Bem-vindo/a ao blog da coleção de História nota 10 no PNLD-2008 e Prêmio Jabuti 2008.

Bem-vindos, professores!
Este é o nosso espaço para promover o diálogo entre as autoras da coleção HISTÓRIA EM PROJETOS e os professores que apostam no nosso trabalho.
É também um espaço reservado para a expressão dos professores que desejam publicizar suas produções e projetos desenvolvidos em sala de aula.
Clique aqui, conheça nossos objetivos e saiba como contribuir.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Bolívia: A Guerra do Gás Continua



O interessante é que as classes/etnias tentam se reapropriar do gás, o elemento de uma unidade nacional que vem se constituindo a partir do indígena

O interessante é que as classes/etnias tentam se reapropriar do gás, o elemento de uma unidade nacional que vem se constituindo a partir do indígena

15/09/2008

Carlos Walter Porto-Gonçalves e Marcelo Câmara* (Brasil de Fato)

Em outubro de 2003 a Bolívia se via diante de amplas mobilizações callejeras que se aglutinaram em função da manifesta vontade do governo de então - Gonzalo Sánchez de Lozada - de exportar o gás boliviano pelo Chile, episódio que ficou conhecido como Guerra del Gás. Somente um homem que fala um espanhol com forte sotaque inglês, ou melhor, norte-americanizado, como o Sr. Goni de Lozada, seria capaz de fazer uma proposta daquele teor, ignorando não só o tempo de longa duração da história do povo boliviano que remete à perda de território para aquele país vizinho, como mostrava completa ignorância com o tempo de curta duração que, em 2000, mobilizara amplas camadas do país contra a privatização da água em Cochabamba, na chamada Guerra del Água. A ignorância, misto de soberba e onipotência, que tão bem caracteriza a tradicional classe/etnia dominante criollo/mestiza boliviana não se apercebia que o conjunto de políticas iniciado pelo mesmo Goni de Lozada, em 1985, no perfeito receituário recomendado pelo Banco Mundial e o FMI, estava desabando. A quebra do setor mineral do país com o desmonte das empresas estatais fragilizaria um dos principais pólos de resistência popular no país, a histórica COB - Central Obrera Boliviana - mas engendraria um dos fenômenos de novo tipo que vem marcando o país, e para o qual as ciências sociais não têm um nome para caracterizar o processo, qual seja, a recampenização desse proletariado mineiro que agora se dispersava. Trata-se, na verdade, da reterritorialização camponesa desse proletariado em dispersão, sobretudo pelos vales do Chapare, quando passam a se dedicar em grande parte ao cultivo de coca. E na Bolívia, assim como no Equador, Peru, México, Guatemala, Paraguai e sul do Chile, o conceito proposto por Darci Ribeiro de indigenato, qual seja, um campesinato etnicamente diferenciado, tem enormes implicações sociais e culturais e, cada vez mais, políticas. A geografia social boliviana, assim como a equatoriana, nos ajuda a entender a força do indigenato insurgente, conforme nos ensina o antropólogo Xavier Albó, na medida em que ao mesmo tempo em que parte dos antigos mineiros que se reterritorializam enquanto camponeses seguem mantendo importantes relações com as matrizes culturais dos povos originários e com as populações urbanas em função das relações sócio-espaciais mantidas entre as cidades com o altiplano. O melhor exemplo disso é a população de El Alto, cidade onde está localizado o aeroporto que dá acesso à capital La Paz, que dos seus 90 mil habitantes, em 1976, tem, hoje, aproximadamente 900 mil habitantes, em sua grande maioria indígena, que mantêm fortes vínculos com o vasto altiplano boliviano onde os ayllus, unidades territorial tradicional, mantém-se enquanto propriedade familiar-comunitária e estrutura sócio-política vigente (binômio tupus-ayllus). Na própria cidade de El Alto é marcante a reinvenção de instituições dos povos originários como é o caso das Juntas Vecinales, estruturas de perfil organizativo onde são nítidas as memórias dessa cultura organizacional.

Um hibridismo explosivo então se configura quando uma cultura político-sindical operária - como a rica tradição dos mineiros bolivianos - se encontra com a coca e, assim, com uma história de longuíssima duração que remete à ancestralidade indígena atualizada por meio desse campesinato cocalero que, por sua vez, está frente a frente com a intervenção imperialista estadunidense que, desde os anos oitenta, tenta impor a erradicação da coca. Uma declaração do então embaixador estadunidense Manuel Rocha, em abril de 2001, dá o tom da intervenção: “Bolívia es el país em la región (andina) que mejor cumplió en la lucha contra el narcotráfico; (en Washington) están admirados de lo que pasó em estos tres años en Bolívia” (La Razón, 18/04/2001, p.Política, 3-A). Admiracion esta que não só ignora as relações ancestrais dos povos andinos com a folha de coca, como se mostra especialmente insensível às dramáticas conseqüências dos programas de erradicação para o campesinato chapareño. A exigência estadunidense por “Coca Cero”, negando a reivindicação do indigenato cocalero que exigia a legalidade de parte do cultivo de coca que alegava não se vincular aos circuitos da narco-burguesia boliviano-estadunidense, mas sim à cultura ancestral quéchua/aymara e aos hábitos tradicionais de consumo, ensejará uma resposta de Evo Morales que afirmará que “cuando hablan de Coca Cero es como si estuvieran hablando de cero de quechuas-aymaras. Es el genocídio!”. Num país em que mais de 60% da população é indígena pode-se dizer que a arrogante declaração do embaixador dos EEUU adicionava um elemento imperialista a um movimento já em si contundente, e começava-se, aí, a construir uma liderança nacional em torno do indígena na Bolívia com forte caráter anti-imperialista.

Acompanhando um processo em curso em toda a América Latina onde a resistência contra as políticas neoliberais acabou por derrubar cerca de 20 governos desde 1989, a Bolívia terá num original movimento indígena o eixo em torno do qual um longo e exitoso processo de resistência se ensejará. O movimento indígena boliviano é original na medida em que se mostra visível antes do grande 1° de janeiro Zapatista de 1994, pois já em 1990 organiza, desde as Terras Baixas do Oriente, a Marcha pela Dignidade e pelo Território. É interessante notar que até mesmo a palavra dignidade que terá grande força no ideário zapatista constava explicitamente nos cartazes do movimento indígena boliviano, aliás mesmo título dado pelos indígenas equatorianos que também organizam sua Marcha pela Dignidade e pelo Território em 1990. O movimento indígena boliviano não só foi o primeiro a se manifestar, tornando-se nacionalmente visível, como será o primeiro a dar forma nacional às suas lutas elegendo Evo Morales em 2005.

A truculência histórica da classe/etnia dominante na Bolívia se encarregaria de oferecer os ingredientes de sofrimento com os massacres que se seguiram às mobilizações callejeras pela reapropriação social do gás em 2003 com dezenas de bolivianos sendo assassinados pelas forças militares a mando do então Presidente Goni de Lozada.

Desde 2006, quando Evo Morales tomou posse e, sobretudo depois que o amplo movimento social conseguiu maioria na Constituinte através de seu “Instrumento para la Soberanía de los Pueblos” - que é o MAS - Movimento Al Socialismo - que os setores retrógrados das classes/etnias dominantes bolivianas vêm fazendo de tudo para inviabilizar o processo democrático de mudança em curso no país, seja por meio de autonomias separatistas, seja com questões como a mudança da capital e a conseqüente inviabilização dos trabalhos da Constituinte, mas também, sobretudo, com o maciço uso da máquina midiática que desqualifica todos os dias, o dia todo, toda e qualquer medida governamental.

Cabe aqui recordar o fato de que um dos impasses cruciais nas discussões na Assembléia Constituinte foi a exigência, pela oposição, da necessidade de um mínimo de 2/3 dos votos dos constituintes para a aprovação da Carta Magna, como requisito supostamente essencial para um resultado democrático que contemplasse a vontade das minorias e aprovasse a nova constituição amplamente discutida. Essa mesma oposição, em um passado não muito distante no qual o papel oposição não lhes cabia, se regozijava no parlamento aplicando aquilo que ficou conhecido como “rodillo parlamentário”, um sistema de composição de alianças esdrúxulas e/ou improváveis para a composição de 50% mais um dos votos das câmaras no parlamento, aprovando o que lhes fosse de interesse. Num interessante sinal dos tempos, hoje, quando já não são mais capazes de compor uma maioria simples que lhes atenda os desejos, tornaram-se ardorosos defensores da democracia das minorias.

Porém, mesmo com todo o apoio da mídia para tentar desestabilizar o governo durante o referendum revocatório, Evo Morales conseguiu ampliar seu apoio popular tendo passado de 53% dos votos com que se elegeu, em dezembro de 2005, para 67%, em agosto de 2008! Mesmo assim, e tendo convidado os seus oponentes ao diálogo, no que foi contestado por parte de algumas lideranças populares que exigiam mano dura, as classes/etnias dominantes acantonadas na Meia Lua, agora Minguante com a derrota em Chuquisaca, resistem e exigem que o Presidente abra mão de uma gestão nacional dos recursos originários - justamente dos hidrocarbunetos - tendo inclusive desencadeado ações terroristas contra instalações da empresa que com tanto sacrifício foi nacionalizada pelas lutas e mortes recentes de bolivianos e bolivianas no ainda vivo Outubro Sangrento da Guerra do Gás de 2003.

O interessante é que as classes/etnias dominantes capitaneadas por Santa Cruz tentam se reapropriar do gás, o elemento de uma unidade nacional que vem se constituindo a partir do indígena num país profundamente fragmentado social e territorialmente, parte do caráter abigarrado da sociedade boliviana, como nos ensina René Zabaleta Mercado: um “Estado aparente”, incapaz de articular as diferentes temporalidades/territorialidades existentes no país.

A unidade nacional que se tenta construir a partir da reapropriação do gás natural, fruto das lutas e do sangue derramado nas ruas de El Alto, tem sua lógica subvertida pela elite lunática ao definir os hidrocarbonetos como recurso praticamente exclusivo daqueles departamentos de onde é extraído, discurso que logra obter um nítido apoio popular nessas regiões, sem que se apercebam de uma lógica inerente a esse processo, qual seja, a de um saudosismo pela ingerência estrangeira na administração desse recurso, afora seu anti-indigenismo histórico.

A postura de não-enfrentamento direto com que o comandante em chefe das Forças Armadas vem conduzindo o processo, abdicando de prerrogativas legais diante de uma clara tentativa de secessão, deve ser entendida como parte do profundo aprendizado político democrático que o movimento indígena-camponês boliviano experimentou, onde 1952 não é uma data qualquer. A recusa a aplicar as mesmas medidas de força com as quais foram sucessivamente reprimidos ao longo da história boliviana tem seu fundamento na compreensão da importância da construção de um núcleo comum, apropriando-nos aqui da formulação do politólogo Luis Tapia, que seja resultado do diálogo entre os diferentes setores.

Que não se confunda a disposição incessante ao diálogo com fraqueza. Este governo é herdeiro e tributário de uma luta que bem começou há alguns séculos, quando as botas dos irmãos Cortés tocaram estas terras pela primeira vez. É essa memória radicalizada - não o radicalismo midiaticamente condenado, extremista e inconseqüente - mas o de uma luta que tem raízes profundas, que se expressam na defesa firme que o governo Evo Morales faz daqueles que tiveram sua história negada. E que o exemplo de El Alto insiste teimosamente em não nos deixar esquecer.

Jallalla Bolivia!


Carlos Walter Porto Gonçalves é doutor em Geografia e Professor do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Foi presidente da Associação dos Geógrafos Brasileiros (1998-2000).

Marcelo Câmara é professor de Geografia da América Latina e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nenhum comentário: