Artigo originalmente publicado em Voltaire.net.org
por Marco Aurélio Weissheimer*
Em uma conferência em Washington, Fernando Henrique Cardoso saudou Henry Kissinger como um velho amigo que ajudou a mudar o mundo. Entre as obras do “velho amigo” está o golpe que derrubou e matou Salvador Allende, presidente de um país que acolheu FHC em dias difíceis.
Dia 1° de março de 2005. Tabaré Vázquez assume a presidência do Uruguai, constituindo o primeiro governo de esquerda da história do país. Um dia de festa popular em Montevidéu e de encontro de várias gerações da esquerda latino-americana.
Os presidentes do Brasil, Argentina, Chile e Venezuela, entre outras lideranças políticas do continente, participam da cerimônia de posse e reafirmam sua disposição de fortalecer o projeto do Mercosul e, de um modo mais amplo, o da integração política, econômica e cultural da América Latina. Após décadas de ditaduras militares e governos conservadores, apoiados pelos Estados Unidos, os principais países latino-americanos começam a tentar trilhar outros rumos e as referências começam a mudar. No lugar dos economistas e intelectuais ligados à Escola de Chicago e, mais tarde, ao Consenso de Washington, ganham espaço os nomes de Artigas, Simon Bolívar e Salvador Allende, entre outros.
Dia 2 de março de 2005. O colunista Nelson de Sá, do jornal Folha de São Paulo, anuncia que já está disponível na internet a palestra que o ex-presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso fez dias atrás em Washington, a convite do ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. Segundo o colunista, FHC agradeceu a presença do ex-secretário e chamou-o de “meu velho amigo”. O ex-presidente acrescentou, referindo-se a Kissinger: “sua produção acadêmica só encontra paralelo na contribuição à política externa dos EUA, ajudando a mudar o mundo, especialmente nos anos 70”. É verdade. Kissinger teve um papel decisivo na implementação da política externa norte-americana nos anos 70, particularmente na América Latina. O “velho amigo de FHC” teve, por exemplo, uma participação direta no golpe de Estado que depôs e assassinou o presidente eleito do Chile, Salvador Allende, no dia 11 de setembro de 1973, levando o general Augusto Pinochet ao poder.
Um homem de pensamento e ação
Anos 60. Após o golpe que instaurou uma ditadura militar no Brasil, também apoiado pelo governo dos EUA, o então professor Fernando Henrique Cardoso resolve se auto-exilar no Chile, onde fica até 1973, deixando o país após o golpe que derrubou Allende. Neste país, estuda e dá aulas naquele país. Juntamente com outros intelectuais de orientação marxista como o sociólogo Enzo Falleto, o atual presidente chileno Ricardo Lagos, Vilmar Faria e outros, Fernando Henrique colabora com a Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso), instituição idealizada pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Anos mais tarde, FHC escreveria um prefácio ao livro “Allende, um mundo possible”, do jornalista hispano-argentino, Tigo Drago. Considerando as relações históricas de FHC com o Chile e com o período Allende, suas afirmações elogiosas à trajetória de Kissinger podem causar espanto e incredulidade. O texto da conferência proferida pelo ex-presidente em Washington, como parte das “Henry Kissinger Lectures in Foreign Policy and International Relations”, ajuda a dirimir essas dúvidas.
Logo no início de sua conferência, FHC afirma: “A combinação entre pensamento é ação é algo que sempre admirei em qualquer pessoa. Henry Kissinger é um homem de alto intelecto. E ele é, inegavelmente, um homem de ação. Ele é uma dessas raras espécies de homens que podem traduzir pensamento estratégico em políticas públicas e medidas concretas, de um modo exitoso. Sua produção acadêmica só encontra paralelo na contribuição à política externa dos EUA, ajudando a mudar o mundo, especialmente nos anos 70”.
No texto, disponível em inglês no site do Instituto Fernando Henrique Cardoso , não aparece a referência ao “velho amigo Kissinger”. Quem quiser ver a saudação deve ir ao site do “The John W. Kluge Center”, da Livraria do Congresso dos EUA, onde a íntegra da conferência de Fernando Henrique Cardoso está disponível em vídeo. Logo no início, ele saúda Kissinger, “um velho amigo meu e de todos vocês”.
Um pensamento internacionalista
Seja como for, o que é importante aqui não é a saudação em si. Cada um tem o direito de ter os amigos que quer e o dever de assumir a responsabilidade por essas amizades. Além disso, a admiração do ex-presidente brasileiro pela obra e trajetória de Kissinger não é exatamente uma novidade. Ele bem que tentou homenageá-lo quando ocupou a presidência da República. Em fevereiro de 2002, Kissinger desistiu de viajar a São Paulo, onde receberia de Fernando Henrique Cardoso a medalha da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul (condecoração destinada a estrangeiros que se tenham tornados dignos do reconhecimento da Nação brasileira), após a divulgação de um abaixo-assinado de repúdio à visita e da convocação de um ato de protesto.
Do ponto de vista da movimentação política do ex-presidente o que importa é entender as razões que alimentam suas velhas e novas amizades. Na conferência proferida em Washington, Fernando Henrique criticou o unilateralismo que marca a administração Bush, dizendo que ele “representa a negação de todos os mecanismos e leis existentes para enfrentar as ameaças à paz e à segurança internacionais”. “Esses mecanismos”, acrescentou, “foram criados após a Segunda Guerra Mundial, sob a liderança dos Estados Unidos, e serviram muito bem aos interesses americanos no passado, inclusive durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991”. “Parece que não há herdeiros deste patrimônio deixado por extraordinárias gerações de líderes americanos que tinham um pensamento internacionalista, a exemplo de Kissinger e de ex-presidentes como Bill Clinton, Ronald Reagan e George Bush (pai)”, concluiu o ex-presidente.
A democracia e a memória
Além de criticar o unilateralismo de Bush filho e de exaltar o “pensamento internacionalista” de Kissinger, Clinton, Reagan e Bush pai, reafirmou suas preocupações com o futuro da democracia no mundo e na América Latina em particular. Esse tema, aliás, vem sendo motivo de intensa movimentação por parte de FHC que lidera um grupo, sediado em Washington, para acompanhar a situação da democracia na América Latina que estaria ameaçada pela proliferação de governos de esquerda e de centro-esquerda, especialmente pelo governo de Hugo Chávez, na Venezuela. No Brasil, Fernando Henrique também vem falando de riscos para a democracia, que estariam associados à prática política do governo Lula.
Em um esforço para neutralizar esses riscos, FHC trabalhou pela eleição do deputado Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara Federal. O que chama a atenção em tudo isso é que as referências políticas e amizades do líder tucano (Severino Cavalcanti, Henry Kissinger, Bill Clinton, Ronald Reagan e George Bush pai) andam na contramão das referências que vem ganhando espaço na América Latina.
Sua assídua presença em Washington, seja proferindo conferências ou participando de grupos especiais, apontam para um movimento mais amplo que o distancia cada vez mais das razões que, aparentemente, o levaram a deixar o Brasil após o golpe militar de 1964 e a buscar refúgio no Chile de Salvador Allende. E esse distanciamento assume uma forma bizarra, para dizer o mínimo. Por um lado, apresenta-se como guardião da democracia, no Brasil, na América Latina e no mundo. Por outro, associa-se com nomes e setores políticos que não cansaram de pisotear a democracia na América Latina. O que interessa, na saudação a Kissinger, é o desprezo pela memória que ela revela. O ex-guerrilheiro tupamaro e novo ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca do Uruguai, José Pepe Mujica costuma dizer que “quem não cultiva a memória, não desafia o poder”.
A afirmação cai como uma luva para o caso em questão. A relação de Fernando Henrique com o poder não é definida exatamente pela palavra desafio. Deslumbramento parece melhor. Vale a pena ver o início de sua conferência em Washington, quando ele é apresentado como uma estrela do pensamento político global e entra triunfalmente no auditório com um sorriso de criança entrando em confeitaria. É impagável e imperdível.
A obra de um velho amigo
Nosso ex-presidente anda pelos corredores do poder com elegância e desenvoltura. É um homem que sabe se portar e se vestir. E sabe, como ninguém, desprezar a memória, essa incômoda companheira. Entre as palavras que vem ganhando renovada força na América Latina, a memória ocupa um lugar especial, como reafirmou Tabaré Vázquez, em seu discurso de posse, em Montevidéu. Há zonas sombrias que devem ser iluminadas, para o bem da democracia, defendeu o novo presidente uruguaio. E essas zonas sombrias se espalham por praticamente toda a América Latina. Estão presentes no Chile, por exemplo, país que acolheu Fernando Henrique em dias difíceis.
No dia 11 de setembro de 1973, o compositor e cantor Victor Jara foi preso na universidade onde trabalhava, juntamente com cerca de 600 estudantes, e levado para o Estádio Nacional do Chile, em Santiago. Neste mesmo dia, é torturado e assassinado por militares que o retiraram de uma fila de prisioneiros que iam ser transferidos. Dias depois, seu corpo fuzilado, com as mãos amputadas, é identificado em um necrotério por sua esposa, a bailarina inglesa Joan Jara. Uma das tantas contribuições do pensamento internacionalista do “velho amigo” de FHC, que ajudou a mudar o mundo nos anos 70.
Marco Aurélio Weissheimer, jornalista brasileiro.
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