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domingo, 1 de março de 2009

Por que não devemos falar em "ditabranda"

Por Luiz Carlos Azenha no Vi o Mundo

Atualizado em 01 de março de 2009 às 12:52 | Publicado em 01 de março de 2009 às 11:44

Os argumentos de que, comparativamente com outras ditaduras, o regime militar brasileiro foi de alguma forma "brando" são baseados em estatísticas que escamoteiam as verdadeiras implicações do golpe de 64.

Será que os liberais se esqueceram que, depois de colaborar com o golpe, alguns deles foram os primeiros a entrar na lista de cassações?

É fato que cerca de 300 militantes de esquerda morreram ou foram "desaparecidos" pelo regime, um número infinitamente menor que os 700 mil "comunistas" eliminados por Suharto, na Indonésia. Mas essas comparações numéricas são toscas, não refletem a realidade histórica distinta de cada sociedade e nem capturam a atmosfera repressiva de um regime ditatorial.

Para quem não viveu o período, fica parecendo que a ditadura brasileira foi um terror apenas para quem era de esquerda -- muito embora a esquerda tenha, de fato, sido o principal alvo do regime militar. As cassações políticas, a repressão a religiosos, sindicalistas e estudantes e a censura à imprensa afetaram, direta ou indiretamente, a milhões de brasileiros.

Todos nós ficamos, então, à mercê do humor dos ditadores de plantão e, especialmente, de seus agentes paroquiais. Um dedo-duro bem conectado com um agente do governo poderia causar uma enorme dor-de-cabeça a quem fosse identificado como "inimigo" ou mesmo "adversário" do regime.

Nessa hora é muito importante recorrer aos registros históricos:

Em fevereiro de 1968, o proprietário do "Diário da Manhã" de Passo Fundo (RS), começou a ser processado por solicitação de vários prefeitos da região, por razão de críticas e ataques feitos em seu jornal, durante o ano de 1967, àqueles chefes de Executivo Municipal, havendo referência também a ofensas que teriam sido feitas ao ministro da Educação, Tarso Dutra. [Brasil Nunca Mais, editora Vozes, página 146]

Em outras palavras, um jornal do interior falou mal de prefeitos da região e o dono foi processado pela Lei de Segurança Nacional. Outro exemplo:

Ainda em 1971, no mês de agosto, um editorial publicado na "Luta Democrática", do Rio de Janeiro, comentando um acidente de trânsito que vitimou uma criança, levou o jornalista Carlos Augusto Vinhaes a responder por crime contra a Segurança Nacional. [Brasil Nunca Mais, editora Vozes, página 146]

Nem partidários do regime militar escapavam:

Trata-se de "Ari Cunha", na verdade José de Arimatéia Gomes Cunha que, em sua coluna regular no "Correio Braziliense", da Capital da República, denunciou as torturas a que havia sido submetida, grávida, a presa política Hecilda Mary Veiga Fonteles de Lima, recolhida no PIC -- Pelotão de Investigações Criminais, de Brasília. Este foi um caso ímpar, em que um ideólogo da Doutrina de Segurança Nacional sofre o peso da LSN sobre suas costas, por ter divulgado um episódio que, no seu entender, representava um excesso dispensável na repressão necessária para garantir a solidez das instituições do Regime. [Brasil Nunca Mais, editora Vozes, páginas 146 e 147]

E o que dizer do vereador que foi processado por amarrotar uma foto do ditador Médici?

Outros dois vereadores do MDB, agora de Cachoeirinha, nas proximidades de Porto Alegre, seriam processados, também em 1970, um por ter discursado na Câmara atacando o Regime Militar, e o outro, por ter amarrotado uma foto do presidente Médici, enviada para ser afixada naquela casa legislativa. [Brasil Nunca Mais, editora Vozes, página 141]

Meu pai, que apesar de português e comunista era um tremendo gozador, costumava dizer que os militares tinham fabricado alguns espantalhos para justificar não só o golpe, mas o regime que implantaram em seguida.

Havia o mito da "República Sindicalista" a ameaçar a classe média urbana, amedrontada com o comunismo. Um medo manufaturado através das campanhas do IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), como brilhantemente documentado no livro "1964: A Conquista do Estado", de René Armand Dreifuss.

Uma obra de ficção, a tal "República Sindicalista", muito mais sofisticada que o "estado policial" forjado recentemente pela revista Veja e o presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, para defender o banqueiro Daniel Dantas. Mas a linha era mais ou menos a mesma: um assalto à democracia em nome de "defender a democracia".

O mito da "República Sindicalista" se esboroou no primeiro de abril de 1964, quando um regime constitucional foi derrubado sem um tiro sequer. Um assalto em que embarcaram os principais orgãos de imprensa do Brasil, inclusive O Globo, a Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo -- este último, ao lado da Veja, do Jornal do Brasil e da imprensa nanica pagariam um preço muito alto, mais tarde, por causa da censura.

Os três jornalões que restaram são, até hoje, prisioneiros dessa contradição: dizem defender a democracia tendo sido cúmplices do maior atentado contra ela na História recente do Brasil. É de se esperar, portanto, que exibam vez ou outra traços de nostalgia.

LEIA AQUI O EDITORIAL DE "O GLOBO" CELEBRANDO O GOLPE DE 64

LEIA AQUI COMO A TENTATIVA DA "FOLHA" DE REESCREVER A HISTÓRIA NÃO É NOVA

OUÇA AQUI A ENTREVISTA DA HISTORIADORA QUE DIZ QUE A "FOLHA" TEM ESQUELETOS NO ARMÁRIO

Não se enganem: o regime de 64 foi concebido na Escola Superior de Guerra (ESG), obedecia a lógica da Guerra Fria dos Estados Unidos e implantou um aparato de força milimetricamente organizado na melhor (ou pior, dependendo do ponto-de-vista) tradição dos militares. Quem acha que a tortura foi "eventual" ou "acidental" não sabe do que está falando. A tortura foi uma ferramenta política e policial para intimidar e eliminar adversários e foi apenas o lado mais perverso de um estado policial. O conceito de "inimigo interno", inventado pela Doutrina de Segurança Nacional, ainda hoje está entre nós. Quem chiou contra o Brasil imaginado pelos militares foi defenestrado, especialmente depois de 68, independentemente de ser de direita ou de esquerda. Falar em "ditabranda" é, pois, um desserviço à democracia.

LEIA AQUI, EM PORTUGUÊS, PARTE DO ARQUIVO QUE REGISTRA O APOIO DE WASHINGTON AO GOLPE

LEIA AQUI, EM INGLÊS, TODO O ARQUIVO

Tendo a esquerda na América Latina chegado ao poder dentro das regras democráticas, não dá para entender é que, de repente, essas regras não sirvam mais. Ou que se comece a inventar um "estado policial" para atentar contra elas. Um amigo direitista -- na tradição de meu pai, que chegou a ser um rico empresário comunista, eu também tenho amigos direitistas -- outro dia se dizia preocupado com a possibilidade de um terceiro mandato do Lula. É o sonho de consumo da elite: que o Lula tente um terceiro mandato para ser acusado de "ditador".

De gozação, lembrei a meu amigo tucano: eu não me lembro de você ter chiado quando o Sarney ampliou seu mandato de quatro para cinco anos ou quando o FHC "comprou" a reeleição. Ele riu, sem graça. Que poder de turvar a memória têm os interesses políticos conjunturais!

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