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segunda-feira, 29 de setembro de 2008

ENTREVISTA: ERIC HOBSBAWM

A crise do capitalismo e a importância atual de Marx

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”.

Em entrevista a Marcello Musto, o historiador Eric Hobsbawm analisa a atualidade da obra de Marx e o renovado interesse que vem despertando nos últimos anos, mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. E fala sobre a necessidade de voltar a ler o pensador alemão: “Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista”.

Eric Hobsbawm é considerado um dos maiores historiadores vivos. É presidente do Birbeck College (London University) e professor emérito da New School for Social Research (Nova Iorque). Entre suas muitas obras, encontra-se a trilogia acerca do “longo século XIX”: “A Era da Revolução: Europa 1789-1848” (1962); “A Era do Capital: 1848-1874” (1975); “A Era do Império: 1875-1914 (1987) e o livro “A Era dos Extremos: o breve século XX, 1914-1991 (1994), todos traduzidos em vários idiomas.

Entrevistamos o historiador por ocasião da publicação do livro “Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later” (Os Manuscritos de Karl Marx. Elementos fundamentais para a Crítica da Economia Política, 150 anos depois).

Nesta conversa, abordamos o renovado interesse que os escritos de Marx vêm despertando nos últimos anos e mais ainda agora após a nova crise de Wall Street. Nosso colaborador Marcello Musto entrevistou Hobsbawm para Sin Permiso.

Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse. Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”.

Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal, George Soros, a seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”. Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?

Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado.

Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam.

A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin. Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.

Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.

Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada. Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?

Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente. Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.

As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo. É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.

Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?

Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.

Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.

No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista. Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”. Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso.

Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.

Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse” são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada. Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?

Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os "Grundrisse" provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados. Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx's Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).

Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”. Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias. Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse” hoje?

Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.

Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?

Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada. Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.

Tradução para Sin Permiso (inglês-espanhol): Gabriel Vargas Lozano
Tradução para Carta Maior (espanhol-português): Marco Aurélio Weissheimer

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Crise estadunidense: "é Chegada a hora da política"

O texto do sociólogo Boaventura de Sousa Santos e o discurso do presidente Luís Inácio da Silva se convergem na crítica à especulação financeira e na proposta de uma política mais humanizada.

Vale a pena ler o texto do sociólogo e ouvir o discurso do presidente brasileiro.

O impensável aconteceu

O Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingirem o nível de auto-destruição.

A palavra não aparece na mídia norte-americana, mas é disso que se trata: nacionalização. Perante as falências ocorridas, anunciadas ou iminentes de importantes bancos de investimento, das duas maiores sociedades hipotecárias do país e da maior seguradora do mundo, o governo dos EUA decidiu assumir o controle direto de uma parte importante do sistema financeiro.

A medida não é inédita pois o Governo interveio em outros momentos de crise profunda: em 1792 (no mandato do primeiro presidente do país), em 1907 (neste caso, o papel central na resolução da crise coube ao grande banco de então, J.P. Morgan, hoje, Morgan Stanley, também em risco), em 1929 (a grande depressão que durou até à Segunda Guerra Mundial: em 1933, 1000 norteamericanos por dia perdiam as suas casas a favor dos bancos) e 1985 (a crise das sociedades de poupança).

O que é novo na intervenção em curso é a sua magnitude e o fato de ela ocorrer ao fim de trinta anos de evangelização neoliberal conduzida com mão de ferro a nível global pelos EUA e pelas instituições financeiras por eles controladas, FMI e o Banco Mundial: mercados livres e, porque livres, eficientes; privatizações; desregulamentação; Estado fora da economia porque inerentemente corrupto e ineficiente; eliminação de restrições à acumulação de riqueza e à correspondente produção de miséria social.

Foi com estas receitas que se “resolveram” as crises financeiras da América Latina e da Ásia e que se impuseram ajustamentos estruturais em dezenas de países. Foi também com elas que milhões de pessoas foram lançadas no desemprego, perderam as suas terras ou os seus direitos laborais, tiveram de emigrar.

À luz disto, o impensável aconteceu: o Estado deixou de ser o problema para voltar a ser a solução; cada país tem o direito de fazer prevalecer o que entende ser o interesse nacional contra os ditames da globalização; o mercado não é, por si, racional e eficiente, apenas sabe racionalizar a sua irracionalidade e ineficiência enquanto estas não atingirem o nível de auto-destruição; o capital tem sempre o Estado à sua disposição e, consoante os ciclos, ora por via da regulação ora por via da desregulação. Esta não é a crise final do capitalismo e, mesmo se fosse, talvez a esquerda não soubesse o que fazer dela, tão generalizada foi a sua conversão ao evangelho neoliberal.

Muito continuará como dantes: o espiríto individualista, egoísta e anti-social que anima o capitalismo; o fato de que a fatura das crises é sempre paga por quem nada contribuiu para elas, a esmagadora maioria dos cidadãos, já que é com seu dinheiro que o Estado intervém e muitos perdem o emprego, a casa e a pensão.

Mas muito mais mudará. Primeiro, o declínio dos EUA como potência mundial atinge um novo patamar. Este país acaba de ser vítima das armas de destruição financeira massiça com que agrediu tantos países nas últimas décadas e a decisão “soberana” de se defender foi afinal induzida pela pressão dos seus credores estrangeiros (sobretudo chineses) que ameaçaram com uma fuga que seria devastadora para o actual american way of life.

Segundo, o FMI e o Banco Mundial deixaram de ter qualquer autoridade para impor as suas receitas, pois sempre usaram como bitola uma economia que se revela agora fantasma. A hipocrisia dos critérios duplos (uns válidos para os países do Norte global e outros válidos para os países do Sul global) está exposta com uma crueza chocante. Daqui em diante, a primazia do interesse nacional pode ditar, não só proteção e regulação específicas, como também taxas de juro subsidiadas para apoiar indústrias em perigo (como as que o Congresso dos EUA acaba de aprovar para o setor automóvel).

Não estamos perante uma desglobalização mas estamos certamente perante uma nova globalização pós-neoliberal internamente muito mais diversificada. Emergem novos regionalismos, já hoje presentes na África e na Ásia mas sobretudo importantes na América Latina, como o agora consolidado com a criação da União das Nações Sul-Americanas e do Banco do Sul. Por sua vez, a União Européia, o regionalismo mais avançado, terá que mudar o curso neoliberal da atual Comissão sob pena de ter o mesmo destino dos EUA.

Terceiro, as políticas de privatização da segurança social ficam desacreditadas: é eticamente monstruoso que seja possível acumular lucros fabulosos com o dinheiro de milhões trabalhadores humildes e abandonar estes à sua sorte quando a especulação dá errado. Quarto, o Estado que regressa como solução é o mesmo Estado que foi moral e institucionalmente destruído pelo neoliberalismo, o qual tudo fez para que sua profecia se cumprisse: transformar o Estado num antro de corrupção.

Isto significa que se o Estado não for profundamente reformado e democratizado em breve será, agora sim, um problema sem solução. Quinto, as mudanças na globalização hegemônica vão provocar mudanças na globalização dos movimentos sociais que vão certamente se refletir no Fórum Social Mundial: a nova centralidade das lutas nacionais e regionais; as relações com Estados e partidos progressistas e as lutas pela refundação democrática do Estado; contradições entre classes nacionais e transnacionais e as políticas de alianças.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).



Lula, "incansável defensor" dos pobres

Por Katherine Stapp, da IPS

Crédito de imagem: Mithre J. Sandrasagra/IPS


Nações Unidas, 23/09/2008 – O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que partiu de uma infância de pobreza para chegar a conduzir uma potência econômica que colocou o ideal de prosperidade inclusiva no centro de sua política de desenvolvimento, recebeu o Prêmio ao Sucesso Internacional concedido pela IPS (Inter Press Service). "Queremos honrá-lo porque lutou ombro a ombro com os despossuídos e os sem-terra, por seus esforços em iniciar e apoiar políticas de inclusão social e de resolução pacífica de conflitos, com o pleno exercício das liberdades e dos direitos humanos fundamentais, não apenas no Brasil, mas nas nações irmãs da América Latina", disse o diretor-geral da agência internacional de notícias IPS, Mario Lubetkin. O Presidente Lula se comprometeu profundamente com os esforços internacionais contra a pobreza e a fome, destacou Lubetkin, desempenhando um papel-chave para mobilizar o apoio de outros líderes mundiais e organizações internacionais.

A cerimônia de premiação aconteceu na sede mundial da Organização das Nações Unidas em Nova York às vésperas do segmento de alto nível da 63ª sessão da Assembléia Geral da ONU, da qual participarão mais de 150 governantes de todo o mundo. Em seu discurso, o mandatário brasileiro destacou a importância dos meios de comunicação livres e vibrantes no combate global à pobreza e à marginalização.

"Na medida em que avançamos para a justiça social e o pluralismo, a independência das fontes é fundamental para que o diálogo democrático seja esclarecedor e equilibrado", disse Lula. "O livre acesso à informação também é crucial para construir um mundo mais justo e próspero. Sabemos que um dos pilares da democracia e da liberdade é uma imprensa livre", acrescentou o Presidente. "Esta é uma das lições que aprendi durante a luta contra a repressão e o autoritarismo. A IPS trouxe maior pluralidade e diversidade à imprensa internacional. Durante 44 anos, a IPS deu voz aos que não têm voz. Hoje é mais crucial do que nunca na criação de diálogos Sul-Sul e alternativas às alianças existentes", afirmou Lula.

O Presidente brasileiro nasceu em 1945, sétimo filho de uma família de oito irmãos, na pequena cidade de Garanhuns, em Pernambuco. Começou a trabalhar aos 12 anos em uma lavanderia e passou por pequenos empregos até se converter em torneiro mecânico. Comprometeu-se com o trabalho sindical enquanto trabalhava em uma fábrica em São Paulo. Em 1975 foi eleito presidente do sindicato dos metalúrgicos e quatro anos mais tarde contribuiu para conduzir uma greve de 170 mil operários do setor.

"Sua carreira política é uma boa demonstração das virtudes da democracia", disse Enrique Iglesias, responsável pela Secretaria Geral Ibero-americana, uma iniciativa de cooperação política, cultural e econômica entre América Latina e os países da península Ibérica. Trata-se da "virtude de dar oportunidade de ser presidente de uma das maiores nações do planeta a um trabalhador com uma longa história de liderança sindical", disse Iglesias, encarregado do discurso principal da cerimônia.

Em 1980, a ditadura militar brasileira reprimiu o movimento sindical, apelando para a lei de segurança nacional e prendendo vários líderes, inclusive Lula, que permaneceu 30 dias atrás das grades. Nesse mesmo ano, Lula fundou o Partido dos Trabalhadores, que lhe permitiu em poucos anos se converter em líder da oposição e o levou à Presidência nas eleições de 2002, com 53 milhões de votos, após várias tentativas sem sucesso. O Presidente foi reeleito em 2006 com cerca de 58 milhões de fotos.

Os planos sociais colocados em prática em sua administração são elogiados por tirar da pobreza milhões de pessoas. Para enfrentar a desnutrição, que afeta cerca de 15,6 milhões de brasileiros, o governou implementou o programa Fome Zero, que inclui diferentes estratégias. A construção de cisternas para armazenar água da chuva na região do semi-árido, combate ao trabalho infantil, fortalecimento da agricultura familiar, subsídios aos alimentos e a outros produtos essenciais são alguns dos componentes do programa, que exige das famílias beneficiadas o comparecimento dos filhos à escola e a aplicação das vacinas obrigatórias.

Além disso, o governo cancelou dívidas superiores a US$ 1,7 bilhão contraídas por países muito pobres e participa de numerosos projetos de cooperação Sul-Sul, incluindo iniciativas de agricultura sustentável em Cuba e várias nações africanas. "Este tipo de informação nem sempre é divulgado pelos grandes meios de comunicação do Brasil e do exterior. Por essa razão, precisamos que a IPS seja um exemplo para a criação de outras agências similares", acrescentou.

No plano econômico, o Brasil diversificou sua base industrial e investiu em lucrativas exportações agrícolas e no petróleo, o que levou a um crescimento de 5,4% da atividade em 2007 e ao desenvolvimento de um poderoso mercado interno que torna o país menos vulnerável aos desequilíbrios do resto do mundo. "O Brasil é hoje um jogador importante na nova geração de economias emergentes que tentam mudar as regras do jogo do comércio e das finanças para construir um novo tipo de relações internacionais baseadas em uma distribuição mais justa de oportunidades entre o Norte e o Sul do mundo", disse Iglesias.

Também afirmou que o governo Lula focou sua atenção em "áreas que têm impacto direto nas camadas mais pobres da sociedade. Em uma geração o Brasil conseguiu grandes avanços na redução da pobreza e eliminação da fome e desnutrição. Isto se reflete em estatísticas, mas também no apoio das pessoas às políticas governamentais", afirmou Iglesias. Segundo o Banco Mundial, a brecha entre a renda dos mais ricos e dos mais pobres no Brasil diminuiu 6% desde 2001, mais do que em nenhum outro país vizinho.

Em uma tendência contrária à seguida por muitas nações, os 10% mas pobres dos brasileiros aumentou sua renda em 58% entre 2001 e 2006. "O senhor provou, por exemplo, que a sólida economia de seu país, obtida durante sua gestão, pode seguir lado a lado com a extensão de seus benefícios à maioria da população", disse Lubetkin. "E comprovou que o progresso econômico só tem sentido se serve para melhorar as condições de vida da sociedade em seu conjunto", acrescentou.

O Prêmio Ao Sucesso Internacional foi criado pela IPS em 1985 para homenagear jornalistas e líderes mundiais que contribuam para a paz, os direitos humanos, o poder de gênero, a boa governabilidade e a igualdade social e econômica. Entre os premiados estão a ex-primeira-dama da África do Sul, Graça Machel; a ex-primeira-dama da França, Danielle Mitterrand; os ex-secretários-gerais da ONU, Boutros Boutros-Ghali e Kofi Annan; o ex-presidente da Finlândia, MArtti Ahtisaari, e o Chamado Mundial à Ação contra a Pobreza (GCAP).

Fonte:(IPS/Envolverde)

terça-feira, 23 de setembro de 2008

HISTÓRIA EM PROJETOS É VENCEDORA DO PRÊMIO JABUTI 2008!

É com muita alegria que informo que a coleção História em Projetos recebeu o segundo lugar na categoria Didático e Paradidático Ensino Fundamental e Médio no 50º ano do prestigiado Prêmio Jabuti.

Convido os amigos que estiverem em Sampa para a cerimônia de entrega do Prêmio Jabuti no dia 31 de outubro na Sala São Paulo.


Tomo a liberdade de publicar aqui uma crônica que escrevi quando ganhei o meu primeiro Jabuti em 2005:

A LENTA TRAVESSIA

Conceição Oliveira e Carla Miucci, autoras da Coleção História em Projetos na entrega do prêmio Jabuti 2005 pela coleção Paratodos- História Editora Scipione.


Dia de rodízio, dia de Cerimônia do Prêmio Jabuti, horário de pico em Sampa.

A parceira de trabalho, Carla Miucci, companheiríssima e lindíssima passa em casa. Aprumadas, cabelões escovados e a beca nos trinques montamos em seu corcel rumo ao Memorial.

Marina morena estava linda feita uma gueixa. Seu sorriso e coraçãozinho batendo forte era a síntese da felicidade. A somatória do traje escolhido para vestir seu frágil corpinho de criança tornou-se também a síntese da proposta pedagógica vencedora: a diversidade é bela e precisa ser cuidada, celebrada, respeitada.

A família também refez travessias que começaram com a matriarca, Dona Terezinha. Comigo no ventre ela atravessou o sertão nordestino rumo ao pólo industrial cubatense na década de 1960. Ontem, de lá subiram a serra: Dona Terezinha, cuja história merece ser contada e conhecida, bastante orgulhosa, porque sabe o quanto ela é responsável pelo meu percurso; minha irmã, Néia e a sobrinha Letícia, sua filhota, que na hora dos aplausos gritou com seus pulmõezinhos de dois anos: Tiaaaaaaaaaaaaaaa Conceiçãooooooooooooooooooo. Lá do palco eu ouvi e vibrei.

Da Baixada Santista também vieram Márcia Bueno, Daniel Alves e Edna, meus queridos amigos de colegial, cuja amizade persiste firme e forte. Éramos um time e tanto em 1979, 80, 81 e continuamos sendo.

Veio também o parceiro da cria, Marcelo Monteiro estava ao meu lado, com nossa filhota no colo, feliz, tentando tirar uma foto daquela lonjura e estimulando Letícia a gritar uhuuuuuuuu!

Vieram do outro lado da cidade parceiros da época da universidade, parceiros de luta pela condição da mulher, contra o racismo, por uma educação de qualidade e verdadeiramente inclusiva: Beth Sousa, esta vitória também é sua.

Luciana, minha ex-aluna de mais uma década, estava também lá. Eu acompanhei sua trajetória de superação de dores. Seu sorriso intenso refletia minha alegria.

Havia amigos da Litteratura, recentes e antigos que o mundo virtual me trouxe: Adail Sobral, generoso como sempre, encheu-me de carinho e conquistou, sem surpresas, a admiração de meus amigos (como é bom, nestes momentos, termos ao nosso lado pessoas deste naipe). Susanna Florissi com aquele sorriso largo e uma humildade de gente grande também chamou a atenção dos meus velhos amigos e genuinamente vibrou com a minha conquista.

Asta Vonzodas coordenadora do PD-Literatura, Osvaldo Pastorelli, Renata Saladino, Simone, linda, graciosa e doce menina, que conheci na 4P, marcaram presença e me encheram de alegria.

Fátima e Letícia Oliver, que trouxeram belas orquídeas e que, igualmente, partilham projetos. Letícia quer ser escritora e era uma das crianças mais empolgadas na oficina dos acrósticos da Vila, vai longe esta guria.

Era gente de muitos mundos, de muitas histórias de muitas trajetórias que me fizeram sentir que esta vida vale a pena ser vivida, assim: sem tirar nem pôr.

Desde que o meu nome apareceu na lista dos finalistas, foram muitas as homenagens antecipadas. Em tudo que era canto pude sentir uma energia boa: nos scrap do orkut, nos posts dos tópicos, nas listas literárias, no mail, no msn, no vinho sorvido na casa da Fátima, Olivier na garrafa de bom vinho entregue pela Lazinha Adorno, no abraço de amigos que partilharam comigo diferentes itinerários.

O prefeito da cidade de Cubatão, na sexta-feira anterior à entrega do prêmio, fez uma singela e bonita homenagem. Pareceu um homem bom aquele, não sei se bom político/administrador. Percebi que seu gabinete precisa de reformas, aparentemente ele busca equilibrar um orçamento que, embora rico, é eternamente confiscado pelos precatórios. Foi médico durante muitos anos na cidade e quando me homenageava, perguntou-me se eu não havia sido sua paciente. Respondi a ele que havia sido uma adolescente saudável, mas que minha mãe fora atendida por ele. O secretário da educação foi meu professor, emocionado ele me abraçou e deve ter sentido a mesma sensação que tenho quando vejo a trajetória de meus alunos. Também eles compartilharam comigo esta vitória.

Quando Alamir Correa, em primeiríssima mão, foi o portador da boa nova e eu avisei alguns queridos, a alegria genuína espalhou-se. A impressão que tenho é que de algum modo ela tornou o mundo realmente melhor, uma espécie de remédio de ânimo para muitos que batalham dia-a-dia e que já haviam perdido as esperanças. Foi mais ou menos isso que Nálu Nogueira me disse no dia que soube que eu havia ganho o Jabuti. E senti a mesma certeza na fala de muitos que me diziam que se sentiam estimulados como se a luta valesse a pena.
Lau Siqueira quase vem de João Pessoa para a entrega do prêmio, a correria da Secretaria da Cultura o impediu. Hoje cedo ele estava ainda vibrando. Circe Vidigal queria vir do Rio de Janeiro, Dojival Vieira (da Afropress) mandou-me um e-mail pesaroso: já arrumado para o evento teve de declinar, pois a febre de Dolores subiu. Hoje, ligou-me de novo emocionado e triste por ter perdido a cerimônia.

Faltando umas duas categorias para recebermos o Jabuti, minha querida editora levantou-se e veio me chamar. Antes da entrega eu tinha uma preocupação sobre quem subiria comigo no palco. Queria que fossem as pessoas realmente importantes nesta trajetória e meu desejo foi realizado. Susi e Aurélio (só faltou a Solange, outra editora querida, que abraçou a coleção desde o início) estavam lindos, orgulhosos. Susi nervosíssima ouvia de mim: “É nóis na fita, mano!”, Aurélio sorria com as minhas palhaçadas. Minha mãe olhava a altura dos degraus e o tamanho do meu salto. Foi engraçado: todos os meus amigos pareciam muito mais nervosos que eu.Mas, enfim, chegou o grande momento: ao ouvir o meu nome e de minha coleção não caí do salto, não tive frio na barriga, desci feliz as escadarias e, tranqüilamente, como se estivesse na passarela, subi os grandes degraus que davam acesso ao palco do auditório Simon Bolívar, no Memorial da América Latina, com a certeza de que deveria estar lá.

A platéia foi generosa, aderiu à empolgação dos meus amigos e o sr. Siciliano, um dos componentes da mesa, visivelmente se contagiou com a minha empolgação e da minha torcida organizada de amigos.

Eu vibrei com toda a emoção que me cabia: ergui o troféu, fiz festa, e já que os discursos eram restritos para não alongar em demasia a cerimônia, falei com todo o meu corpo sobre a minha felicidade naquele momento.

Cumprimentei um a um os participantes da mesa e foi assim, feito o Jabuti que simboliza este prêmio, que ao caminhar calma, sem pressa, suavemente pela madeira do palco, percebi que valeu a pena persistir em meus objetivos, mesmo quando tudo parecia enlouquecido, mesmo quando a intolerância gritou mais alto.

Com a “tartaruguinha” na mão completei o trajeto iniciado há décadas e soube que é preciso ser persistente no objetivo de educar respeitando e defendendo o direito às diferenças.

Conceição Oliveira, (PARATODOS- HISTÓRIA- ED. SCIPIONE), 3º lugar na Categoria Didático e Paradidático do Ensino Fundamental e Médio, Jabuti 2005.

Originalmente publicada em 25/09/2005 na Revista da Câmara Brasileira do Livro.



20 anos da Constituição Cidadã

Há 20 anos era aprovada a Redação Final da Constituição de 1988


Em 22 de setembro de 1988, 20 anos atrás, a Assembléia Nacional Constituinte aprovava a redação final do texto da atual Constituição, que ficou popularmente conhecida como a Constituição Cidadã. Pouco antes, em discurso no Plenário, o então deputado constituinte Luiz Inácio Lula da Silva avisava que o Partido dos Trabalhadores (PT) iria votar contra a redação final, pois o novo texto constitucional mantinha as estruturas de poder brasileiras intactas, o que poderia manter inalteradas as desigualdades social e econômica no país. Entretanto, o deputado Lula registrou que o PT iria assinar a Constituição por entender que seria o cumprimento formal da sua participação na Constituinte.

Plenário da Constituinte

Plenário da Constituinte

- Importante na política é que tenhamos espaço de liberdade para ser contra ou a favor. E o Partido dos Trabalhadores, por entender que a democracia é algo importante - ela foi conquistada na rua, ela foi conquistada nas lutas travadas pela sociedade brasileira -, vem aqui dizer que vai votar contra esse texto, exatamente porque entende que, mesmo havendo avanços, a essência do poder, a essência da propriedade privada, a essência do poder dos militares continua intacta nesta Constituição - disse o deputado Lula.

No mesmo discurso, Lula lamentou que ainda não seria naquela oportunidade que a classe trabalhadora teria "uma Constituição efetivamente voltada para seus interesses". Disse ainda que não seria naquela ocasião que "a maioria dos marginalizados" teria "uma Constituição em seu benefício".

- Sei que a Constituição não vai resolver o problema de mais de 50 milhões de brasileiros que estão fora do mercado de trabalho. Sei que a Constituição não vai resolver o problema da mortalidade infantil, mas imaginava que os Constituintes, na sua grande maioria, tivessem, pelo menos, a sensibilidade de entender que não basta, efetivamente, democratizar um povo nas questões sociais, mas é preciso democratizar nas questões econômicas. Era preciso democratizar na questão do capital. E a questão do capital continua intacta. Patrão, neste país, vai continuar ganhando tanto dinheiro quanto ganhava antes, e vai continuar distribuindo tão pouco quanto distribui hoje - disse o então deputado constituinte.

No início do discurso, Lula registrou que, desde novembro de 1986, o PT já acreditava que os escolhidos para compor a Assembléia Constituinte não formariam uma "composição favorável aos projetos políticos da classe trabalhadora". Mesmo assim, disse o então deputado, o PT, com apenas 16 deputados constituintes, "trabalhou de forma incansável" para que a nova Constituição fosse finalizada e votada.

- O Partido dos Trabalhadores fez um estudo minucioso, através da sua bancada e da sua direção, e chegou à conclusão de que houve alguns avanços na Constituição, de que houve avanços na ordem social, de que houve avanços na questão do direito dos trabalhadores, mas foram avanços aquém daquilo que a classe trabalhadora esperava acontecesse aqui, na Constituinte - disse Lula.

O deputado constituinte afirmou que o PT queria estabelecer na Constituição a jornada de trabalho de 40 horas semanais (ficou 44 horas); o pagamento de férias em dobro (um terço a mais, conforme a Constituição); o fim da hora-extra, ou a hora-extra paga em dobro (ficou 50%, apenas). Além disso, Lula reclamou que o novo texto constitucional não definia questões referentes à estabilidade no emprego e ao aviso prévio.

- Algumas conquistas consideradas importantes não passaram, nem sequer de perto, para que a classe trabalhadora pudesse ter o sabor e o prazer de festejar essas conquistas - lamentou o futuro presidente da República, acrescentando que, sobre a reforma agrária, o novo texto constitucional era "retrógrado".

A Assembléia Nacional Constituinte foi instalada em 1º de fevereiro de 1987 e a entrega do Projeto de Constituição ocorreu em 24 de novembro daquele ano. Em 2 de setembro de 1988, o presidente da Assembléia, deputado Ulysses Guimarães, discursou comemorando o encerramento das votações do Projeto de Constituição. A aprovação da redação final se deu em 22 de setembro daquele ano e a Constituição Cidadã foi promulgada em 5 de outubro do mesmo ano.

Augusto Castro / Agência Senado

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Apocalipse das mídias

Há cerca de 10 anos o Le Monde Diplomatique problematizava as relações promíscuas entre a mídia e a política partidária que de lá pra cá se aprofundaram. Mas o que mais chamou-me a atenção neste texto foram os dados: em 1999 havia no mundo todo 80 milhões de celulares, hoje esse é um número próximo de assinantes somente no Brasil!
É impressionante como a tecnologia se democratizou, ao menos os celulares.
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Ignacio Ramonet
Durante muito tempo a comunicação libertou, porque significava difusão do saber, do conhecimento e da razão contra as superstições e obscurantismos. Agora, impondo-se como obrigação absoluta, inundando todos os aspectos da vida social, política, econômica e cultural, ela exerce uma espécie de tirania. E tende a tornar-se uma das grandes superstições de nosso tempo

Em todas as primeiras páginas, com letras enormes, um único título: "The Sun backs Blair" (The Sun apóia Blair). Tiragem diária de 4 milhões de exemplares, público leitor de 10 milhões, defensor fanático das teses de Margaret Thatcher, o Sun de Londres anunciava, assim, em 18 de março de 97, sua espetacular decisão de apoiar abertamente, nas legislativas britânicas de 1º de maio, o candidato trabalhista Tony Blair, "dirigente dotado de visão, de objetivos e de coragem". E de deixar de apoiar o governo de John Major, ele próprio qualificado em abril de 1992, durante as eleições precedentes de "dirigente visionário, corajoso e determinado"...

Àqueles que se perguntavam sobre as razões de uma tão repentina virada, Trevor Kavanagh, editorialista político do Sun explicou: "Penso que o jornal não modificou sua linha, foram os trabalhistas que mudaram".

Que lições tirar dessa anedota aflitiva ? Ao menos duas. A primeira, política, é que certos partidos social-democratas se converteram a tal ponto ao neoliberalismo que se tornaram, aos olhos de numerosos eleitores, intercambiáveis com a direita conservadora clássica. A segunda, mediática, é que a informação continua a exercer sobre os espíritos uma considerável influência na hora das escolhas eleitorais, e que esta influência, às vezes, se negocia.

Relações políticas suspeitas

O Partido Trabalhista comprou o apoio do Sun? É certo que Tony Blair encontrou-se várias vezes, durante os últimos meses, com Rupert Murdoch, patrão do grupo News Corporation, proprietário do Sun. O apoio deste seria o resultado destes encontros, segundo o jornal francês Libération.

"Deixem-me ser claro", defendeu-se Tony Blair, "nós nunca fizemos acordo com Rupert Murdoch em troca do apoio de seus jornais." Mas, curiosamente, numa outra declaração, publicada no Correspondance de la Presse, Blair admitiu que ele não modificaria "as normas que regem a propriedade cruzada dos jornais e do audiovisual", confirmando assim que, se ganhasse as eleições, ele não tocaria no império mediático de Murdoch, contrariamente aos compromissos assumidos por seu partido...

Magnata da Austrália (possui uma centena de jornais, assim como muitos canais de rádio e de televisão), Rupert Murdoch se tornou célebre em meados dos anos 80 quando quebrou, com o firme apoio do governo de Margaret Tatcher, o sindicato dos operários da imprensa, ligados ao Partido Trabalhista. Controla atualmente um terço da tiragem dos quotidianos britânicos — notadamente com o Sun e o prestigioso Times, e as suas versões dominicais News of the World e Sunday Times. Isto representa uma pequena parte do império News Corporation (10 bilhões de dólares de faturamento) que, no Reino Unido, controla igualmente British Sky Broadcasting (BSkyB), rede de televisão paga por satélite e por cabo (6 milhões de assinantes, uma das sociedades mais rentáveis da Bolsa de Londres), sem concorrente local. E que se preparava, na época das eleições inglesas, para lançar o primeiro serviço de televisão digital por satélite na Grã-Bretanha. Sem dúvida, o projeto não era estranho à decisão do Sun de apoiar Tony Blair, provável futuro primeiro ministro...

News Corporation, da qual Rupert Murdoch possui 30% das ações, é o exemplo tipo do grande grupo multimídia contemporâneo. Nos Estados Unidos, ele controla as edições Harpercollins (550 milhões de dólares de lucro em 1995) [1]; o quotidiano New York Post ; muitas revistas, entre elas TV Guide; a sociedade de produção Twentieth Century Fox (que entre outras, produz a série televisiva "Arquivo X"); a rede de televisão Fox Network, um canal popular (FX); um canal de informação contínua, Fox News Channel (que rivaliza com a CNN, do grupo Time Warner, e com MSNBC, criada pela Microsoft e o canal NBC, da General Electric); uma empresa de marketing e promoção, Heritage Media; assim como uns vinte sites na Internet. No domínio do digital, Murdoch acaba de investir 1 bilhão de dólares para propor, em aliança com Echostar e a companhia telefônica MCI, um serviço de mais de 200 canais aos telespectadores americanos.

Em parceria com as sociedades japonesas Sony e softbank, Murdoch realizou igualmente o projeto de televisão por satélite Japan Sky Broadcasting (J Sky B). Seu grupo já possui um canal de televisão por satélite, Star TV, difundindo muitas dezenas de programas no Japão, na China, na Índia, no sudeste asiático e no leste africano.

Essa profusão de alianças sem fronteiras, de fusões e de concentrações — das quais Rupert Murdoch é um arquiteto exemplar — caracteriza o universo atual das mídias.

Teia de aranha do tamanho do planeta

Na hora da globalização da economia, da cultura global (world culture) e da "civilização única" se coloca em vigência aquilo que alguns chamam de a "sociedade de informação global" (global information society). Esta se desenvolve na medida em que se acelera a expansão das tecnologias da informação que tendem a invadir todos os domínios da atividade humana e a estimular o crescimento dos principais setores econômicos. Uma infraestrutura da informação global (global information infrastructure.) espalha-se como uma teia de aranha com o tamanho do planeta, aproveitando-se dos progressos em matéria de digitalização e favorecendo a interconectividade de todos os serviços ligados à comunicação. Ela estimula em particular a imbricação dos três setores tecnológicos — informática, telefonia e televisão — que convergem e se fundem na multimídia e na Internet.

Há no mundo 1,26 bilhão de televisores (dos quais mais de 200 milhões por cabo e cerca de 60 milhões ligados à um serviço digital), 690 milhões de assinantes de telefones (cerca de 80 milhões de celulares) e cerca de 200 milhões de computadores (30 milhões conectados à Internet). Estima-se que em 2001, o poder da rede Internet ultrapassará o do telefone, que o número de usuários da rede oscilará entre 600 milhões e 1 bilhão e que a World Wide Web contará com mais de 10 mil sites comerciais [2]. O faturamento das indústrias da comunicação, que era de 1 trilhäo de dólares em 1995, poderia elevar-se, segundo La Repubblica, de Roma a 2 trilhões, ou seja, 10 % da economia mundial.

Os gigantes da informática, da telefonia e da televisão sabem que os lucros do futuro encontram-se nesses novos filões que abrem, diante de seus olhos fascinados e cobiçosos, a tecnologia digital. Eles não ignoram que, de agora em diante, seu território não está mais protegido e que os mastodontes dos setores vizinhos os vigiam com instintos carnívoros. A guerra no campo da comunicação é sem dó nem piedade. Quem se ocupava de telefone quer fazer a televisão, e vice-versa; todas as empresas, em particular os possuidores de uma rede física de distribuição (eletricidade, telefonia, água, gás, estradas de ferro, sociedades de auto estradas, etc) aspiram controlar uma parte do novo eldorado, a multimídia.

Os novos senhores do mundo

De uma ponta a outra do planeta, os combatentes são os mesmos, as firmas gigantes que se tornaram os novos senhores do mundo: AT&T (que domina a telefonia planetária), o duo formado pela MCI (segunda rede telefônica americana) e BT (ex- British Telecom), Sprint (terceiro operador americano de longa distância), Cable & Wireless (que controla notadamente Hong Kong Telecom), Bell Atlantic, Nynex, US west, TCI (o mais importante distribuidor de televisão por cabo), NTT (primeiro grupo japonês de telefonia), Disney (que comprou a rede de televisão ABC), Time Warner (que possui CNN), News Corp, IBM, Microsoft (que domina o mercado de programas para computador), Netscape, Intel, etc.

Na Europa, todas as batalhas vêem a disputa entre grupos cujos interesses cruzados e as participações acionárias recíprocas são múltiplas: News Corp., Pearson, (The Financial Times, Penguin Books, BBC Prime), Betelsmann (primeiro grupo de comunicação alemão), Leo Kirch, CLT (RTL), Deutsche Telekom, Stet (primeiro grupo de telefonia alemã), Telefonica, Prisa (primeiro grupo de comunicação espanhol), France Télécom, Bouygues, Lyonnaise des Eaux, Générale des Eaux (que domina atualmente Canal Plus e Havas), etc. As mudanças de controle e as fusões se multiplicam; somente para o ano de 1993, teria havido na Europa, ainda segundo La Repubblica 895 fusões de sociedades de comunicação...

A lógica dominante nessa mutação do capitalismo não é a aliança, mas a absorção para tirar proveito do savoir-faire dos melhores colocados, num mercado que flutua ao sabor de imprevisíveis acelerações tecnológicas ou de surpreendentes "modas" dos consumidores, como o boom da Internet. No coração da nova situação, o fluxo crescente e incessante dos dados: conversações, informações, transações financeiras, imagens, sinais de toda ordem, etc. Isso diz respeito, por um lado, às mídias que produzem estes dados (edição, agências de imprensa, jornais, cinema, rádio, televisão, sites na rede, etc.) e, por outro lado, ao universo das telecomunicações e dos computadores que os transportam, que os tratam, que os elaboram. O objetivo de cada um dos titãs da comunicação é se tornar o único interlocutor do cidadão. Ele quer poder fornecer-lhe simultaneamente as manchetes, as diversões, a cultura, os serviços profissionais, as informações financeiras e econômicas; e colocá-lo em situação de interconectividade através de todos os meios de comunicação disponíveis.

A informação reduzida a mercadoria

Para que essas infraestruturas tenham uma utilidade, é preciso que as comunicações possam circular sem entraves através do planeta, como o vento sobre a superfície dos oceanos. É por isso que, em favor da globalização da economia, os Estados Unidos (primeiros produtores de tecnologias novas e sede das principais firmas) jogaram todo seu peso na batalha da desregulamentação para abrir as fronteiras do maior número de países ao "livre fluxo da informação", isto é, aos mastodontes americanos das indústrias da comunicação e dos divertimentos [3].

Quatro conferências internacionais — Genebra, 1992; Buenos Aires, 1994; Bruxelas, 1995; e Johannesburgo, 1996 — permitiram ao presidente norte-americano Bill Clinton e sobretudo ao vice-presidente Albert Gore, popularizar junto aos dirigentes políticos mundiais suas teses sobre a "sociedade de informação global". Por outra parte, durante os debates que fecharam a Rodada do Uruguai do GATT, em 1994, Washington fez avançar a idéia de que a comunicação deve ser considerada como um simples "serviço" e, por este motivo, regida pela lei geral do comércio.

As telecomunicações de base representam um mercado de 525 milhões de dólares, com um crescimento de 8 a 12% ao ano, e constituem um dos domínios mais rentáveis do comércio mundial. Em 1985, o tempo consagrado pelos usuários, no mundo, às telecomunicações (para falar, passar fax ou transmitir dados) era de 15 bilhões de minutos; em 1995, ele atingia 60 bilhões de minutos ; e, no ano 2000, ele ultrapassaria, segundo a revista Time os 95 bilhões de minutos. Esses números, melhor que qualquer outra argumentação, explicam o jogo formidável da liberalização das comunicações. Em novembro de 1996, os Estados Unidos enfim obtiveram em Manila, durante a 4ª reunião de cúpula da APEC (Associação para Cooperação Econômica na Ásia e Pacífico), a abertura dos mercados dos países desta região às tecnologias da informação para o ano 2000. No mesmo espírito, em Singapura, em dezembro de 1996, a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC) recomendava "uma inteira liberalização do conjunto dos serviços de telecomunicações, sem nenhuma restrição geral. " E em Genebra, no dia 15 de fevereiro de 97, ainda sob a influência da OMC, um acordo sobre as telecomunicações assinado por 68 países abriu, notadamente aos grandes operadores americanos, europeus e japoneses, os mercados nacionais de dezenas de países.

Jaula dos animais selvagens

A União Européia decidiu, por seu lado, a inteira liberalização dos mercados do telefone (sem distinção entre os diferentes suportes: cabo, rádio ou satélite), a partir de 1º de janeiro de 1998. Nesta perspectiva, em previsão de concorrências ferozes no interior de cada mercado nacional, os monopólios são pouco a pouco desmantelados, e os operadores públicos, privatizados. A British Telecom, que se tornou BT, assim como a Telefonica, da Espanha, já foram privatizadas. A France Télécom, que colocou no mercado uma primeira fatia do seu capital a partir de 6 de maio de 97, reforça a sua parceria com o operador público alemão Deutche Telekom, que será privatizado depois do ano 2 000. Os dois operadores, aliás, aliaram-se ao americano Sprint (dos quais cada um possui 10% do capital) e poderiam aproximar-se do britânico Cable & Wireless, que pensa adquirir 80% do capital da Sprint. Desse modo, no momento em que se desfazem os monopólios nacionais, aceleram-se a corrida ao tamanho crítico, para sobreviver num mercado planetário, e a procura de diversificação em todos os setores da comunicação. Tudo isso num clima de competição carnívora, onde todos os golpes são permitidos: "Cada vez que discuto com os grandes do telefone", constata Louis Gallois, presidente da Sociedade Nacional das Estradas de Ferro francesas (SNCF), "tenho a impressão de entrar na jaula dos animais selvagens."

Nesse sentido, podemos efetivamente constatar estes últimos meses como a chegada de grupos de concorrentes de televisão digital provocou violentas confrontações em todo o campo da comunicação. Na Espanha, isso levou a um enfrentamento brutal e direto entre o governo conservador de José Maria Aznar, que para se manter no poder deseja constituir um grupo multimídia influente, e o principal grupo de comunicação, Prisa (El Pais, Radio SER), aliado ao Canal Plus.

Na França, uma guerra total opõe os partidários da televisão por satélite (TPS) e os de CanalSatellite. Entre estes últimos, o movimento mais espetacular viu, em 6 de fevereiro de 97, a transferência de controle da Havas e do Canal Plus l para a Générale des Eaux com o objetivo de "reunir no interior de um único grupo de comunicação todas as competências necessárias ao seu desenvolvimento, notadamente internacional" e de criar "um grupo integrado de comunicação de tamanho mundial". A Générale, por outro lado, confirmou o seu segundo lugar na telefonia francesa ao tornar-se, em 12 de fevereiro, parceira da SNCF, de quem comprou, em parte através da sua filial Cégétel (aliada da British Télécom), a rede de 26 mil quilômetros de linhas telefônicas (dos quais 8,6 mil em fibras óticas).

Um mês antes, Jean Marie Messier, presidente da Générale des Eaux, não pensava de jeito nenhum numa aproximação com a Havas. Por que mudou de idéia tão repentinamente ? "Eu tinha subestimado", respondeu ele ao jornal Le Monde, "a rapidez da convergência entre as indústrias de telecoms e aquelas da comunicação. Logo haverá um único ponto de entrada, nas casas, para a imagem, a voz, a multimídia e o acesso Internet.. Esta evolução já está à caminho: dentro de 12 a 18 meses ela será uma realidade comercial. Esta aceleração me levou a concluir que é preciso ser capaz, para conservar as margens (de lucro), de controlar toda a cadeia: conteúdo, produção, difusão e elo com o assinante".

Ao invés da qualidade, quantidade



"Controlar toda a rede" é a ambição dos colossos da informação. Para consegui-lo, continuam a multiplicar as aquisições e as concentrações. Para eles, a comunicação é, antes de tudo, uma mercadoria que é preciso produzir em enorme volume, a quantidade prevalecendo sobre a qualidade. Em 30 anos, o mundo produziu mais informação que no curso dos 5 mil anos precedentes...Um único exemplar da edição dominical do New York Times contém mais informação do que poderia obter, durante toda a sua vida, um europeu do século 17. A cada dia cerca de 20 milhões de palavras de informação técnica são impressas sobre diversos suportes (revistas, livros, relatórios, disquetes, CDs). Um leitor capaz de ler mil palavras por minuto, durante 8 horas por dia, precisaria de um mês e meio para ler a produção de um único dia; e, ao final deste período, ele teria acumulado um atraso de cinco anos e meio de leitura...

O projeto humanista de ler tudo, de tudo saber, tornou-se ilusório e vão. Um novo Pico de la Mirandola [4] morreria asfixiado sob o peso das informações disponíveis. Durante muito tempo rara e onerosa, a informação tornou-se farta e comum. Junto com o ar e a água, ela é hoje o elemento mais abundante do planeta. Está cada vez menos cara, à medida em que sua oferta aumenta, mas (como a ar e a água...) cada vez mais poluída e contaminada.

Libertação ou tirania?

Podemos mesmo nos perguntar se a comunicação não acabou de ultrapassar seu estado ótimo, seu zênite, para entrar numa fase onde todas as suas qualidades se transformam em deficiências, todas as suas virtudes em vícios. Porque a nova ideologia do tudo comunicação, este imperialismo comunicacional, exerce há algum tempo uma autêntica opressão sobre os cidadãos.

Durante muito tempo a comunicação libertou, porque ela significava (desde a invenção da escrita e a da imprensa) difusão do saber, do conhecimento, das leis e das luzes da razão contra as superstições e os obscurantismos de todo tipo. Agora, impondo-se como obrigação absoluta, inundando todos os aspectos da vida social, política, econômica e cultural, ela exerce uma espécie de tirania. E tende a tornar-se uma das grandes superstições de nosso tempo.

É esta mudança qualitativa capital que sentem claramente os cidadãos, cuja decepção em relação às mídias cresce, como provam todas as pesquisas recentes. Nos Estados Unidos, 55% da população estimam que os órgãos de imprensa publicam informações "seguidamente inexatas". A porcentagem era de apenas 34% em 1985, segundo o Le Monde. Os norte-americanos afastam-se igualmente dos jornais televisivos e são apenas 42% a segui-los regularmente (contra 63% em 1993). No Velho Continente, se 87% dos europeus informam-se principalmente pelos jornais televisivos, a desconfiança continua grande.

A reclamação central é contra a espetacularização, a busca do sensacional a qualquer preço, que pode conduzir a aberrações (como vimos no caso de Timisoara, ou durante a guerra do Golfo) e a "falsificações." Na França, "o exemplo mais célebre foi o da reportagem proposta por Jean Bertolino na revista "52 na primeira página", onde Denis Vicentini filmou figurantes numa pedreira de Meudon, fingindo que fossem notívagos povoando as catacumbas de Paris (...) O mesmo tipo de polêmica voltou em janeiro de 1992, com a reportagem em que Régis Faucon e Patrick Poivre d’Arvor fingiam entrevistar Fidel Castro, gravando extratos de uma entrevista coletiva onde o líder cubano respondia a outras questões, de outros colegas" [5].

O exemplo mais recente, ocorrido na Alemanha, terminou com a condenação de um jornalista, Michel Born, 38 anos, a 4 anos de prisão, considerado culpado de falsificar parcial ou totalmente 32 reportagens. Esse falsificador, sabendo que os canais pedem imagens sensacionais, tinha filmado, com a ajuda de atores e de cúmplices, curta-metragens "documentários" sobre uma pretensa seção alemã da Klu Klux Klan, sobre traficantes de cocaína, sobre neonazistas autores de cartas-bombas, sobre trabalho infantil explorado no terceiro mundo, sobre os passadores de imigrantes clandestinos árabes... Comprados por canais inescrupulosos, em particular por Stern TV (televisão filial de semanário Stern que publicou os pseudo diários íntimos de Adolf Hitler...), essas falsas reportagens, que não raro incitam ao ódio, foram vistas por mais de 4 milhões de telespectadores e propiciaram importantes receitas publicitárias.

Sob pressão da publicidade

Publicitários e anunciantes exercem, além disso uma indiscutível influência perversa sobre o próprio conteúdo da informação. Isso pôde ser constatado em 1995 nos Estados Unidos, quando os produtores do programa de informação "60 minutos", considerado o mais sério da rede CBS, realizaram um documentário para denunciar as companhias de tabaco. Essas, foi demonstrado, mentiam, ao informar, nos maços de cigarro, a taxa de nicotina do produto. Provocavam, desse modo, uma maior dependência. A rede CBS censurou o programa. E devíamos descobrir que o fez por duas razões: primeiro, para não entrar num processo que teria baixado suas ações na Bolsa na véspera da sua fusão com o grupo Westinghouse; além disso, porque uma de suas filiais, Loews Corporation, possuia uma sociedade, Lorillard, ela própria produtora de cigarros... Nos dois casos, os interesses do capital e da empresa foram colocados acima da preocupação com a saúde do público [6].

Três meses antes, a rede ABC conheceu uma desventura semelhante. Tendo acusado a Philip Morris de manipular as taxas de nicotina, no programa "Day One", a rede foi ameaçada pelo fabricante de tabaco de um processo e de um pedido de pagamento de perdas e danos de 15 bilhões de dólares. ABC estava, naquele momento, à beira de ser adquirida pela Disney, e o processo teria levado a uma sensível baixa do seu valor na Bolsa. A rede preferiu, então, fazer uma retificação pública que, insultando a verdade, livrava o fabricante de toda suspeita.

Enquanto as passarelas, as ramificações e as fusões entre os grandes grupos de comunicação se multiplicam numa atmosfera de canibalismo feroz, como estar seguro de que a informação fornecida por uma mídia não visará, direta ou indiretamente, a defesa dos interesses de seu grupo em vez dos do cidadão? Num mundo cada vez mais pilotado por empresas colossais que obedecem a uma lógica comercial fixada pela Organização Mundial do Comércio (OMC), e onde os governos parecem bastante ultrapassados pelas mutações em curso, como estar certo de que a democracia será preservada ou ampliada? Num tal contexto de guerra mediática acirrada, onde se enfrentam gigantes pesando bilhões de dólares, como pode sobreviver uma imprensa independente?

Publicado em abril de 97. Traduzido por Maria Regina Pilla.



[1] Ler o dossiê "The Crushing Power of Big Publishing", The Nation, Nova York, 17/3/97

[2] Correspondance de la presse, Paris, 27 de fevereiro e 11 de março de 1997. Ler também Dan Schiller, "Les marchands à l’assaut de l’Internet, Le Monde Diplomatique, março de 1997.

[3] A lógica dominante nessa mutação do capitalismo não é a aliança, mas a absorção para tirar proveito do savoir-faire dos melhores colocados, num mercado que flutua ao sabor de imprevisíveis acelerações tecnológicas ou de surpreendentes "modas" dos consumidores, como o boom da Internet. No coração da nova situação, o fluxo crescente e incessante dos dados: conversações, informações, transações financeiras, imagens, sinais de toda ordem, etc. Isso diz respeito, por um lado, às mídias que produzem estes dados (edição, agências de imprensa, jornais, cinema, rádio, televisão, sites na rede, etc.) e, por outro lado, ao universo das telecomunicações e dos computadores que os transportam, que os tratam, que os elaboram. O objetivo de cada um dos titãs da comunicação é se tornar o único interlocutor do cidadão. Ele quer poder fornecer-lhe simultaneamente as manchetes, as diversões, a cultura, os serviços profissionais, as informações financeiras e econômicas; e colocá-lo em situação de interconectividade através de todos os meios de comunicação disponíveis. A informação reduzida a mercadoria

Para que essas infraestruturas tenham uma utilidade, é preciso que as comunicações possam circular sem entraves através do planeta, como o vento sobre a superfície dos oceanos. É por isso que, em favor da globalização da economia, os Estados Unidos (primeiros produtores de tecnologias novas e sede das principais firmas) jogaram todo seu peso na batalha da desregulamentação para abrir as fronteiras do maior número de países ao " livre fluxo da informação", isto é, aos mastodontes americanos das indústrias da comunicação e dos divertimentos [[Ler Armand Mattelart, "Les nouveaux scénarios de la communication mondiale", Le Monde Diplomatique, agosto 1996 e La Mondialisation de la communication, PUF, coleção Que sais-je? , Paris, dezembro 1996.

[4] Pico de la Mirandola (1463-1494), sábio italiano do Renascimento que se distinguiu pela extensão dos seus conhecimentos.

[5] Trecho extraído do livro Le journal télévisé: Politique de l’information et information politique, de Arnaud Mercier. Editado pela imprensa da Fondation nationale des sciences politiques, Paris, 1997, p. 13.

[6] Ler Serge Halimi, "Industriels solidaires", Le Monde Diplomatique, novembro 1995.

Fonte: Le Monde Diplomatique, dez/1999

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

Museu mostra como europeus se aproveitaram da escravidão

Inaugurado em Liverpool no ano passado, Museu Internacional da Escravidão expõe os fundamentos econômicos que ajudam a entender a história. Acervo explica como o tráfico de escravos foi central para a Revolução Industrial

Por Maurício Hashizume do Repórter Brasil

Liverpool - Há uma expressão em Inglês que resume a "naturalidade" da dinâmica mercantil: business as usual, ou seja, um negócio comum, como outro qualquer. Pois é assim que o Museu Internacional da Escravidão retrata o comércio transatlântico de escravos, que vigorou dos séculos XVI ao XIX.

Inaugurado na famosa cidade dos Beatles em 23 de agosto de 2007 - por ocasião dos 200 anos do Ato pela Abolição do Comércio de Escravos -, o museu inglês expõe os fundamentos econômicos da escravidão. Cumpre, dessa maneira, os três principais objetivos a que se propõe: mostrar como milhões de africanos foram escravizados, evidenciar a participação crucial de Liverpool (e da Inglaterra como um todo) no processo, e enfatizar as conseqüências dessa exploração para as diferentes partes envolvidas.

Os conteúdos dos painéis que fazem parte do museu, localizado na revitalizada Albert Dock, servem de complemento ao (pouco) que se aprende sobre a escravidão nos bancos escolares do Brasil, uma ex-colônia de Portugal - nação que aliás sucumbiu justamente diante da ascensão inglesa.

São três seções montadas para os visitantes. A primeira busca mostrar um pouco da vida e da cultura da África Ocidental: com a reconstituição de parte de uma vila do povo Igbo e a exibição do artesanato, das manifestações culturais e dos conhecimentos tradicionais desta região da África. Nesse segmento inicial, os organizadores do museu priorizam a valorização da diversidade cultural do continente africano, definido como "berço das civilizações", do qual "todos nós somos descendentes".

Os alicerces econômicos do comércio transatlântico de escravos aparecem na segunda parte do museu, chamada de "passagem do meio". Depois de recuperar (e condenar) o pensamento racista adotado como justificativa para as intervenções coloniais ("superiores" em comparação com os nativos "bárbaros") por parte dos "conquistadores" europeus (primeiro portugueses e espanhóis, depois principalmente ingleses, franceses e holandeses), as placas e objetos históricos do acervo compõem uma desconstrução reveladora das transações triangulares entre Europa, África e América.

Liverpool foi a capital do comércio transatlântico de escravos africanos (Foto: Maurício Hashizume)

Alma do negócio

Nunca foi segredo que o comércio transatlântico de escravos atendia uma demanda por mão-de-obra, pois as nações européias estavam interessadas em aumentar a produção de gêneros como açúcar, café, algodão e tabaco em território colonial para abastecer o crescente consumo europeu. Não havia braços suficientes nas próprias colônias, já que muitos nativos foram dizimados, fugiram ou ficaram doentes com as invasões dos "conquistadores".

A forma como essas operações de tráfico negreiro eram organizadas, no entanto, nunca mereceu explicação mais detida nos estudos da história brasileira. Os visitantes saem do museu com a noção concreta de que a comercialização de escravos se assemelhava a um investimento de alto risco, mas com possibilidades de retornos exponenciais - típico da ciranda financeira.

Era custosa e complexa a preparação de uma embarcação para esse fim. Mercadores convocavam parceiros (outros mercadores, banqueiros, políticos, fazendeiros e até pequenos "investidores") para formar um pool, uma espécie de consórcio para a repartição dos custos e riscos e, por conseguinte, para a viabilização do negócio. Registros dão conta de que a estruturação de apenas uma viagem em 1790 custou, por exemplo, £ 10 mil (libras esterlinas). Corrigido para valores atuais, esse "investimento" seria equivalente a £ 550 mil, ou melhor, cerca de R$ 1,8 milhão.

A participação de diversos interessados também facilitava outra providência essencial para o tráfico: a arrecadação de mercadorias necessárias para a "troca" por escravos africanos. Com mais pessoas envolvidas, ficava mais simples reunir produtos que interessavam aos "dominadores" da África que capturavam à força e vendiam escravos. Encontrar gente disposta a fazer parte desse tipo de empreitada não era tarefa muito complicada: segundo relato de um observador que vivia em Liverpool na época, praticamente todo homem da cidade era um mercador.

Além disso, existia uma estreita coincidência entre o poder político e a exploração do comércio de escravos. A própria Royal African Company inglesa, fundada em 1672 e ativa até 1750, deteve o monopólio do comércio de ouro e de escravos com os africanos até 1698. O principal comandante e maior acionista da empresa era James, irmão do rei e Duque de York.

Capital do tráfico negreiro
Mercadores de escravos como Thomas Golightly, que foi prefeito de Liverpool nos idos de 1720, reiteravam a conexão direta entre o pólo econômicos e a classe política. As docas da cidade foram inauguradas em 1715 e a Casa da Alfândega (Custom House) foi construída em 1722. Algumas das construções daquela época, como a estação da Great Western Railway (veja foto acima) encravada na região portuária, continuam até hoje em pé.

No final do século XVIII, Liverpool se tranformara na capital do comércio transatlântico de escravos. O escritor William Mathews, testemunha dos acontecimentos, assinalou uma adesão em bloco do povo da cidade ao tráfico escravagista, que satisfazia o "desejo indiscriminado de participar de negociações comerciais e ganhar dinheiro em todas as oportunidades".

As estimativas dão conta de que pelo menos 1,5 milhão de africanos tenham sido transportados da África para a América por embarcações que partiram de Liverpool. Esse contingente consiste em mais de 10% do total de escravos vendidos de que se tem conhecimento.

Um conjunto de fatores explica a dianteira assumida por Liverpool nesse quesito em comparação com outras cidades inglesas como Londres e Bristol. Cidade portuária, Liverpool é também um ponto de convergência de rios e canais. Roupas, armas de fogo, munições e ferro chegavam com preços relativamente baixos no burburinho do comércio local. Em suma, os mercadores de Liverpool baixaram custos, eram mais rápidos e mais flexíveis. Com o tempo, estreitaram relações com os vendedores de escravos do Oeste da África. Aproveitaram-se dessa proximidade para providenciar todos os produtos almejados por seus parceiros comerciais.

Base da Revolução Industrial
Ainda na seção intermediária da "passagem do meio", o Museu Internacional da Escravidão também dá nome aos bois quando trata dos beneficiados do tráfico negreiro. Algumas personalidades como Richard Watt, que fez fortuna explorando escravos na Jamaica e depois comprou uma mansão em Liverpool, são citadas nominalmente no acervo. Famílias milionárias tradicionais como os Gladstone também aparecem diretamente vinculadas à escravidão, assim como bancos importantes - Thomas Leyland, Heywoods (absorvido posteriormente pelo Barclays) e até o Banco da Inglaterra.

O tráfico impulsionou ainda investimentos em outros setores, como na mineração, ligação que fica evidente no caso do empresário Richard Pennant, que redirecionou os lucros advindos do comércio escravagista pra construir um império com base na extração da ardósia (utilizada para diversos outros fins). Defensor incondicional da escravidão, ele foi o primeiro Barão de Penrhyn.

Maquete de plantation: base colonial e escravidão favoreceram europeus (Foto: Maurício Hashizume)

Os dados coletados não deixam dúvidas, portanto, que a escravidão esteve na base da Revolução Industrial. Com os benefícios econômicos decorrentes da exploração do modelo colonial, os ingleses puderam injetar recursos em setores estratégicos como a siderurgia, a extração de carvão mineral e a formação dos bancos. Concomitantemente, a mão-de-obra escrava propiciou o aumento de produção de gêneros como açúcar e algodão, atendendo à demanda do mercado interno europeu.

Essa conjunção de fatores contribuiu para o desenvolvimento da indústria têxtil e das bases da infra-estrutura produtiva (estradas, canais, etc.) na Inglaterra, nação soberana absoluta no comércio de escravos durante o século XVIII. Era o jogo de "ganha-ganha", em que os ingleses lucravam com a venda de escravos, com o comércio dos produtos por eles cultivados e ainda investiam em indústrias próprias e na estrutura necessária para garantir ainda mais acúmulo de riqueza no futuro.

O tráfico negreiro se estendeu por quatro séculos. Pelo menos 12 milhões de pessoas foram escravizadas. Dois terços dessa estimativa eram formados por homens com idade de 15 a 25 anos. Ou seja, as nações européias capturaram a mão-de-obra dos africanos em seu favor, fator que evidentemente se tornou um obstáculo para o desenvolvimento dos povos locais.

De quebra, armas de fogo e munições estavam entre os principais produtos que os europeus transportaram para os comerciantes da África em troca de escravos. A posse de armas de fogo era fundamental para a manutenção das atividades dos "mercadores" de escravos. Essa troca certamente ajudou a perpetuar os conflitos internos na África e está no pano de fundo da instabilidade política que marca o continente.

Sem força de trabalho e "inundada" por um arsenal bélico, os povos africanos viram as possibilidades de desenvolvimento tolhidas. Uma declaração pinçada do acervo faz uma pertinente dupla constatação: a África ajudou a desenvolver a Europa e a Europa ajudou a não desenvolver a África. Esse tipo de relação extremamente desigual pode ser estendido, com as devidas adaptações, às colônias da América e da Ásia.


Rotina dos escravos
Elementos de sobra no museu relembram as condições enfrentadas pelos escravos. Desde a compilação de dados sobre três viagens realizadas pelos barcos Brooks, Bud e Rose - com a catalogação das respectivas durações dos trechos, da quantidade de alimentos consumidos e de quantos chegaram vivos às ilhas do Caribe - até a exibição de material audioviovisual replicando a viagem nos navios negreiros em telões. Em média, as viagens da África para o continente americano duravam cinco semanas.As pessoas eram obrigadas a ficar em espaços apertados, sem ar, nos "porões" das embarcações. Água para beber e comida eram limitadas.

Os homens eram separados das mulheres e das crianças. Alguns eram forçados a dançar para entreter a tripulação. Era freqüente o abuso sexual de mulheres. Traumas abatiam muitos dos escravizados. Alguns ficavam sem comer e revoltas explodiam em pelo menos uma de cada dez viagens da África para a América. Todas eram reprimidas com ferocidade. De acordo com um levantamento do British Privy Council de 1789, uma média de 12,5% dos escravos morria antes de chegar ao destino.

A troca de "donos" era comum. Escravos eram forçados a caminhar por longos trechos da costa africana até os locais de embarque para atravessar o Oceano Atlântico. Esqueletos empalados expostos nos fortes demonstravam o que aconteceria se alguém tentasse fugir. Mesmo com todas essas dificuldades, líderes resistiram. Como Tomba, líder do povo Baga no Guiné (1720), e Agaja Trudo, rei de Dahomey (1724-1726).

Uma das passagens mais trágicas do tráfico se deu com o navio Zong. A embarcação deixou a costa africana no dia 5 de março de 1781 com 440 escravos a bordo. Durante a viagem, 132 foram jogados ao mar e apenas 208 chegaram à ilha que hoje é a Jamaica. O grupo de "investidores" entrou na Corte Inglesa para cobrar £ 30 (libras esterlinas) por cada corpo jogado ao mar. A ação não resultou em ressarcimentos e o capitão Colingwood (acusado de assassinato) não foi condenado, mas a repercussão do caso foi péssima para os defensores do comércio de escravos.

Uma réplica de uma fazenda no sistema plantation foi montada no Museu Internacional da Escravidão. No modelo "Casa Grande e Senzala", os escravos enfrentavam vários tipos de violência. De todos os lados, vinham pressões para que os africanos se desvinculassem de suas identidades. Eram marcados com ferro quente e tratados como animais. Mesmo com tudo isso, não faltaram casos de resistência. O caso de Zumbi dos Palmares, liderança popular que desafiou escravocratas no Nordeste brasileiro, está registrado em Liverpool.

Detalhe de altar montado no museu: homenagem
aos antepassados (Foto: Maurício Hashizume)


Mudança de postura

A partir do século XIX e na esteira da Revolução Industrial, a posição da Inglaterra mudou. Em 1807, o tráfico negreiro se tornou ilegal no país. Os ingleses passaram a pressionar pelo fim desse comércio, em resposta ao fortalecimento das mobilizações abolicionistas e especialmente de olho na conversão de escravos em potenciais consumidores de seus produtos industrializados. Liverpool passara de capital do comércio transatlântico de escravos para capital do algodão.

Essa é a participação inglesa no tocante à história da escravidão mais frisada aos brasileiros. Em 1810, Portugal - que tinha transferido a Coroa para o Brasil em 1808 - e Inglaterra assinam o Tratado de Aliança e Amizade, no qual os ingleses já exigem restrições ao tráfico negreiro. Também por pressão da Inglaterra, Portugal concorda, durante o Congresso de Viena de 1815, em vetar o tráfico acima da Linha do Equador. Depois de desempenhar papel importante na independência do Brasil, os ingleses continuaram pressionando pela abolição. O Brasil acabou assinando um tratado com mais restrições nesse sentido em 1826 e, em 1831, promulgou lei que proíbe o comércio de escravos com outras nações da África.

Em 1833, o Parlamento aprovou a abolição da escravatura também na parte das Antilhas pertencente à Inglaterra, no Canadá e no Cabo da Boa Esperança (sul da África do Sul). Em 1845, o Parlamento inglês aprovou o Bill Aberdeen, que determinou o aprisionamento de embarcações utilizadas no tráfico de escravos. Entre 1808 e 1869, a Esquadra do Oeste africano da Real Marinha Inglesa desbaratou cerca de 1,6 mil navios negreiros e libertou cerca de 150 mil africanos. Mesmo assim, mais de um milhão de pessoas ainda foram escravizadas e transportadas durante o século XIX.

Entre os legados da escravidão (que estão na terceira e última seção do museu que já recebeu a visita de 302 mil pessoas), foram destacados nomes famosos de ruas de Liverpool que têm alguma relação com o comércio de escravos. A herança musical e a presença de uma comunidade negra em Liverpool ganharam espaço reservado nessa parte. Personalidades negras foram resgatadas e a influência do tráfico negreiro para o racismo existente até hoje está exposta com destaque.

Um memorial, construído pelo Babalaô Yoruba Orlale Kan Babaloa , presta homenagem aos ancestrais negros. E uma escultura feita a partir de sucata e objetos reciclados por jovens de Porto Príncipe, no Haiti, simboliza o déficit de liberdade, que não acabou com o fim da escravidão antiga. "As pessoas hoje não têm mais correntes em seus braços e suas pernas, mas ainda têm correntes em suas mentes. Quando não se tem comida ou moradia, não se vive livremente", disse um dos autores da peça.

Logo na entrada do Museu Internacional da Escravidão, há uma declaração do ex-escravo William Prescott, captada em 1937. "Eles vão lembrar que nós éramos vendidos, mas não que éramos fortes. Eles vão lembrar que éramos comprados, mas não que éramos corajosos". Em seguida, os organizadores do museu prometem: "Nós lembraremos. Essa história foi negligenciada por muita gente durante muito tempo".


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