúmulo de consignar que “ficam autorizados a tortura e o assassinato de subversivos”, mas era isto que se lia nas entrelinhas, começando pela suspensão dos habeas-corpus para os ditos “crimes políticos”.

Têm razão os militares que alegam ter cumprido ordens. Toda a cadeia de comando, desde o presidente da República até o mais ínfimo cabo da guarda, compactou com as práticas hediondas e com o extermínio de resistentes.

O contra-ataque dos militares da ativa e (principalmente) da reserva que, por terem cometido, endossado ou se omitido face às atrocidades, esforçam-se para mantê-las impunes, será óbvio: acusar de crimes comuns os ex-guerrilheiros, principalmente os que hoje integram o Governo Lula. É o que os sites de extrema-direita já vêm fazendo há tempos.

Então, se houver real empenho oficial no sentido de que o Brasil siga os passos da Argentina, Chile e Uruguai, de nada vai adiantar a tentativa de contornar a Lei da Anistia, pois acabaremos desembocando na mesma situação que se quer evitar. Melhor adotarmos logo a solução mais apropriada e digna: revogá-la.

É claro que tal decisão não poderá ser tomada pelos ministros da Justiça e dos Direitos Humanos, enquanto o da Defesa aglutina seus opositores. O Governo Lula, como um todo, deverá assumi-la e responder por ela.

REGRA, E NÃO EXCEÇÃO – E a quem, afinal, processar-se, se tais crimes eram regra e não exceção nos anos de chumbo?

Pinçar alguns torturadores-símbolo para pagarem por todos os criminosos têm o inconveniente maior de não passar realmente esse período a limpo. E o menor, mas não desprezível, de dar aos ditos cujos um poderoso argumento jurídico: o de estarem servindo como bodes expiatórios de algo que se constituiu, na verdade, numa política de estado. Será mais ou menos esta, aliás, a linha de defesa de Brilhante Ustra nas ações a que já está respondendo na Justiça Civil.

Aqui também a melhor opção é agirmos corretamente, como fizeram os países sul-americanos mais adiantados nesse acerto das contas do passado: levarmos aos tribunais não só os executores, mas também os mandantes.

Os ditadores do período já estão todos mortos, mas restam, seguramente, altos comandantes militares que, por decisão ou omissão, respaldaram a repressão bestial.

E não se pode esquecer que, se um Ustra ou um Curió são responsáveis respectivos pelos crimes cometidos num Estado e num palco de luta, os signatários do Ato Institucional nº 5 deram sinal verde para a totalidade dos crimes perpetrados em todo o território nacional, tendo responsabilidade imensa pelas atrocidades do período.

Quanto aos ex-guerrilheiros, é justo e praticamente inevitável que percam a proteção automática da Lei da Anistia. Mas, já não seria sem tempo uma definição inequívoca do Estado brasileiro acerca daqueles que exerceram, em nosso país, o direito milenar de resistência à tirania, travando uma luta heróica, em terrível desigualdade de forças.

A extrema-direita pretende, p. ex., que os assaltos a bancos e seqüestros de diplomatas, plenamente justificáveis numa luta de resistência (para prover os clandestinos dos recursos que não poderiam obter por vias legais e sem os quais seriam logo aniquilados, no primeiro caso; e para salvar os companheiros presos das torturas e de possíveis execuções, no segundo) sejam tipificados como crimes comuns. Isto deve ser enfatica e definitivamente rechaçado.

Quanto aos que incorreram em excessos inadmissíveis, como demonstrações gratuitas de força, devem, sim, responder por seus atos.

Mas, como os Inquéritos Policiais-Militares do período foram contaminados pela prática generalizada da tortura e as auditorias militares não passavam de tribunais de exceção aplicando uma legislação de exceção, todo esse acervo autoritário, à luz do Direito civilizado, só cabe num lugar: a lixeira da História.

Os acusados desses excessos têm o direito de se defenderem segundo as regras de uma democracia, com os processos começando do zero, pois nada do que foi feito durante a ditadura é juridicamente aceitável.

E, claro, as penas que quase todos já cumpriram terão de ser computadas.

O mais provável é que, passando isto também a limpo, só alguns gatos pingados sejam encarcerados, e por pouco tempo. Já os ganhos moral e político serão incomensuráveis.

Na Nova República, muito se falou em passar o Brasil a limpo, mas faltou vontade política (e – por que não dizer? – coragem) para tanto.

Temos agora uma nova oportunidade de fechar com dignidade essa página trágica de nossa História, para podermos seguir adiante sem sermos a cada momento assombrados pelos fantasmas do passado.

Mas, só a aproveitaremos se colocarmos nosso senso de Justiça acima dos receios, interesses, conveniências e cálculos mesquinhos.


CABO ANSELMO: “CACHORRO” FAZ JUS À ANISTIA?

Celso Lungaretti (*)

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça está às voltas com o processo mais rumoroso em seus sete anos de existência: o de José Anselmo dos Santos, conhecido como cabo Anselmo, embora tenha sido apenas marinheiro de primeira classe. Trata-se do mais célebre dos militantes da resistência à ditadura militar que, no jargão dos próprios órgãos de segurança, atuaram como cachorros da repressão, armando ciladas para os companheiros.

O cabo Anselmo foi o principal agitador da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil no período que antecedeu a quartelada de 1964. Depois do golpe, passou vários anos foragido, esteve em Cuba treinando guerrilha e, de regresso ao Brasil, militou na luta armada contra o regime militar, ao mesmo tempo em que colaborava sub-repticiamente com a repressão da ditadura, atraindo seus companheiros para emboscadas.

Eis como Élio Gaspari relatou, em A Ditadura Escancarada, uma de suas missões:
– A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (...) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia. Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (...). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (...) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados.

Quando seu verdadeiro papel ficou evidenciado, ele passou a viver sob a proteção dos órgãos de segurança, que lhe proveram remuneração e fachada legal sob identidade falsa. De vez em quando, para aumentar os ganhos, concedia entrevistas que foram publicadas com destaque na grande imprensa e até viraram livros.

O processo do cabo Anselmo, que tramita desde 2004 na Comissão de Anistia, será julgado dentro de aproximadamente dois meses, segundo informação que a colunista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, colheu do presidente do colegiado Paulo Abrão Pires Jr.

Estigma da infâmia – O programa foi criado para oferecer reparações àqueles que sofreram danos físicos, psicológicos, morais e profissionais em decorrência do estado de exceção vigente no Brasil entre 1964 e 1985.

Conseqüentemente, caso o cabo Anselmo tenha sido um militante revolucionário até meados de 1971, só então mudando de lado, sua vida foi mesmo afetada pelo arbítrio instaurado no País, a despeito do juízo moral que façamos de quem chegou a se vangloriar de haver causado a morte de "cem, duzentos" idealistas que combatiam a ditadura e o tinham como companheiro.

Ou seja, se o poder não tivesse sido usurpado por um grupo de conspiradores em 1964, o cabo Anselmo continuaria presumivelmente servindo a Marinha, ao invés de se tornar um homem que há décadas carrega o estigma da infâmia e precisa viver escondido no próprio país. Daí o seu direito formal à reparação que está pleiteando.

No entanto, a anistia federal foi uma tentativa de re-equilibrar os pratos da balança, depois que a Lei da Anistia de 1979 passou uma borracha no passado, equiparando carrascos e vítimas.

Naquele momento, os vitoriosos impuseram aos vencidos as condições para a pacificação: libertariam presos políticos e deixariam os exilados retornarem ao País, desde que os assassinatos, torturas e atrocidades cometidos ou consentidos pela ditadura ficassem para sempre fora do alcance da Justiça.

O Governo FHC, não podendo ou não ousando remediar essa situação, resolveu, pelo menos, remendá-la, concedendo compensações financeiras aos humilhados e ofendidos.

Vilãos e vítimas – Daí o mal-estar causado pela impudência com que o cabo Anselmo pleiteou benefício de vítima, após ter sido um dos maiores vilãos do período. Do ponto-de-vista moral, é chocante vermos um ser tão decaído lado a lado com cidadãos dignos e sofridos; do ponto-de-vista legal, provavelmente não há como expulsar esse estranho do ninho.

A menos, claro, que se consiga comprovar a tese sustentada por vários de seus ex-colegas da Armada: a de que o cabo Anselmo desde o primeiro momento serviu à comunidade de informações, como agente infiltrado nos movimentos de esquerda.

Alegam, primeiramente, que ele tudo fez para radicalizar os movimentos dos subalternos das Forças Armadas – fator decisivo para que a oficialidade decidisse quebrar seu juramento de fidelidade à Constituição, passando a apoiar os conspiradores.

Logo após o golpe, Anselmo pediu asilo na embaixada mexicana. Mas, embora fosse uma das pessoas mais procuradas do País, resolveu sair andando de lá, sem ser detido.

Algum tempo depois foi preso, exibido como troféu pela ditadura... e logo transferido para uma delegacia de bairro, na qual, diz Gaspari, “Anselmo fazia serviços de telefonista, escrivão e assistente do único detetive do lugar”.

A situação carcerária do ex-marujo, continua Gaspari, não cessou de melhorar: “Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, visitando-o no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido”.

Finalmente, sem nenhuma dificuldade, Anselmo deixou a cadeia em abril de 1966. Nada houve que caracterizasse uma fuga: apenas constataram que o hóspede saíra e não voltara.

Foi para Cuba e só retornou ao Brasil em setembro de 1970, iniciando no ano seguinte sua trajetória de anjo exterminador.

Se ficar estabelecido que o Anselmo sempre foi um agente duplo, Anselmo não fará jus à anistia federal; mas, claro, os antigos comandantes do Cenimar, Deops e órgãos congêneres dificilmente atestarão que ele já estava na sua folha de pagamentos antes da quartelada de 1964.

Caso tenha realmente sido um perseguido político até 1971, seus direitos não são anulados pelas indignidades posteriores.

O certo é que as chamadas provas circunstanciais não bastam para privá-lo da reparação a que moralmente não faz jus.

Então, é provável que a Comissão de Anistia tenha de engolir esse sapo gigantesco: deferir o pedido de um indivíduo infame a ponto de causar a morte da companheira que engravidara (a paraguaia Soledad Barret Viedma), tendo considerado mais importante garantir o massacre de seis revolucionários do que salvar sua amante e a criança que ela concebia

O outono do torturador

Brilhante Ustra comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, o principal órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar. Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a esse período. Pelo menos 40 revolucionários foram assassinados no DOI-Codi, inclusive o jornalista Vladimir Herzog.

Celso Lungaretti (*)

O coronel reformado do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra está sendo julgado na 23ª Vara Cível do Estado de São Paulo por seqüestro e tortura praticados em 1972/73 contra o casal César Augusto/Maria Amélia Teles e três parentes. As testemunhas de acusação foram ouvidas no dia 9 de novembro, tendo a repercussão da audiência na mídia provocado uma ampla mobilização de militares da reserva, em apoio ao réu.

Brilhante Ustra comandou, entre setembro/1970 e janeiro/1974, o DOI-Codi de São Paulo, o principal órgão de repressão aos grupos de esquerda que pegaram em armas contra a ditadura militar. Já foram apresentadas 502 denúncias de torturas referentes a esse período. Pelo menos 40 revolucionários foram assassinados no DOI-Codi, inclusive o jornalista Vladimir Herzog.

O processo contra Brilhante Ustra é de natureza declaratória: não implicará prisão ou indenização, objetivando apenas o reconhecimento oficial de que ele foi um torturador. O que não é pouco, em termos morais.

Os ex-colegas de farda e a defesa de Brilhante Ustra alegam que a Lei da Anistia de 1979 tornou inimputáveis tanto os repressores quanto os revolucionários. Já a família Teles e as entidades de defesa dos direitos humanos argumentam que essa restrição se refere apenas aos crimes, não às ações de natureza civil; foi este, também, o entendimento do juiz da 23ª Vara.

Isto é o que qualquer um pode ler no noticiário. Vamos ao que a imprensa não diz.


LEI DA ANISTIA IGUALOU VÍTIMAS E CARRASCOS

A anistia recíproca de 1979 foi um sapo engolido pela sociedade civil, que abriu mão do ideal de justiça em troca da libertação da maioria dos presos políticos e da volta dos exilados. Os militares, conscientes de que haviam incidido nas mesmas práticas punidas exemplarmente no Julgamento de Nuremberg, fizeram uma barganha muito vantajosa: já que a redemocratização um dia acabaria ocorrendo, trataram de assegurar previamente a não-condenação de seus criminosos.

No fundo, tratou-se apenas da imposição da vontade do mais forte sobre o mais fraco. Tendo usurpado o poder em 1964, os militares governavam o País ilegalmente e sob terrorismo de estado há 15 anos. Usaram presos e exilados como moedas de troca para chantagear os oposicionistas, obrigando-os a aceitar uma solução que atou as mãos do Judiciário e o deixou impedido de cumprir seu papel.

Então, não é um acordo para ser respeitado, mas sim denunciado. E a iniciativa da família Teles poderá ser o primeiro passo nesta direção.

A ditadura militar foi responsável pela morte de mais de 400 revolucionários ou cidadãos suspeitos de sê-lo; pelo desaparecimento de 150 outros militantes, quase todos assassinados e sepultados em cemitérios clandestinos, como o que foi descoberto em Perus (SP); e pela tortura de milhares de brasileiros.

Brilhante Ustra e outros remanescentes dessa direita troglodita alegam, em contrapartida, que as organizações armadas de esquerda teriam vitimado 120 pessoas e ferido outras 330.

Não se trata, entretanto, de uma questão de números, embora o balanço continue sendo desfavorável à ditadura, por mais que seus apologistas distorçam fatos e manipulem estatísticas, em sites como o Terrorismo Nunca Mais e o Usina de Letras.

O Brasil e muitos outros países do 3º Mundo viveram, nas décadas de 1960 e 1970, a mesma situação dos países ocupados pelo nazi-fascismo durante a 2ª Guerra Mundial. O poder emanava das baionetas. Governos legítimos eram derrubados por conspiradores financiados e apoiados pelos Estados Unidos, como ficou evidenciado de forma cristalina no Brasil.

Em nosso país, a interferência começou com as pressões para que Getúlio Vargas deixasse o poder em 1945; continuaram com o incentivo aos golpistas da UDN, que só não conseguiram seu intento em 1954 porque a carta-testamento de Vargas provocou forte reação popular; e culminaram no apoio ao grupo militar castellista envolvido com a quartelada malograda de 1961 e responsável pela bem-sucedida de 1964.


CONFRONTO ENTRE CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE


Já não há dúvida nenhuma, para os historiadores dignos desse nome, de que não ocorreu aqui um “contragolpe preventivo”, como alegaram na época os militares, mas simplesmente uma conspiração urdida durante anos para a conquista do estado – que, aliás, depois serviria de modelo para a deposição de Salvador Allende no Chile.

No poder, os militares fecharam o Congresso Nacional sempre que lhes aprouve e suspenderam a vigência da Constituição, sobrepondo-lhes os famigerados atos institucionais que baixavam a bel-prazer; extinguiram partidos, sindicatos e entidades; cassaram os mandatos de representantes do povo; organizaram governos de fachada, “eleitos” por um Legislativo expurgado e intimidado; censuraram as artes e as comunicações; prenderam, baniram, torturaram, assassinaram, ocultaram cadáveres.

Na prática, comportaram-se como tropa de ocupação, tanto quanto os nazistas nas nações por eles conquistadas. E os cidadãos que ousaram enfrentá-los, apesar da terrível desigualdade de forças, equivalem em tudo e por tudo aos movimentos europeus de resistência da década de 1940.

A celebrada Resistência Francesa também atingiu vítimas inocentes em algumas ocasiões, mas a nenhum energúmeno ocorre hoje compará-la aos nazistas ou ao governo fantoche de Vichy.

Da mesma forma, devem-se reprovar alguns excessos cometidos pelos revolucionários brasileiros que combatiam de forma quase artesanal a poderosa engrenagem repressiva montada pelos militares e seus instrutores norte-americanos, mas é inaceitável e desonesto argüir uma pretensa equivalência dos crimes. Só um lado agrediu, continuada e sistematicamente, os valores mais sagrados da civilização.

Pois é disso que se tratou: um confronto entre civilização e barbárie.


A PENA DE BRILHANTE USTRA: EXECRAÇÃO PÚBLICA


Países como a Argentina e o Chile avançaram bem mais do que o Brasil na apuração dos crimes cometidos pelas ditaduras militares. Quanto à punição, ao contrário dessas nações que não relativizaram o sentimento de justiça e têm o mínimo respeito por seus mártires, continuamos na estaca zero.

Daí a importância de que Brilhante Ustra seja, como merece, exposto exemplarmente à execração pública.

Sua defesa alega que ele nada sabia das práticas cotidianas do órgão que comandava. Para tornar essa versão plausível, deveria ter anexado um atestado de surdez. Quem passou pelos porões da ditadura – ou, mesmo, morava nas redondezas – sabe quão inconfundível era a “trilha sonora” de uma sessão de tortura: os gritos raivosos dos torturadores e os urros inumanos dos torturados ao receberem choques elétricos; ruídos de socos, pontapés e objetos caindo.

Se hoje os comandantes fogem às suas responsabilidades, preferindo utilizar os comandados como biombo, bem diferente foi a atitude do general-presidente Geisel: ao tomar conhecimento do assassinato de Vladimir Herzog no DOI-Codi de Brilhante Ustra, não preferiu o caminho fácil da omissão, mas ordenou ao aparelho repressivo que evitasse uma repetição daquele fato; ao saber da morte de Fiel Filho nas mesmíssimas circunstâncias, não vacilou, extinguindo de imediato aquele órgão maldito e dispersando seus integrantes.

Um ditador podia ter, ao menos, dignidade pessoal. Um torturador, jamais. Nem antes, nem agora.

Quanto ao argumento de ordem humanitária – se não se puniu Brilhante Ustra (ou seu congênere chileno, Pinochet) no momento certo, não seria melhor agora deixar o ancião morrer em paz? – é respeitável. A prescrição dos delitos evita que cidadãos sejam punidos quando já não têm periculosidade, possibilidade de reincidir e, às vezes, nem mesmo discernimento para entenderem o porquê da punição.

A prática do estado de Israel de caçar criminosos de guerra nazistas no mundo inteiro, até seqüestrando-os para submetê-los a julgamento, chocou a consciência civilizada. Foi excessiva, além de haver incidido em novos crimes a pretexto de punir os crimes passados.

Não equilibraríamos os pratos da Justiça seguindo esse exemplo – nem, no outro extremo, simplesmente passando uma borracha em todas as atrocidades que foram cometidas durante a ditadura.

Para encontrarmos um ponto de equilíbrio, o caso de Brilhante Ustra é dos mais propícios. Primeiramente, porque não se pede sua prisão, mas, apenas, que lhe seja oficialmente imputada a responsabilidade moral por tudo aquilo que realmente fez.

E, tendo escrito dois livros de justificação dos crimes contra a humanidade que ele e outros torturadores cometeram, bem como de calúnias contra suas vítimas, mantém a periculosidade, já que tenta envenenar as novas gerações; reincide em seus crimes, na medida que defende as práticas da força contra o Direito; e prova que não perdeu o entendimento das coisas, embora a velhice não lhe tenha trazido lucidez nem arrependimento.

Não se trata de satisfazer desejos de vingança, mesmo que justificáveis. Mas, de sinalizar para os pósteros que certos limites jamais devem ser transpostos. Pois aqueles que os transpuserem não escaparão da punição, seja com as penas de morte e detenção decididas pelo tribunal de Nuremberg, seja com a marca da infâmia que, se a Justiça funcionar, deverá acompanhar Brilhante Ustra pelo resto dos seus dias.

* Celso Lungaretti, jornalista e escritor, é ex-preso político e autor do livro “Náufrago da Utopia”

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