As efemérides, especialmente, as de cunho tão nacionalista como o 7 de setembro tem a sua própria história. Na década de 1970, uma análise como da economista e educadora popular Roberta Traspadini transcrita abaixo seria impossível de ser expressa sem censura. Nas décadas de 1980 e 1990 com a redemocratização análises críticas ao nacionalismo exarcerbado e a denúncia de uma nação excludente para uma grande parcela da população tornam-se mais comuns. Hoje, os pesquisadores, especialmente os envolvidos com os movimentos sociais buscam refletir sobre nossa independência política e o verdadeiro acesso a cidadania para todos os brasileiros.
(In)dependência do Brasil: a ordem do progresso?
Roberta Traspadini*
O mês de setembro é, para muitos, um período de comemoração pátria. Dia em que se festeja, com direito a parada cívica, o suposto logro da Independência do Brasil.
Foi com essa postura nacionalista, em que as distinções são camufladas e os valores cívicos são incorporados, que por muitos anos estudamos em nossas escolas a educação moral e cívica. Jurar respeito e amor à bandeira e demais símbolos pátrios era o elemento fundamental do adestramento educativo. Até hoje, nas competições olímpicas, esse quesito do nacionalismo, como amor à Nação, independente de suas crenças políticas, enche os olhos dos brasileiros de pura emoção.
E o que implica isto na realidade? Implica que, ante determinados temas e momentos, todos os sujeitos, brasileiros, devem estar na mesma energia da ordem e do progresso. Significa esquecer tanto dos sofrimentos próprios, quanto dos alheios. A construção de uma identidade nacional para além da classe, dos conflitos, das opções políticas e da vida cotidiana que se vive.
(Cenas do desfile e da festa de Sete de Setembro em São Paulo, que ocorreu no sambódromo do Anhembi, 2008)
Esse espírito nacionalista, tipicamente capitalizado para um sentido de vida e de processo político, sustentou o progresso do capital a partir de uma lógica escravizadora do trabalho e dos recursos naturais do país, educou, via adestramento, gerações que, ao incorporarem o sentido pátrio, renegaram sua própria situação conflitiva de classe.
A intencionalidade por trás dessa concepção política é a de colocar todos os sujeitos numa única linha sobre o sentido do sentir pátrio, para além do que se vive. Nada mais trágico. Os desfiles que, na aparência, revelam belezas de trajes, de sons e de posturas, na essência camuflam um cotidiano de grande diferença e exclusão. Um cotidiano, inclusive, de muita postura raivosa de classe: os poucos detentores de muitos recursos, culpando os muitos, detentores de muitas dívidas, sobre seu processo de não progresso.
As crianças das escolas públicas vão às ruas. Talvez este seja o único momento de visibilidade para além de sua vida como brasileiros, independente de onde vivam: a periferia. E isso é o mais brutal. Reforçar nos sujeitos o amor ao País, sem forçá-los a entender o desamor de grupos políticos historicamente no poder. Poder este consolidado para responder a seus interesses específicos – de classe - e não gerais – de todos indistintamente - nacionais.
(Representando uma vitória-régia, estudante participa de desfile cívico-militar na Esplanada dos Ministérios, em BrasíliaWilson Dias/Abr)
O nacional é composto de várias partes e por várias classes. E o sentido dado a ele não pode ser diferente. O nacional burguês - nacional ruralista, financeiro e comercial -, defende um Brasil para poucos lucradores, logrado pelo suor de muitos. O nacional popular, dos pequenos agricultores, sem terras, ou com terras conquistadas por eles e desde seu próprio suor, defende um Brasil em que muitos tenham, não só a oportunidade, mas a ordem do progresso sobre suas mãos.
Após anos de escravidão, mesmo com a lei Áurea assinada, o que temos é a vitória do progresso resultado da ordem burguesa. Um progresso instituído de fora para dentro, no período anterior - colonial -e que, no império, com a independência, reverteu à lógica interna a mesma reprodução anterior. Ou seja, a ordem do progresso, o progresso da ordem burguesa.
Mas, quem ganha? Quem progride? Quem vive do seu próprio suor, e quem vive do suor alheio? Essas são perguntas geradoras que qualquer sujeito, como educador popular, deve se fazer ao viver o dia pátrio. Viver o histórico sentido pátrio brasileiro, é reviver anos de exploração, exclusão e alienação, de muitos, implementados por um pequeno grupo em nome dos supostos valores nacionais.
Numa perspectiva nacionalista burguesa, o sentido pátrio registrado na nossa bandeira ganha evidência a partir das conquistas de ganho capitalistas. Ou as cores da bandeira não simbolizam a vitória do capital sobre o trabalho no âmbito nacional? Com a particularidade histórica de que, em meio ao cenário global de ação das transnacionais, o território tenha se transformado numa terra de gigantes internacionais, aparentemente sem pátria, sem fronteiras para seus ganhos.
Se os verdes são as matas, o amarelo as riquezas preciosas, o azul a beleza do céu e a gigantesca preciosidade litorânea – principalmente no tema da energia e da água -, e o branco os estados da federação, como ler então a ordem e o progresso? A Amazônia, as terras da raposa do sol, as várias serras peladas, as riquezas das empresas antes estatais, agora, (trans)nacionais - CVRD -, os transportes de ganhos privados terrestres, marítimos e aéreos, e, principalmente, o tema da energia, da água e da alimentação nas mãos das grandes corporações internacionais, são bons exemplos cotidianos do paradoxo que se vive entre desfiles pátrios e vidas cotidianas de exclusão e exploração, protagonizadas pelo povo brasileiro, em nome das benesses do capital.
A (in)dependência do Brasil, no sentido popular, como algo tomado e protagonizado pelo povo, para o povo na construção de um projeto nacional soberano não só nunca ocorreu no Brasil, como está, atualmente, muito à margem de qualquer discussão. Retomar o nacional popular é, sem sombra de dúvidas, dar um significado de classe tanto para o que se tem, quanto para como se chegou ao que se tem: um Brasil da ordem e progresso de poucos a partir da exclusão de muitos.
Por isso o hino nacional, por mais comoção que possa causar, não pode velar, tem que nos ajudar a revelar o elitismo por trás da moral e cívica nacionalista burguesa. O hino nacional é um reflexo à exaltação da classe vitoriosa – a elite - ao longo dos tempos, na luta por um Brasil soberano e nacional, quando útil, e aberto, quando mais rentável, em conformidade com seus interesses territoriais de ganhos sem fim.
(O presidente Lula, ex-metalúrgico, eleito em 2002 e reeleito em 2006, desfila em carro aberto nas comemorações do 7 de setembro no DF)
A ordem e o progresso do povo brasileiro pode e deve assaltar as ruas, reivindicando, protestando e projetando, para além do que se tem, o que se quer. Necessitamos da substituição dos desfiles pátrios, de boas vestimentas e boas canções, com um público passivo assistindo, por uma nova ordem e progresso. Necessitamos de uma ação rumo a um outro Brasil, a uma outra ordem, para além do progresso do consumo, da dívida, dos infindáveis compromissos com pagamentos e débitos do povo brasileiro. Uma comoção fruto de uma ação popular. Essa é a independência que estamos por conquistar. Parafraseando o autor das idéias fora do lugar, Roberto Schuartz, é importante, ao tomarmos consciência disto, lutar por colocá-las em sua devida ordem: a do progresso, cujo sentido é o do poder popular.
(*) Economista, educadora popular e integrante da Consulta Popular/ES.
05/09/08
Veja também o Vídeo Pátria Amada Esquartejada
Existe uma pátria brasileira? Quantas nações somos? O que é ser brasileiro? Estas perguntas estão presentes em Pátria Amada Esquartejada, documentário sobre o projeto do mesmo nome realizado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em 1992, durante a gestão da prefeita Luísa Erundina e da secretária de cultura Marilena Chauí.
Naquele ano os 500 anos do "achamento" da América foi palco de muita discussão sobre a realidade brasileira. Uma série de encontros e debates foi promovida nas praças e escolas da cidade de São Paulo no formato de aulas públicas, nas quais os professores eram os sujeitos históricos temas das aulas. Até uma TV de rua foi montada para discutir qual Brasil existe. No filme, a questão indígena, a discriminação racial, a dominação econômica, a miséria, a educação deficitária são alguns dos maiores problemas desse país multifacetado.
Roberta Traspadini*
O mês de setembro é, para muitos, um período de comemoração pátria. Dia em que se festeja, com direito a parada cívica, o suposto logro da Independência do Brasil.
Foi com essa postura nacionalista, em que as distinções são camufladas e os valores cívicos são incorporados, que por muitos anos estudamos em nossas escolas a educação moral e cívica. Jurar respeito e amor à bandeira e demais símbolos pátrios era o elemento fundamental do adestramento educativo. Até hoje, nas competições olímpicas, esse quesito do nacionalismo, como amor à Nação, independente de suas crenças políticas, enche os olhos dos brasileiros de pura emoção.
E o que implica isto na realidade? Implica que, ante determinados temas e momentos, todos os sujeitos, brasileiros, devem estar na mesma energia da ordem e do progresso. Significa esquecer tanto dos sofrimentos próprios, quanto dos alheios. A construção de uma identidade nacional para além da classe, dos conflitos, das opções políticas e da vida cotidiana que se vive.
(Cenas do desfile e da festa de Sete de Setembro em São Paulo, que ocorreu no sambódromo do Anhembi, 2008)
Esse espírito nacionalista, tipicamente capitalizado para um sentido de vida e de processo político, sustentou o progresso do capital a partir de uma lógica escravizadora do trabalho e dos recursos naturais do país, educou, via adestramento, gerações que, ao incorporarem o sentido pátrio, renegaram sua própria situação conflitiva de classe.
A intencionalidade por trás dessa concepção política é a de colocar todos os sujeitos numa única linha sobre o sentido do sentir pátrio, para além do que se vive. Nada mais trágico. Os desfiles que, na aparência, revelam belezas de trajes, de sons e de posturas, na essência camuflam um cotidiano de grande diferença e exclusão. Um cotidiano, inclusive, de muita postura raivosa de classe: os poucos detentores de muitos recursos, culpando os muitos, detentores de muitas dívidas, sobre seu processo de não progresso.
As crianças das escolas públicas vão às ruas. Talvez este seja o único momento de visibilidade para além de sua vida como brasileiros, independente de onde vivam: a periferia. E isso é o mais brutal. Reforçar nos sujeitos o amor ao País, sem forçá-los a entender o desamor de grupos políticos historicamente no poder. Poder este consolidado para responder a seus interesses específicos – de classe - e não gerais – de todos indistintamente - nacionais.
(Representando uma vitória-régia, estudante participa de desfile cívico-militar na Esplanada dos Ministérios, em BrasíliaWilson Dias/Abr)
O nacional é composto de várias partes e por várias classes. E o sentido dado a ele não pode ser diferente. O nacional burguês - nacional ruralista, financeiro e comercial -, defende um Brasil para poucos lucradores, logrado pelo suor de muitos. O nacional popular, dos pequenos agricultores, sem terras, ou com terras conquistadas por eles e desde seu próprio suor, defende um Brasil em que muitos tenham, não só a oportunidade, mas a ordem do progresso sobre suas mãos.
Após anos de escravidão, mesmo com a lei Áurea assinada, o que temos é a vitória do progresso resultado da ordem burguesa. Um progresso instituído de fora para dentro, no período anterior - colonial -e que, no império, com a independência, reverteu à lógica interna a mesma reprodução anterior. Ou seja, a ordem do progresso, o progresso da ordem burguesa.
Mas, quem ganha? Quem progride? Quem vive do seu próprio suor, e quem vive do suor alheio? Essas são perguntas geradoras que qualquer sujeito, como educador popular, deve se fazer ao viver o dia pátrio. Viver o histórico sentido pátrio brasileiro, é reviver anos de exploração, exclusão e alienação, de muitos, implementados por um pequeno grupo em nome dos supostos valores nacionais.
Numa perspectiva nacionalista burguesa, o sentido pátrio registrado na nossa bandeira ganha evidência a partir das conquistas de ganho capitalistas. Ou as cores da bandeira não simbolizam a vitória do capital sobre o trabalho no âmbito nacional? Com a particularidade histórica de que, em meio ao cenário global de ação das transnacionais, o território tenha se transformado numa terra de gigantes internacionais, aparentemente sem pátria, sem fronteiras para seus ganhos.
Se os verdes são as matas, o amarelo as riquezas preciosas, o azul a beleza do céu e a gigantesca preciosidade litorânea – principalmente no tema da energia e da água -, e o branco os estados da federação, como ler então a ordem e o progresso? A Amazônia, as terras da raposa do sol, as várias serras peladas, as riquezas das empresas antes estatais, agora, (trans)nacionais - CVRD -, os transportes de ganhos privados terrestres, marítimos e aéreos, e, principalmente, o tema da energia, da água e da alimentação nas mãos das grandes corporações internacionais, são bons exemplos cotidianos do paradoxo que se vive entre desfiles pátrios e vidas cotidianas de exclusão e exploração, protagonizadas pelo povo brasileiro, em nome das benesses do capital.
A (in)dependência do Brasil, no sentido popular, como algo tomado e protagonizado pelo povo, para o povo na construção de um projeto nacional soberano não só nunca ocorreu no Brasil, como está, atualmente, muito à margem de qualquer discussão. Retomar o nacional popular é, sem sombra de dúvidas, dar um significado de classe tanto para o que se tem, quanto para como se chegou ao que se tem: um Brasil da ordem e progresso de poucos a partir da exclusão de muitos.
Por isso o hino nacional, por mais comoção que possa causar, não pode velar, tem que nos ajudar a revelar o elitismo por trás da moral e cívica nacionalista burguesa. O hino nacional é um reflexo à exaltação da classe vitoriosa – a elite - ao longo dos tempos, na luta por um Brasil soberano e nacional, quando útil, e aberto, quando mais rentável, em conformidade com seus interesses territoriais de ganhos sem fim.
(O presidente Lula, ex-metalúrgico, eleito em 2002 e reeleito em 2006, desfila em carro aberto nas comemorações do 7 de setembro no DF)
A ordem e o progresso do povo brasileiro pode e deve assaltar as ruas, reivindicando, protestando e projetando, para além do que se tem, o que se quer. Necessitamos da substituição dos desfiles pátrios, de boas vestimentas e boas canções, com um público passivo assistindo, por uma nova ordem e progresso. Necessitamos de uma ação rumo a um outro Brasil, a uma outra ordem, para além do progresso do consumo, da dívida, dos infindáveis compromissos com pagamentos e débitos do povo brasileiro. Uma comoção fruto de uma ação popular. Essa é a independência que estamos por conquistar. Parafraseando o autor das idéias fora do lugar, Roberto Schuartz, é importante, ao tomarmos consciência disto, lutar por colocá-las em sua devida ordem: a do progresso, cujo sentido é o do poder popular.
(*) Economista, educadora popular e integrante da Consulta Popular/ES.
05/09/08
Veja também o Vídeo Pátria Amada Esquartejada
Existe uma pátria brasileira? Quantas nações somos? O que é ser brasileiro? Estas perguntas estão presentes em Pátria Amada Esquartejada, documentário sobre o projeto do mesmo nome realizado pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, em 1992, durante a gestão da prefeita Luísa Erundina e da secretária de cultura Marilena Chauí.
Naquele ano os 500 anos do "achamento" da América foi palco de muita discussão sobre a realidade brasileira. Uma série de encontros e debates foi promovida nas praças e escolas da cidade de São Paulo no formato de aulas públicas, nas quais os professores eram os sujeitos históricos temas das aulas. Até uma TV de rua foi montada para discutir qual Brasil existe. No filme, a questão indígena, a discriminação racial, a dominação econômica, a miséria, a educação deficitária são alguns dos maiores problemas desse país multifacetado.
Indicações de uso:
Este filme traz uma reflexão sobre a formação e atualidade da nação brasileira. Pode ser usado nas aulas ára debater a história, sociedade, cultura, direitos humanos e política brasileira.
Ficha técnica:
Direção: Eduardo Ferreira; 1992; 32 minutos
Produção: TV Anhembi – São Paulo
Realização: Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo
2 comentários:
Amei o artigo de vcs sobre o 7 de setembro. Sou coordenadora pedagógica de uma cidade no interior da Paraíba, nossa escola tem 21 anos de existência e durante este período nunca desfilamos, justamente por isso é inevitável o questionamento dos nossos próprios alunos e de outras pessoas sobre o porque da nossa não participação nos desfiles. No ano passado iniciamos um projeto para trabalhar a semana da Pátria de forma crítica e escolhemos como culminância uma Caminhada da Independência pelas ruas da cidade onde os alunos puderam mostrar o que desenvolveram nestes estudos. Neste ano iremos fazer nossa 2ª Caminhada e resolvemos trabalhar exatamente com este tema, para criar em nossos alunos esta visão crítica sobre nossa real (in)dependência. Se tiverem mais algum material neste sentido e puderem me fornecer ficarei muito grata.
Aguardo contato.
Até Breve.
Jaqueline Querino de Freitas
Remígio - Paraíba
jaqueline_freitas@hotmail.com
Ola, sou professora de história da rede estadual do rio de janeiro. me formei na universidade federal fluminense e num dos cursos que fiz lá, lemos e discutimos alguns artigos da publicação "patraia amada esquartejada"...é muito interessante!
gostraia de saber como podemos ter acesso ao vídeo produzido a partir da pesquisa. entrei em contato com a secretaria de cultura de são paulo, mas não obtive nenhuma resposta.
Aguardo Contato.
Andreza Prevot
Niterói, RJ
andreza.prevot@gmail.com
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