Se revisarmos a história, recordaremos que, no período colonial, os colonizadores diziam que os índios não tinham alma. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente.
A descolonização da América Latina e os direitos indígenas
Boaventura de Sousa Santos
DEBATE ABERTO(Agência Carta maior- 15/08/2008)
A Constituição é simplesmente um papel que foi fonte de frustração durante muito tempo. Vários direitos foram incluídos, porém, os povos continuam sendo excluídos, empobrecidos, invisibilizados e oprimidos. Estamos diante de um novo tipo de constitucionalismo, que implica um diferente projeto político de país, outra forma de cultura, de convivência, de territorialidade, de institucionalidade do Estado.
Trata-se de uma nova época, interessante, mas muito difícil, já que existem muitos inimigos internos e externos que estão muito bem organizados. Lamentavelmente, as forças progressistas não se organizam tão bem como seus opositores. O atual modelo de Estado é homogeneizador porque implica uma só nação, cultura, direito, exército e religião. Essa idéia de homogeneidade predomina nas cabeças das elites, da cultura e até nas forças progressistas, que são ou podem ser aliadas nesse processo. Daí a importância em defender outro tipo de unidade na diversidade, que não seja simplesmente aceita, senão celebrada.
A unidade não tem porque ser homogênea e tampouco a diversidade tem que significar desintegração. Esses são os desafios que deve enfrentar a nova Constituição, para que efetivamente o atual processo político implique uma importante ruptura com o colonialismo que não terminou com as independências.
As diversas iniciativas políticas que estão emergindo no continente só podem ser entendidas reconhecendo a existência de um profundo racismo na sociedade. Por exemplo, não podemos entender os conflitos na Bolívia sem antes recordar que, para suas elites, um índio é só um índio, e não concebem que tenha chegado a ser presidente, pois, segundo elas, não é competente. Se revisarmos a história, recordaremos que na colônia acreditavam que os índios não tinham alma, e foi um papa, em 1537, quem teve de reconhecer que tinham. Foi necessário passarem 500 anos, um processo histórico muito largo, para que um índio fosse eleito presidente democraticamente.
Na Venezuela também existe racismo, basta observar muitas das críticas lançadas contra o presidente Hugo Chávez, que o chamam de macaco e de não pertencer às elites brancas da sociedade dominante. Por isso a importância do reconhecimento da continuidade do colonialismo e de que, no processo constitucional, a plurinacionalidade é um ato de pós-colonialismo que rompe com essa herança colonial. A independência foi dada, concebida, conquistada pelos descendentes dos colonizadores, não pelos povos originários, quer dizer, não foi realmente descolonizadora. Na África, aconteceu o contrário, as independências se deram por territórios, pelos povos originários, com exceção da África do Sul, que conquistou sua independência em meados dos anos 90.
Esse novo tipo de constitucionalismo é importante, porém não é exclusivo da América Latina. No mundo existem vários países, como Canadá, Suíça, Bélgica e Espanha, que se reconhecem como plurinacionais. Não se entende, portanto, por que o drama, o enfrentamento e as dúvidas. Em uma reunião do SENPLADES (Secretaria Nacional do Planejamento e Desenvolvimento), à qual fui convidado, ficaram preocupados que a plurinacionalidade desintegrasse e destruísse o país, como também ficou um jornal de grande circulação no Equador, e lhes expliquei porque não devem ter medo. Primeiro, a plurinacionalidade tem como objetivo descolonizar o país, devido a essa herança colonial. Segundo, exige outra concepção do território e do controle dos recursos naturais. É ali que surgem os temores com respeito à propriedade da terra, o controle dos benefícios e lucros que produzem os recursos naturais.
Esse processo político significa uma nova visão de país, uma refundação do Estado equatoriano. Bolívia e Equador estão inventando outro tipo de Estado, um modelo que merece novas instituições e novos territórios com um marco político diferente, que permita passar do discurso à prática e cujas mudanças se reflitam de maneira visível.
A plurinacionalidade é um ato fundacional ou de refundação do Estado e todos os outros atos fundacionais são de transição.
Passar das velhas estruturas à construção de novos estados é um processo de transição que não é unicamente político, senão cultural e que pode provocar enfrentamentos, como está acontecendo no Equador e na Bolívia. São choques de memória entre aqueles que não podem esquecer e os que não querem lembrar. Esta confrontação, que não é política, mas também cultural, exige que se construa outro tipo de memória.
O novo modelo de Estado implica uma nova institucionalidade, outra territorialidade, mas também outro modelo de desenvolvimento. Daí a importância das concepções indígenas, que estão ganhando terreno porque vão além das reivindicações puramente étnicas. Hoje em dia, o ponto de vista dos povos indígenas é importante no continente e não somente para eles, como também para todo o país, pois o atual modelo de desenvolvimento está destruindo os recursos naturais, o meio ambiente, contaminando a água, particularmente no Equador, como é o caso da Texaco, que durante 30 anos causou pobreza, destruição ambiental e contaminou as águas.
Este é um velho modelo e é possível que as palavras do ‘desenvolvimento’ não sejam as mais adequadas. Então, por que não utilizar a palavra ‘reviver’, que tem uma conotação muito mais profunda e que significa uma relação diferente com Pacha Mama? O conceito de natureza é muito pobre comparado com o de Pacha Mama, mais profundo e rico, pois implica harmonia e cosmovisão. Os indígenas colombianos costumam dizer "o petróleo é sangue da terra, é nosso sangue, nossa vitalidade, se nos tiram o sangue, nos matam". Esta concepção, que para os povos indígenas é muito natural, começa a ter outra aceitação. Não está em jogo só uma crise do capitalismo, mas também a sobrevivência da humanidade, caso se mantenha o atual modelo de desenvolvimento.
Este ato refundacional tem uma enorme potencialidade para o estabelecimento de relações mais amplas e o movimento indígena tem de estar preparado para a construção de novas alianças. Trata-se também de outro modelo de democracia, porque a atual é muito excludente e marginalizou as grandes maiorias da mesa de negociações e decisões. Portanto, é necessário democratizar a democracia com novas formas de participação, mais inclusivas, podendo ser de origem ocidental, como a democracia participativa, ou de origem comunitária, como as formas indígenas. A Constituição boliviana, por exemplo, distingue entre democracia representativa e democracia partidária e comunitária.
A democratização da democracia vem acompanhada de outro processo interessante que é o da ‘cidadanização’ da cidadania, ou seja, a ampliação da cidadania a formas de cidadania intercultural junto de diferentes formas de pertencimento. Quando me perguntam se a plurinacionalidade pode colocar em risco a unidade do país, respondo rotundamente que não, pois essa é minha larga experiência com os movimentos indígenas deste continente, que, basicamente, mostram duas coisas: os povos indígenas são originariamente transnacionais, como é o caso dos aymaras, quéchuas, mapuches, que foram divididos em vários países e agora são chilenos, argentinos, peruanos, equatorianos ou bolivianos.
Em segundo lugar, eles reconhecem simultaneamente sua identidade nacional indígena e também a cidadania de seu país. Além do mais, mantiveram lealdade a seus países em guerras fronteiriças, participando com muita valentia de exércitos nacionais. Um exemplo desse duplo pertencimento podemos observar no Canadá, onde não é o mesmo ser canadense para um branco e para um indígena. Mesmo assim, todos, de maneira muito distinta, são canadenses.
Existem várias maneiras de pertencimento e, portanto, formas de convivência. A unidade na diversidade é uma nova solidariedade social, que pode ter um impacto muito forte nos territórios e recursos naturais. Podem produzir-se enfrentamentos, porém nas rupturas também existe continuidade. Por isso é importante que esses conflitos sejam controlados dentro de um marco pacífico e democrático.
Passar da interculturalidade à plurinacionalidade é um salto muito grande, mas também nisso se dá uma continuidade. A atual Constituição Política do Equador estabelece as circunscrições indígenas, porém estas, lamentavelmente, não foram regulamentadas.
Quando insistem no risco de que a plurinacionalidade pode enfraquecer a unidade nacional, pergunto-me: aonde estão as provas, os resultados desses fenômenos? Pelo contrário, o agronegócio e grandes latifundiários de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, que defendem o separatismo, é que constituem um grave perigo para a unidade do Estado. Portanto, a desintegração não vem dos povos indígenas.
O objetivo da plurinacionalidade não é somente a idéia do consenso, mas também do reconhecimento das diferenças, de outra forma de cooperação nacional com unidade na diversidade. É um ato de justiça histórica que não pode ser resolvido como um problema de geometria da democracia representativa. Qual a quantidade de indígenas neste país, 30, 20, 7 mil pessoas? Quanto menor a quantidade, mais demonstrado fica o nível de extermínio e, portanto, que a plurinacionalidade tem de ser mais profunda. Um desafio para a institucionalidade é compatibilizar a igualdade com a diferença. Difícil, mas não impossível.
* Originalmente publicado em http://alainet.org/ - Traduzido por Gabriel Brito.
Intervenção realizada no Encontro Internacional "Povos Indígenas, Estados Plurinacionais e Direito à Água", em março de 2008, Quito, Equador.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
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