Vozes d’aquém e d’além-mar
Lançamento dos cinco volumes da coleção "Literaturas de Língua Portuguesa: Marcos e Marcas" lança luzes sobre importantes obras e autores de Cabo Verde, Angola e Moçambique
(Marcello Rollemberg)
Minha pátria é minha língua, já escreveu o poeta. E a pátria/língua do poeta em questão, Fernando Pessoa, era o português, Portugal. Mas essa pátria à qual Pessoa se referia é muito mais ampla, verdadeiros heterônimos geográficos e lingüísticos que têm como raiz comum o português lusitano, aquele que muitos estudiosos indicam como variação do galego e que, saindo da Galícia espanhola, ganhou vida como idioma e cultura em terras de Dom Alfonso Henriques. E depois, o mundo. Brasil, Portugal, Cabo Verde, Angola, Moçambique são pátrias irmanadas e separadas pela mesma língua, parafraseando-se livremente Bernard Shaw. A camisola brasileira é distinta da lusitana – em semântica e em significado –, assim como a bicha lusa é menos espalhafatosa. Ex-colônias que agregaram ao português original elementos culturais e lingüísticos dos povos que as ajudaram a se construir como nações, Brasil, Angola, Moçambique e Cabo Verde têm na língua original da antiga metrópole seu ponto em comum. E seu ponto de distensão. Tangenciam-se e se tocam, mas são outras coisas, enfim. São outras culturas. São outras literaturas.
Justamente para compreender esse melting pot cultural que nasce do filão seminal do português lusitano e se desmembra em culturas ricas e diversificadas, acaba de ser lançada uma coleção de cinco livros que pode – e muito – ajudar leitores, professores e estudiosos a perceberem melhor a fina alquimia cultural de Portugal, Brasil e de países africanos de língua portuguesa. Trata-se da coleção Literaturas de Língua Portuguesa: Marcos e Marcas, editada pela Arte e Ciência Editora, em parceria com a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo (por meio do Programa de Ação Cultural) e com o Instituto Brasileiro de Incentivo ao Mérito, o Ibim.
São ao todo cinco volumes, que tratam da formação cultural e literária de países ao mesmo tempo tão próximos e tão apartados – não apenas geograficamente – quanto Brasil, Portugal, Cabo Verde, Angola e Moçambique. Cada volume ficou a cargo de um ou dois professores especializados no tema em questão, apresentando um bem-acabado quadro cultural do país abordado. Dos sete especialistas convidados a compor a obra, a USP colabora com quatro: Benjamin Abdala Junior, que assina o livro sobre Portugal; Tania Macêdo e Rita Chaves, que escrevem sobre Angola – Tania ainda assina, ao lado de Vera Maquêa, da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), o volume sobre Moçambique –, e Maria Aparecida Santilli, responsável pelo livro que trata de Cabo Verde. Maria Aparecida é também a organizadora da coleção, ao lado de Suely Fadul Flory, da Universidade de Marília (Unimar). O volume sobre o Brasil está a cargo de Antonio Manoel dos Santos Silva e Romildo Sant’Anna, da Unimar.
Originalmente, a coleção foi pensada na capacitação de professores, principalmente aqueles do ensino fundamental e médio, já que desde 2003 a disciplina História e Cultura Afro-brasileira tornou-se obrigatória no país, tanto na rede pública quanto na privada. “A presente coleção preenche uma lacuna na formação do professor, agora muito mais pungente no Brasil”, informa o texto de apresentação da coleção. Mas não só os professores podem e devem usufruir da caixa bem-acabada e dos cinco volumes acondicionados nela. Esta é também uma coleção que tem tudo para atrair uma parcela de leitores que, por mais que não exerçam qualquer atividade em sala de aula, têm curiosidade acerca da literatura de língua portuguesa que é feita nos chamados – com o perdão do clichê – “países irmãos”.
Mia Couto e Pepetela – Afinal, independentemente de qualquer ação governamental, a literatura de língua portuguesa fora do Brasil tem chamado a atenção de leitores já há algum tempo. E não está se falando de José Saramago, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz e outros top de linha das letras lusitanas. As editoras brasileiras têm apostado – com maior ou menor intensidade, é verdade, mas ainda assim com interesse – no talento de nomes como Mia Couto, José Craveirinha, Pepetela e Jorge Barbosa, autores daquela enorme porção de terra africana que têm muito a dizer e a trocar com o público do lado de cá desse Mar Oceano.
E a relação com autores brasileiros é direta. Tania Macêdo e Vera Maquêa, por exemplo, traçam, em seu estudo sobre a literatura moçambicana, paralelos entre a obra de Mia Couto e as de Milton Hatoum e Guimarães Rosa, mostrando como o autor amazonense e o homem de sertões e veredas encontram eco na bela, refinada – e ao mesmo tempo telúrica – prosa do autor de Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra.
Mas se o moçambicano Mia Couto e o angolano Pepetela começam a ficar bem conhecidos por aqui, outros nomes das letras luso-africanas (se é que se pode denominá-las assim) ainda caminham na penumbra, por mais que um círculo ainda fechado saiba de sua existência. É o caso, por exemplo, do poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa. Da mesma forma que a curiosidade e o engenho do navegador português Diogo Gomes o levaram a dar na costa daquele arquipélago que se tornaria Cabo Verde, também o leitor brasileiro deveria atentar para os versos de Barbosa – até porque seu olhar atravessou o Atlântico e se cravou entre nós. “Aqui onde estou, no outro lado do mesmo mar,/ Tu me preocupas, Manuel Bandeira,/ Meu irmão Atlântico”, escreveu ele em seu poema “Carta para Manuel Bandeira”.
Não só ele, mas autores como Eduardo White e Ungulani Ba Ka Khosa (Moçambique), Maurício Gomes e Boaventura Cardoso (Angola) e Onésimo Silveira e Vera Duarte (Cabo Verde), entre tantos outros, merecem e precisam ser conhecidos. Não por força de lei ou por necessidades acadêmicas. Mas porque os trajetos percorridos por esses países – e seus autores – têm origem similar aos que conhecemos tão bem. E marcas sociais e culturais que em muitos casos se espelham e se refletem. São “vasos intercambiantes” em muitos aspectos, e, se houve desvãos com o tempo e com a própria história, a cultura e a língua seminais tratam de aparar arestas. Por mais que outras possam ser criadas.
Esta talvez seja a maior validade desta coleção recém-lançada: não elaborar, pela enésima vez, estudos acerca da literatura brasileira e das letras portuguesas, com todos seus parnasianismos, barrocos, modernismos e outros ismos – essenciais, sem dúvida, mas já bem estudados e pesquisados. É dar voz, nome e história às letras – aquelas africanas de sotaque tão conhecido – que ainda precisam ser melhor desvendadas e apreciadas.
Jornal da USP, ano XXIII nº.825 de 7 a 13 de abril de 2008.
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