Igualdade numérica
População negra se iguala à branca ainda em 2008, revela estudo do Ipea. A análise também informa que equilíbrio salarial, na melhor das hipóteses, só será alcançado daqui a 32 anos. Acesso à educação cresce
Renata Mariz
ao de brancos no Brasil ainda este ano, pelas projeções do Instituto Brasileiro de Economia Aplicada (Ipea). Estudo elaborado pela entidade e divulgado ontem, em plena comemoração dos 120 anos de abolição da escravatura, mostrou que em 2010 a população negra no Brasil, hoje 49% do total, será maioria absoluta. Entretanto, a desigualdade de renda em relação aos brancos, que ganham 53% a mais atualmente, só deve ter fim — segundo a projeção do Ipea — daqui a 32 anos, ou seja, em 2040.
Para Mário Theodoro, um dos coordenadores do estudo, intitulado Desigualdades raciais, racismo e políticas públicas: 120 anos após a abolição, o aumento do número de negros está relacionado a dois fatores. “A taxa de fecundidade da população negra e parda explica parte desse fenômeno. Além disso, há também a valorização maior da cultura afro por parte da sociedade, que leva os negros a se autodeclararem nos censos”, diz Theodoro.
O especialista destaca que nos últimos cinco anos o rendimento da população negra, em média R$ 578,24 per capita, aumentou, com uma tendência a se tornar igual ao do branco, hoje de R$ 1.087,14. Esse crescimento, entretanto, pode ser estagnado em breve. “É a primeira vez que isso ocorre. A explicação está nos programas de transferência de renda. Mas como o Bolsa Família opera no limite, atendendo a quase todos que necessitam, creio que essa curva ascendente deve se estabilizar. A partir de agora, temos que apostar em outras ações”, diz Theodoro.
O estudo aponta que as estatísticas de acesso à educação, maior bandeira defendida pela militância negra, melhoraram. Em 1976, primeiro ano da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (Pnad), o número de negros com até 30 anos que tinham concluído o ensino superior não passava de 0,7%, enquanto o de brancos atingia 5% — seis vezes maior. Em 2006, a taxa de negros nos bancos com educação universitária passou para 4,9%. A de brancos subiu para 18% —
pouco menos de quatro vezes a mais.
“Verificamos, com esse dado, que as políticas públicas têm proporcionado maior acesso à educação, de forma universal, mas ainda de uma forma desigual, se analisarmos a questão racial. Historicamente, os negros têm menos acesso a ações governamentais”, destaca Theodoro.
Mesma opinião tem o ministro Edson Santos, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. “O governo não é contra as cotas sociais (para despossuídos) nas universidades, mas entendemos que precisamos de uma ação específica para os negros, por isso defendemos no Estatuto da Igualdade Racial (atualmente em votação no Congresso) as cotas pela raça”, afirma o ministro. Segundo ele, o sistema de reserva de vagas deve ser temporário. “Até que se produza um resultado efetivo de mudança da localização social da população negra”, diz Santos.
Cobrança
Depois de 120 anos, políticas para negros são insuficientes
Cento e vinte anos depois da proclamação da Lei Áurea, a situação de parte dos 90 milhões de afrodescendentes do país ainda é lamentável, segundo pesquisadores e organizações que defendem as políticas afirmativas para os negros.
Ivan Richard - Agência Brasil
BRASÍLIA - No dia 13 de maio de 1888, a princesa Isabel assinava o documento que declarava livres todos os escravos do Brasil. Cento e vinte anos depois da Lei Áurea, a situação de parte dos 90 milhões de afrodescendentes do país ainda é lamentável, segundo pesquisadores e organizações que defendem as políticas afirmativas para os negros.
"O melhor presente que a população negra pode receber nesses 120 anos de 'desescravização' é, precisamente, o Estado brasileiro aprofundar as políticas de igualdade social. Só assim vamos, de fato, construir uma nação mais eqüitativa e mais igualitária entre as diferentes populações que aqui habitam”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros e coordenador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Valter Roberto Silvério.
Silvério diz que houve melhoras de condições, "mas tanto o acesso ao mercado de trabalho, quanto à escolarização, ainda são insuficientes para gerar um padrão de igual acesso, igual oportunidade da população negra quando comparada à população branca". Para ele, as políticas públicas de discriminação positiva, como a definição de cotas nas universidades, são a melhor forma de promover a igualdade racial.
Aos que contestam a instituição da política de cotas, ele declara que há um “cinismo, por parte da classe média brasileira", que nega a existência de racismo e que não admite que a educação tem o poder de combater o racismo, por medo de perder seus privilégios. "Esses grupos, que sempre tiveram privilégios, não percebem que essas políticas geram a possibilidade de construção de cidadania para o país, o aprofundamento da construção da cidadania", critica.
O que se discute atualmente, segundo ele, é o aprofundamento de políticas que rejeitam as diferenças e resgatam a dívida histórica com os setores que foram oprimidos ao longo do tempo. A universidade, de acordo com o coordenador, é o espaço onde essas mudanças têm mais alcance pois forma as novas lideranças políticas, econômicas e sociais. Lideranças, destaca, mais tolerantes por conta do convívio com pessoas das diversas classes sociais, origens, etnias.
O ex-secretário de Justiça de São Paulo e coordenador do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade, uma ONG que defende a causa negra, Hédio Silva Junior, também defende a política de cotas. Para ele, o debate sobre as cotas fez emergir o racismo brasileiro.
Na avaliação do ex-secretário, há um racismo “estruturante” no Brasil no qual de cada dez pobres, sete são negros. “Obviamente, que a condição social é importante, há desvantagens educacionais, mas foi o racismo que empurrou a população negra para esse lugar”, disse.
Silva Junior critica aqueles que afirmam que as cotas vão estimular o racismo. Para ele, esse é um argumento “falacioso”. “No Brasil há sete documentos públicos em que os brasileiros são classificados racialmente. No formulário de alistamento militar o jovem é classificado racialmente e nunca vi alguém criticar o Exército, as Forças Armadas. Não são as cotas que introduzem no Brasil a classificação social. Sempre existiu aqui. Um branco jamais poderia ser escravo”, exemplificou.
Segundo Silva Junior, na retomada do debate das políticas afirmativas, nos anos 80, alguns diziam que o racismo não existia e citavam o sucesso de Pelé e Gilberto Gil como exemplos disso. Mas na verdade, contrapôs, não se conseguia enumerar mais que cinco negros bem sucedidos.
“A própria expressão 'cada macaco no seu galho' tem um componente revelador de que a sociedade até tolerava viver com os negros, desde de que eles estivessem ocupando certos lugares. Mas quando você tem o negro reivindicando acesso a direitos, a lugares que a sociedade entendia como exclusivos da parcela branca, as pessoas ficam revoltadas”, acentuou.
Silva Junior avalia que a manifestação contrária às cotas tem um aspecto positivo: o estímulo ao debate. “O que lamento é que o debate seja feito de maneira tão desleal e covarde com o argumento de que a classificação racial é iniciada com a política de cotas. O Estado brasileiro sempre impôs a classificação racial. As cotas são um remédio para essa doença que é o racismo no Brasil”.
Apesar da constatação de que o racismo é um forte componente nas relações pessoais no Brasil, o ex-secretário aponta avanços na luta contra o preconceito racial. “Nos últimos anos, tem havido uma mudança muito grande na publicidade brasileira. Uma mudança muito forte imposta pelo movimento negro em relação a afirmação de figuras negras altivas e não apenas com a representação do negro associada à marginalidade e à pobreza. A própria propagando eleitoral mudou”, disse.
Passados 120 anos do fim da escravidão no Brasil, o ex-secretário afirma que o sentimento é de otimismo. “Sou otimista no sentido dessas mudanças que o país tem vivido. Mas, ao mesmo tempo, temos um caminho muito grande até que haja uma verdadeira democracia racial no Brasil”.
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