As frases longas e bem elaboradas a que os leitores de José Saramago estão acostumados continuam lá, mas o ambiente é outro, justamente um que costuma pedir frases curtas, sem a necessidade de muita elaboração. Desde setembro de 2007, o escritor português, prêmio Nobel de Literatura em 1998, mantém um blog (caderno.josesaramago.org), onde comenta temas relacionados a política, literatura, religião e sociedade ou simplesmente escreve relatos sobre suas viagens, muitas ao Brasil.
Os textos estão saindo da internet e ganhando o papel, numa coletânea de sete meses de posts lançada esta semana pela Companhia das Letras sob o título de “O caderno”. Em entrevista ao GLOBO (por e-mail, como é mais apropriado ao tema), Saramago explicou o que pensa sobre a rede, revelou que um dia deve se cansar do blog e exaltou a literatura de Chico Buarque.
O GLOBO: Seu livro “O caderno” é uma coletânea de textos de seu blog. Escritores mais velhos, porém, costumam manifestar certo descaso com a internet e os blogs. Como o senhor lida com a internet? O senhor lê outros blogs? Enxerga a internet como uma possibilidade de literatura ou apenas como fonte de informação?
JOSÉ SARAMAGO: Escrever num blog não difere em nada de escrever numa folha de papel. Salvo a extensão do texto em que, no caso do blog, se aconselha uma certa brevidade, os escritores não estão condicionados por normas ou regras que, supostamente, caracterizariam o blog. Não sou frequentador assíduo da internet. Consulto o Google com frequência, nada mais. Quanto a ler outros blogs, faço-a às vezes, mas não mantenho diálogo com eles. Para mim, a internet é uma fonte de informação rápida e em geral eficaz, porém não confundamos: a literatura ou é ou não é, não há meios termos. Muitas transformações teriam de dar-se (e eu não vejo como nem quais) para que a internet tomasse lugar no fazer literário.
O senhor acha que a experiência em escrever para um blog, onde teoricamente os textos são mais curtos e diretos, teve alguma influência na sua escrita?
SARAMAGO: Nenhuma. Continuo a utilizar frases longas, das que dão espaço e tempo para observações e análises quer considero necessárias. A tão louvada clareza das sínteses é, não raro, enganosa.
E como surgem os temas para o blog? A variedade é a regra? Qualquer pensamento que o senhor tenha pode motivar um post?
SARAMAGO: Não qualquer, evidentemente. Os temas surgem com naturalidade, embora uma vez ou outra haja que esforçar-se um pouco. A minha maior preocupação é não cair na monotonia nem na previsibilidade.
O senhor acompanha o fenômeno do Twitter? Acredita que a concisão de se expressar em 140 caracteres tem algum valor? Já pensou em abrir uma conta no site?
SARAMAGO: Nem sequer é para mim uma tentação de neófito. Os tais 140 caracteres reflectem algo que já conhecíamos: a tendência para o monossílabo como forma de comunicação. De degrau em degrau, vamos descendo até o grunhido.
No livro, no texto do dia 25 de novembro de 2008, o senhor revelou que jornalistas brasileiros, numa coletiva de imprensa, ficaram interessados em fazer perguntas sobre seu blog. Nele, o senhor escreve, sobre a internet: "Será que aqui, a bem dizer, nos assemelhamos todos? É isto o mais parecido com o poder dos cidadãos?". O senhor diz, ainda: "Não tenho respostas, apenas constato perguntas". Um ano depois, a resposta apareceu? O senhor considera a internet um espaço democrático e verdadeiramente livre?
SARAMAGO: Nada há que seja verdadeiramente livre nem suficientemente democrático. Não tenhamos ilusões, a internet não veio para salvar o mundo.
Já em 22 de outubro de 2008, o senhor escreveu sobre o romance “Budapeste”, de Chico Buarque: “Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este livro”. Por que a literatura de Chico seria tão renovadora? O que o senhor pensa sobre o resto de sua obra E o senhor já leu o novo romance de Chico, "Leite derramado"?
SARAMAGO: Achei “Leite derramado” à altura do melhor que Chico Buarque tem escrito, embora, de todos os seus livros, continue a preferir “Budapeste”. A meu ver, a grande renovação operada por Chico Buarque deu-se ao nível da linguagem: o vernáculo toma o seu lugar ao lado do coloquial.
Em vários textos do livro, o senhor é crítico a figuras políticas: George Bush em 18 de setembro de 2008; Berlusconi em 19 de setembro de 2008 e em 13 de março de 2009; José Maria Aznar em 22 de setembro de 2008; o papa Bento XVI em 9 de outubro de 2008; Sarkozy em 6 de janeiro de 2009; e a própria "esquerda" é alvo de críticas em 1 de outubro de 2008. Mas há também textos esperançosos, sobretudo em relação à eleição de Barack Obama. Só que eu não me recordo de ter lido nada específico sobre o governo do Brasil. O que o senhor acha do presidente Lula?
SARAMAGO: Acho que o presidente Lula tem feito um excelente trabalho neste segundo mandato se aceitarmos como inevitáveis certas “infidelidades” ao seu programa inicial.
No dia 16 de novembro de 2008, o senhor escreveu, ao completar 86 anos: "Dizem-me que as entrevistas valeram a pena. Eu, como de costume, duvido, talvez porque já esteja cansado de me ouvir. O que para outros ainda lhes poderá parecer novidade, tonou-se para mim, com o decorrer do tempo, em caldo requentado". O senhor acha impossível ser surpreendido por alguma entrevista hoje? O jornalismo contemporâneo teria se tornado esse mar de obviedades? Existiria alguma pergunta que o senhor espere (e gostaria que) fosse feita, mas que nunca foi feita?
SARAMAGO: Creio que me fizeram todas as perguntas possíveis. Eu próprio, se fosse jornalista, não saberia o que perguntar-me. O mal está nas inúmeras entrevistas que tenho dado. Em todo o caso, tenho o cuidado de responder seriamente ao que se me pergunta, o que me dá o direito de protestar contra a frivolidade de certos jornalistas a quem só interessa o escândalo ou a polêmica gratuita.
Mesmo após a publicação do livro, o senhor segue atualizando seu blog. O senhor tomou gosto pela coisa? Pretende seguir ocupando esse espaço indefinidamente? Podemos esperar um “O caderno II” para breve?
SARAMAGO: Haverá um “O caderno II” ainda este ano, mas não me vejo a escrever blogs indefinidamente. Tem sido uma boa experiência, chego a mais leitores com mais rapidez, mas tudo acaba por cansar.
Ainda nos textos recentes do blog, no dia 13 de julho o senhor escreveu um post muito afetuoso sobre sua alegria em ser escolhido acadêmico correspondente da Academia Brasileira de Letras. Por que o Brasil é tão importante para o senhor? Qual sua memória mais antiga do país?
SARAMAGO: O Brasil é importante para qualquer português. Gostaria de nos ver mais unidos a trabalhar em assuntos de interesse comum, mas as políticas nacionais nem sempre se inspiram nas melhores razões. É uma pena que assim seja. As minhas memórias mais antigas são as da literatura, os nomes e as obras de Machado de Assis, Manuel Bandeira, Jorge Amado, João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos — tantos e tão grandes escritores, estes e outros, que fizeram da literatura brasileira um tesouro inesgotável.
Um documentário sobre sua relação com sua mulher, Pilar del Río, está sendo realizado, não? Em que fase está a produção? O senhor sempre me pareceu uma pessoa reservada em relação a sua intimidade, então por que aceitar que filmassem parte de sua rotina conjugal? Como foi abrir sua intimidade para uma equipe de filmagem? A proximidade com a câmera incomodou, provocou constrangimentos?
SARAMAGO: O documentário está na última fase da produção, é mesmo possível que o filme possa ser visto ainda este ano. Quanto ao resto, continuo a ser uma pessoa reservada. É certo que a abordagem escolhida aflora o delicado território dos sentimentos, mas sempre com discrição, a mesma que carateriza a nossa forma de viver. Quanto a isso da “rotina conjugal”, confesso que não sei exactamente de que se trata...
Fonte: O Globo-
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