Desde o final dos anos oitenta, com a promulgação da Constituição Federal em 1988 e com a realização de eleições diretas para todas as esferas de governo do país, o Brasil vem sendo considerado um Estado Democrático de Direito - sendo inclusive signatário dos principais tratados e convenções internacionais que regulam os direitos fundamentais da pessoa humana. Neste ano de 2008, em que será comemorado o 60º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, aprovada pela ONU, no Brasil comemoram-se também outras datas históricas que seriam marcos da construção de uma ordem democrática, como a abolição formal da escravatura em 1888 e a já citada Constituição de 1988.
Entretanto, estas comemorações enaltecem ordenamentos jurídicos cujas garantias aos cidadãos, como se sabe, não estão sendo colocadas em prática. Muito ao contrário, no caso brasileiro, o que vemos é o Estado, por meio de agentes dos seus três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e ao nível da União e dos Estados da Federação, violar sistematicamente os direitos humanos das populações pobres do campo, das favelas e periferias urbanas (com ainda mais violência contra jovens negros, quilombolas, indígenas e seus descendentes). A cada dia fica mais evidente que o Estado brasileiro é um dos principais agentes violadores dos direitos humanos, sendo ele justamente a instituição que, nos seus próprios termos, deveria garantir os direitos e a segurança, e promover a justiça social.
Na verdade, o que sentimos cotidianamente é que se trata de um Estado penal habituado a julgar, condenar e punir uma ampla parcela de seus cidadãos, sobretudo a maioria mais pobre (indígena e negra, em especial). Um Estado que tem procurado criminalizar cada vez mais os trabalhadores desempregados ou empregados, criminalizar exatamente as organizações, sindicatos e movimentos sociais populares que lutam pelo cumprimento dos direitos básicos renegados por ele próprio, reivindicando uma justiça social mais ampla e por esta razão sendo reprimidos com medidas verdadeiramente fascistas. Um Estado também célere em praticar prisões preventivas e manter presas sem julgamento pessoas que na maior parte das vezes cometeram (ou supostamente cometeram) pequenos delitos contra o patrimônio dos ricos ou contra a chamada “ordem social”.
Enquanto isso, assistimos o tratamento absolutamente diferenciado e privilegiado, em todos os níveis, àqueles poucos ricos e famosos cujos altos crimes vêm à tona, e que ainda assim seguem desfrutando da garantia de impunidade no Brasil e no exterior. Por outro lado, esse mesmo Estado penal aplica somente para os pequenos crimes praticados ou supostamente praticados por pessoas pobres da periferia (como furtos e o comércio miúdo de drogas) uma punição desproporcional, com penas elevadíssimas. E ainda, depois de questionável julgamento, é esse mesmo Estado penal que não respeita as garantias previstas em sua própria Lei de Execuções Penais, em grande medida pela omissão e inoperância do Poder Judiciário, muitas vezes agindo de maneira deliberada.
Como se não bastasse, a ação violenta das polícias contra movimentos sociais e comunidades pobres não só é constante (geralmente garantidas pelas históricas “ordens de despejo” e pelas rotineiras “operações militares”, ou por esta nova esdrúxula criatura jurídica batizada de “mandado de busca e apreensão coletivo”), como é comum acabar em execuções sumárias concentradas ou difusas. Tal Estado, portanto, tem também seu lado exterminador. Conforme relatório preliminar de Philip Alston, relator da própria Organização das Nações Unidas para execuções sumárias e extrajudiciais, apresentado em maio de 2008: os policiais matam em serviço e fora de serviço. Porém, nenhuma investigação é feita em relação ao pretexto para a execução, isto é: a "suspeita" e o suposto confronto. Todo caso é classificado de "Resistência Seguida de Morte" ou "Auto de Resistência", e a investigação se concentra na vida do morto. Sabe-se, no entanto, que os policiais são preparados ideológica e praticamente para matar.
Por último, é também na qualidade de Estado Democrático de Direito que o Brasil tem sido convidado a participar com destaque de missões militares e “humanitárias” da Organização das Nações Unidas. Como, por emblemático exemplo, a Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (Minustah), a respeito da qual a cada dia chegam mais denúncias de mortes, abusos e violências de vários tipos contra a população negra pobre daquele país. Denúncias que se somam aos crescentes indícios de que tais experiências internacionais seriam, na verdade, laboratórios militares para intercâmbio de operações repressivas desdobradas, sobretudo, contra comunidades pobres e movimentos populares nos territórios nacionais.
Diante dessa realidade, por iniciativa de uma série de organizações e movimentos sociais do Brasil, está sendo proposta a realização de um Tribunal Popular que julgue o Estado brasileiro. Um tribunal que mostre a responsabilidade do Estado por todas estas violações cotidianas, que proponha uma reflexão profunda sobre sua atuação. Nossa iniciativa pretende inverter radicalmente esta lógica unilateral que está naturalizada e acobertada pela suposta "lógica democrática", explicitando as inúmeras contradições e barbaridades da atual ordem social capitalista que tem exatamente neste Estado um instrumento privilegiado para a reprodução ampliada de suas injustiças e violências.
Por isso, propomos um Tribunal que coloque o próprio Estado no Banco dos Réus, nos moldes de várias outras iniciativas populares semelhantes, com um caráter crítico, didático e conscientizador. Vamos colocar o Estado Brasileiro diante das leis internacionais e nacionais que ele mesmo reconhece formalmente, mas não cumpre.
O Tribunal Popular, assim, se estenderá por quatro grandes áreas emblemáticas:
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Violência estatal sob pretexto de segurança pública em comunidades urbanas pobres: dentre outros, o caso do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro;
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Violência estatal no sistema prisional: a situação do sistema carcerário e as execuções sumárias da juventude negra pobre na Bahia;
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Violência estatal contra a juventude pobre, em sua maioria negra: os crimes de maio/2006 em São Paulo e o histórico genocida de execuções sumárias sistemáticas;
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Violência estatal contra movimentos sociais e a criminalização da luta sindical, pela terra e pelo meio-ambiente.
Num momento em que vem à tona a discussão sobre a “a memória e a verdade” acerca das torturas e assassinatos cometidos pela ditadura civil-miltar anterior, pretendemos deixar muito claro que toda violência contínua do Estado Brasileiro e de seus agentes, lesiva à humanidade ontem e hoje, não prescreverá jamais no juízo histórico de sua população. Nesse sentido, conclamamos todos(as) a estarem presentes, contribuírem e participarem deste processo já iniciado que culminará, nos dias 04 a 06 de Dezembro de 2008, com a realização do "Tribunal Popular: o Estado Brasileiro no banco dos réus" na Sala dos Estudantes da Faculdade de Direito (USP), no Largo São Francisco em São Paulo-SP. Até lá, uma série de iniciativas relacionadas serão realizadas, para as quais todos(as) estão convidados (as).
ASSINAM ESTA 1ª CONVOCATÓRIA:
ALAIETS, ASFAP/BA, Associação Amparar, APROPUC-SP, Assembléia Popular, Brasil de Fato, CAJP Mariana Criola, CDHSapopemba, CIMI-SP, Coletivo Contra Tortura, Comitê Contra a Criminalização da Criança e Adolescente, Conselho Federal de Serviço Social, Conselho Regional de Psicologia 6ª região, Conselho Federal de Serviço Social, Comunidade Cidadã, CONLUTAS, Consulta Popular, Correio da Cidadania, CRP/RJ, DCE-Livre UFSCAR, DCE-Livre USP, Escritório Modelo DOM Paulo Evaristo Arns (PUC-SP), Fórum da Juventude Negra/BA, Fórum das Pastorais Sociais e CEBs da Arquidiocese de SP, Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente/SP, Fórum Social por uma Sociedade sem Manicômios, IDDH/RJ, Instituto Carioca de Criminologia, Instituto Pedra de Raio/BA, Juízes pela Democracia, Justiça Global, Kilombagem, MLST, INTERSINDICAL, Movimento Defesa da Favela, Movimento Negro Unificado (MNU), MST, NEPEDH, Observatório das Violências Policiais de São Paulo (OVP-SP), ODH Projeto Legal, Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência/RJ, Quilombo X/BA, Reaja ou será mort@/BA, Rede Social de Justiça e Direitos Humanos, Resistência Comunitária/BA, Sindicato dos Advogados de SP, SINTUSP, Tortura Nunca Mais/RJ
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