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sexta-feira, 10 de julho de 2009

NARRADORES DE 32 - bibliografia paulista de uma revolução -

Luis Fernando Cerri *

" On est saisi d’une sort de stupéfaction; on serait tenté de croire que ces hommes appartenaient à une race de géants. "

Auguste de Saint-Hilaire

RESUMO

O objetivo deste texto é retomar, após 70 anos, a produção bibliográfica sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, vinda a público logo após o movimento, majoritariamente por simpatizantes da causa. O texto procura destacar, nessa produção, intelectuais – combatentes que estabeleceram referenciais para a narrativa posterior do movimento e os termos de sua retomada no ensino da história regional em São Paulo.

PALAVRAS – CHAVE:

ABSTRACT

The objective of this text is to review, after 70 years, the bibliographic production about the Revolução Constitucionalista de 1932, that arrived to the public just after the movement, mainly wroten by sympathisers of the cause. The text tries to point, at this production, combatant intelectuals that established the references to the later narrative of the movement and the therms of its revival at the teaching of regional history at São Paulo state.

Este texto pretende ser um momento de retomada de pesquisa desenvolvida anteriormente, retomada essa oportuna pela aproximação dos 70 anos do movimento constitucionalista. Pretende também colaborar com a discussão sobre a Memória /História Tradicional criada pelos envolvidos no movimento constitucionalista, que é distinta da História Oficial / Tradicional de outras regiões e do nível federal sobre o mesmo processo, trazendo elementos para ajudar a compreender a relação entre os termos da complexa equação que é a década de 30 e sua construção historiográfica, equação da qual alguns termos são REGIÃO e REGIONALISMO, VENCEDORES E VENCIDOS (respeitando a complexidade dos termos e sua inter-relação), MEMÓRIA, HISTÓRIA TRADICIONAL E HISTÓRIA OFICIAL, ESTADO, HEGEMONIA e suas agências (principalmente a escola pública). Esses termos não são fechados; são apenas um esforço por equacionar um problema, a construção da história pela " ideologia da paulistanidade", que nos levará a um outro tema correlacionado com a Revolução Constitucionalista de 1932, o bandeirismo.

O bandeirante é feito, pelo discurso tradicional paulista, em elemento especular, mito de origem e genitor, na história, da Revolução e da "Raça de Gigantes" que a levou às trincheiras na defesa do estado e de um ideal, que edificou o estado mais rico e organizado da federação. Abordamos, com isso, algumas obras que não versam diretamente sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, mas relacionam-se ao tema na medida em que procuram construir a história de São Paulo, que conduziria naturalmente para os atos de bravura e civismo registrados pelos constitucionalistas em seus livros. Vale lembrar que uma das primeiras bibliografias sobre a Revolução Constitucionalista de 1932 foi montada por Aureliano Leite, um dos intelectuais dessa ideologia da paulistanidade, por ocasião dos festejos 4º Centenário da fundação da cidade de São Paulo, em edição comemorativa de "A Gazeta", em 10 de julho de 1954, num caderno especial sobre a comemoração do 9 de julho daquele ano, no qual dois grandes marcos da paulistanidade estão se cruzando.

Podemos classificar e comentar as obras da Revolução Constitucionalista de 1932 a partir de vários viéses. Preferimos formar esses grupos pelas preocupações dos autores e características gerais de cada obra. Não que as obras tenham uma definição unívoca de suas preocupações; pelo contrário, cada uma delas procura transmitir uma variedade de informações e cumprir uma pluralidade de objetivos. Mas nesta pluralidade de sentidos dessas publicações, geralmente sobressai-se um aspecto central em torno do qual os outros aspectos organizam-se, e é esse aspecto central de cada obra que procuro identificar para classificá-las e viabilizar um comentário panorâmico sobre essa base documental.

Sendo assim, um primeiro grupo de obras é o das que se caracterizam pelo seu aspecto de narrativa, de exposição do testemunho de quem viveu aqueles tumultuados momentos, no campo de batalha ou em outros espaços de organização e/ou propaganda, igualmente vibrantes, febris. São os relatos, geralmente de grande vendagem, produzidos em sua maioria nos primeiros instantes (ou ainda durante, no caso dos diários) após o encerramento das hostilidades. A tendência era a do esgotamento rápido das obras, consumidas por um voraz interesse da população. É o caso, por exemplo, de A Guerra Paulista, do organizador e divulgador da Semana de Arte Moderna de 22, Menotti del Picchia, datado de 1932, que teve quatro edições em apenas um mês, o que mostra que após um certo momento as casas editoriais (e as livrarias) estão operando novamente em pleno vapor. E deve-se asseverar o fato de que esta obra tem um caráter de descrição dos bastidores do poder no decorrer da guerra civil, uma vez que seu autor narra os acontecimentos do seu ponto de vista, de secretário de gabinete de Pedro de Toledo, governador de São Paulo aclamado no início da revolta. É um relato de fora do calor das trincheiras, mas que mesmo assim excita a curiosidade do mercado consumidor de informações sobre o movimento. Outras obras de caráter narrativo e de testemunho, por exemplo, são, Santistas nas Barrancas do Paranapanema (1932), de Santos AMORIN , São Paulo Venceu (1933), de Arnon de MELLO, A Columna Romão Gomes (1933), de Herbert V. LEVY, Irradiações: Campanha Constitucionalista (1933), de J. B. de. CARVALHO, Palmo a Palmo (a lucta no setor sul) (1933), de J. J. ALVES BASTOS, Renda-se, Paulista (1932), de Luiz V. de MELLO, M.M.D.C. (1933), de Benjamin OLIVEIRA Fº, Diário de um Combatente Desarmado (1934), de Sertório CASTRO, A Sala da Capela (1933) e Accuso! (1933) de Vivaldo de V. COARACY, Tudo pelo Brasil (1932), de Armando BRUSSULO, Itararé, Itararé ... (1933), de Honório de SYLOS, A epopéa de São Paulo em 1932 (1932), de Amílcar S. SANTOS, Capacetes de Aço (1932), de Samuel BACCARAT, Palmares pelo Avesso, de Paulo DUARTE (escrito em 1933 mas publicado apenas em 1947, nos 15 anos da Revolução). A lista poderia continuar, mas creio que os exemplos são suficientes como amostra desse grupo de obras, em que mesclam-se intelectuais das artes e ciências humanas, militares, políticos, radialistas e voluntários em geral.

Num mundo em que as mudanças são tão intensas que nada deixam inalterado, um mundo em que a experiência comunicável decai como fonte pura para os narradores, segundo Walter Benjamin (1994), e a arte de narrar caminha para o fim, os relatos que elencamos acima estão quase com os dois pés no campo da informação: digo quase porque ainda há um resquício de trazer para o leitor (não mais o ouvinte, como na narrativa considerada por Benjamin) o relato das coisas distantes. No caso, trazem o cotidiano da guerra para as pessoas comuns, contando o que acontecia nas linhas de combate e nas organizações da retaguarda; a base é, portanto, a experimentação daquele que vai, não daquele que fica (o distante não é necessariamente o que está longe, mas o que foge ao alcance da experiência daquele para quem se narra), porém os formatos de contar a história caracterizam mais a informação que a narrativa: os que escutam são uma platéia impessoal e distante, não um grupo próximo ligado numa relação de oralidade com o narrador, o qual se preocupa em dar conselhos, ou seja, dar à sua narrativa a função eminentemente prática de compartilhar sua experiência como contribuição para a vida das pessoas que o cercam no momento de contar a história.

A narrativa primitiva era a arte de comunicar a experiência como conselho. Não é assim com a bibliografia em questão. O caráter confesso de todas as obras que narram, em sentido amplo, a Revolução Constitucionalista de 1932, é o de uma tentativa historicização da experiência, a procupação em conduzir a própria memória aos "lugares da história", procurando alinhavar os eventos vividos com a perspectiva da maior, da revolução regional e da história nacional. Essa base documental possibilita, portanto, verificar um momento privilegiado em que as pessoas, legitimadas pela experiência, participam do processo de caracterização do passado e de definição dos seus sentidos. Os autores, em maior ou menor grau, estão preocupados com o registro dos fatos para que não se percam no esquecimento, para que sejam lembrados com a interpretação que se deseja, e / ou para que fiquem de exemplo para as próximas gerações (e há aqui um resquício do "conselho" do narrador benjaminiano); muitos reivindicarão a imparcialidade, apresentada como requisito e bilhete de passagem da memória para a história, e no final das contas é esse mesmo o objetivo desses livros: fazer a experiência dos seus autores passar do campo da memória para os anais da história. Vejamos uma pequena seleção de exemplos:

"Limitamo-nos a ser uma passiva machina photographica. E nossa objectiva tratou de focalizar e fixar episódios interessantes e que viessem a servir de subsídios á história que, no futuro, se escreverá sobre o movimento constitucionalista esposado por São Paulo e Matto Grosso. Nada Mais." (BRUSSULO, 1932: 12)

"Não tive outra mira, ao publicar o presente opúsculo, senão o de prestar meu testemunho pessoal á maravilhosa epopéa bandeirante, concorrendo para que melhor seja memorada, num futuro próximo, a campanha constitucionalista que abalou a pátria até o imo cerne." (KARAM, 1933: I)

" [um livro] vasado sem paixão nem parcialidade" (MOURA, 1933: 16)

É notória a presença do paradigma de uma historiografia metódica (na noção da objetividade no trabalho com os fatos) que a história tem para esses narradores, que acompanham a sua época. É interessante perceber o caminho de mão dupla que essa produção significa: se por um lado os autores querem participar do processo de atribuição de significado e importância aos eventos de 1932, por outro o acesso que tiveram à história ensinada nas escolas significou um canal de transmissão das concepções historiográficas vigentes e um condicionador da participação deles nesse debate.

Do ponto de vista do estilo e do uso da informação, esses escritores estão mais próximos do romancista (pela situação solitária da produção da narrativa) ou do jornalista (por ser o narrador das coisas próximas, dando o ponto de apoio da informação ao público leitor) que do narrador, e deste também se distanciam pela necessidade imperiosa de rechear a história de explicações. Até porque, sem as mesmas, perde força o projeto dos autores de, participando da construção da história, participar da definição do seu significado.

Enfim, o narrador de Benjamin produz sua história como artesão, e os contadores da Revolução de 1932 produzem suas histórias dentro da técnica industrial, para a leitura no isolamento típico dos indivíduos componentes das grandes massas urbanas, e não na comunidade dissipante dos que escutam. A pluralidade de títulos, tiragens, edições dessas obras dos revolucionários de 1932 vem confirmar a progressiva perda da habilidade de ouvir e de contar, e o incremento da atividade de informar. Não que ela não ocorra: ela não é mais suficiente, em termos de tempo e de abrangência, para a sociedade em que ocorre. Todavia, ao contrário do que afirma Benjamin, o caminho desses romances da informação não se esgota na novidade, e aí está o seu caráter estratégico: o destino final é cavar um espaço na carne da história a fim de caminhar com ela e com ela identificar-se, tentando garantir a perpetuação da narrativa dos fatos, e da experiência dos que se envolveram intensamente nas agitações de 1932. Em momentos de extrema tensão e conflito armado na vida política nacional, dá-se o ambiente propício para a "escrita da paixão", o relato em primeira pessoa, testemunho pessoal que valoriza-se perante as análises mais detidas. Esses relatos que compõem a crônica do vivido, com pretensões de imparcialidade e análise dos fatos, tornam-se um grande filão comercial que a indústria editorial paulista imediatamente percebe e capitaliza, tornando realidade a multiplicidade de títulos no assunto.

Esses livros saem à procura da constituição coletiva de uma epopéia, o levante uníssono de um estado habitado pela "Raça de Gigantes". A necessidade de narrar algo que seja uma epopéia transformará em cenas épicas as sucessivas retiradas das forças paulistas. talvez seja uma das primeiras vezes em que as derrotas sejam a base da narrativa dos feitos heróicos, mas esta era a única argila que estava à mão desses oleiros. Reverter a negatividade deste fato, mostrando a organização, a racionalidade e a tranqüilidade nas retiradas, é a tarefa a que se propõem essas obras, e nesse sentido podemos apreendê-las como uma continuidade da propaganda de guerra, que até o último momento insiste em manter o moral da população e da frente de luta elevado, através do rádio e dos jornais, principalmente, mas também através da propaganda visual, dos inúmeros cartazes e panfletos aos desfiles dos galhardos batalhões infantis (!).

E essa propaganda é de uma eficiência tal que, segundo alguns desses relatos, a derrota militar é recebida como um grande choque, como algo que rompesse um cotidiano linear, e não a culminação do avanço das tropas inimigas, ou, usando a imagem já gasta, mas ainda boa, como um raio que caísse de céu azul; daí, também, muitos terem achado uma traição a rendição dos contingentes da Força Pública de São Paulo e os entendimentos para o armistício por parte do General Klinger. Há contudo, livros que dissonam da propaganda e conseguem debater com ela, e na minha opinião um dos mais instigantes entre eles é o do médico Luiz Vieira de Melo, Renda-se, Paulista, que critica os líderes (com o já fétido manto da alcunha de "políticos") que jogaram o povo na enrascada dos combates sangrentos, sendo porém covardes e oportunistas o suficiente para não irem aos campos de batalha nem para lá mandarem os seus filhos. Vieira de Melo desdenha a propaganda constitucionalista, a irresponsabilidade de afirmar "Sustentae o fogo que a vitoria é nossa", quando se jogou irresponsavelmente e sem preparação os voluntários numa aventura guerreira sem antes ter previsto as condições mínimas para as batalhas, e critica os "heróis da retaguarda", os mocinhos de boa família que desfilavam pela cidade mas não esquentavam lugar nas trincheiras. É de espantar que os ideais da "paulistanidade" e os interesses maiores de "São Paulo", uvas da mesma vinha, sobrevivam à crítica do autor, que louva o ideal da Lei e os sinceros combatentes constitucionalistas, enquanto desanca os "políticos" e suas armações; em poucas palavras, o criador é infernal, mas a criatura revolucionária é angelical. É um grande exemplo de uma indivíduo que percebe algo das "artimanhas da dominação" (cf. a expressão – título da tese de Bezerra, 1981), mas restringe-se apenas à ladainha anti-político que já vem da década de 20, embarcando na criação de uma expressiva parcela da elite sem percebê-la como tal. Essa é a limitação das obras que, de dentro do movimento, procuram fazer a sua crítica: esta é incompleta, desarticulada e presa aos aspectos mais aparentes, gritantes, da trama toda; e estranho seria se não fosse assim. Podemos observar a hegemonia em ação, pois o autor, mesmo criticando assistematicamente alguns aspectos da realidade, permanece preso ao ideário fundamental, à visão de mundo gestada pela oligarquia paulista.

Este trabalho de Luis V. de Melo tem uma série de semelhanças com o Palmares pelo Avesso, do escritor Paulo Duarte cuja publicação que ocorre em clima mais ameno, em 1947, com o autor alegando uma das máximas da historiografia de inspiração metódica: a de que o distanciamento temporal do objeto de análise favorece a objetividade do estudo. Desse modo, sente-se à vontade este grande intelectual da manutenção da ideologia do regionalismo paulista para desfiar as misérias dos combates de 32, sem em momento algum criticar o seu ideal, procurando manter inalteradas as posições políticas e ideológicas deixadas pelo movimento, num orgulho de exibir as cicatrizes sulcadas pela dedicação ao movimento e à manutenção de sua memória.

Fica claro em muitos trechos um desânimo com a situação instalada no front paulista: batalhões que recuam apavorados, sem sequer haver pressão dos inimigos, a falta de fibra da fina flor da mocidade paulistana (que tanto é louvada em outras obras) que deixa a desejar comparada aos antepassados bandeirantes, a criação artificial de heróis da retaguarda pela imprensa, que despreza os soldados valorosos que morreram nas trincheiras. Das obras que li, esta é a que apresenta mais pontos em comum com o desencanto de Nada de Novo no Front, de Erich Maria Remarque, um dos mais notórios livros de memórias da 1ª Guerra Mundial, evento que secreta também uma grande bibliografia de narrativas de participantes das batalhas da conflagração. Essas obras cruzam-se, mas logo seguem caminhos diferentes, e por isso a comparação é meramente ilustrativa: enquanto o alemão expõe as mazelas do conflito procurando convencer para a paz acima de tudo, Duarte não tem escrúpulos em desmistificar as sagradas trincheiras de 32 com crueza, mas apenas deplora que os paulistas não tenham podido ser melhores combatentes pelo ideal que, mesmo sob esse novo fogo cruzado, escapa ileso. O escritor nos fornece um exemplo da possibilidade de uma crítica que não passa do verniz, mas que ocupa o espaço da crítica aprofundada.

É importante destacar também dois romances que expõem as pequenas misérias e divisões internas aos constitucionalistas, procurando contradizer sua retórica. Trata-se do pouco conhecido Iago Joe (pseudônimo de David Antunes) em seu Incenso e Pólvora (1937) e do clássico de Oswald de Andrade, Marco Zero I, A Revolução Melancólica (1943).

Um outro grupo de obras é o que tem seu acento mais forte no ufanismo, que canta "São Paulo" em suas qualidades, grandezas de toda ordem, heroísmos, propondo o estado de São Paulo como uma realidade à parte, homogênea, padrão e condutor da nacionalidade ou embrião de uma nação própria. São Paulo, aliás, aparece como animizado, encarnado o sujeito coletivo da revolução, um ser homogêneo composto da vontade dos paulistas:

"Ao grito de alarme, ao toque de reunir, ao vibrar de um clarim, todo S. Paulo, num salto veloz, postou-se de pé. E um bloco gigante, indestrutível, impetuoso, rolou sobre as terras de Piratininga, rumo à vitória. Era a mais bela, mais portentosa, a mais numerosa e potente bandeira de quantas já se organizaram desde os longínquos, imortais bandeirantes na gloriosa campanha de afastar horizontes e ampliar as fronteiras do nosso querido, amado Brasil. Era S. Paulo pela constituição, feito cruzada do Brasil pela lei." (ALVES SOBRINHO, 1932: 49)

O patriotismo paulista é um dos elementos que mora dentro da ideologia da paulistanidade, que é uma tradição mais longa, que vem desde o final do século XIX, no Império, expressando-se em obras como A Pátria Paulista, do parlamentar republicano Alberto Sales, que procura valer-se do cientificismo do seu tempo para propor o separatismo como alternativa lógica para São Paulo, e São Paulo na Federação, de T. de Souza Lobo, onde procura-se defender o estado das acusações dos demais brasileiros, nos primeiros momentos da crise da hegemonia paulista na Primeira República. Essa ideologia incrementa-se com a Revolução Constitucionalista de 1932 e continua adiante, encontrando expressão em dois livros abordados que fogem das características cronológicas desta lista inicial, de obras da década de 30: o álbum fotográfico da Melhoramentos, Isto é São Paulo (1952), e Terra Bandeirante, do mineiro Célio Conde Leite (1943), este preocupado em demonstrar a ausência de bairrismo e de espírito nacionalista-separatista de São Paulo, isso em pleno Estado Novo centralizador e desejoso de consolidar a idéia de nação brasileira. Essas obras participam de um movimento descordenado, porém contínuo e eficiente de construção do sentimento e das características da paulistanidade, juntamente com outro grupo de obras, as históricas, que vão cavoucar na história pretensas raízes dessa paulistanidade, construindo-lhe as tradições, projetando-as no passado (HOBSBAWN e RANGER, 1997). É o caso de O Despertar de São Paulo, de Menotti del Picchia (1933), publicado ainda sob o bafo quente da batalha recém-encerrada, num propício momento para oferecer aos paulistas elementos tradicionais e históricos de unidade com os quais se identificar.

É possível, então, destacar um grupo de autores que se pode classificar como a "intelectualidade orgânica" da classe dominante paulista que ao mesmo tempo participa da Revolução Constitucionalista de 1932 ativamente, como organizadores ou combatentes, e realizam trabalho de historiador, tanto da revolução quanto do objeto "São Paulo". Sua produção é uma espécie de matriz para a temática da paulistanidade comentadas na produção bibliográfica, e mesmo nos discursos políticos e preconceitos populares. São responsáveis por sistematizar um núcleo de imagens e idéias anteriores e contemporâneas à Revolução Constitucionalista de 1932, alinhavando-as com a história tradicional paulista. Procuram dar coerência à relação entre a mitologia bandeirante e o caráter do paulista, produzindo imagens que depois espalham-se nos hinos, discursos, conversas da população, enfim, todo o clima de idéias e sentimentos que marca as páginas da bibliografia que estamos analisando, possibilitando-lhe ter tantos traços comuns.

1932 é o momento de maior capacidade da oligarquia paulista de reproduzir hegemonicamente o seu consenso dentro do estado, e ao mesmo tempo é o primeiro instante da crise dessa hegemonia, que chega a ampla erosão com o Estado Novo. Nesse período de erosão, primeiro nacionalmente e depois dentro do próprio estado de São Paulo, podemos qualificar os seus intelectuais como tradicionais, primeiro por estarem ligados a uma classe em vias de desaparição (como classe dominante regional, para amalgamar-se e perder essa identidade, num processo que não controla totalmente, compondo-se enquanto parcela de uma classe dominante nacional), e depois por terem numa tradição (construída) o esteio para seus discursos.

Selecionamos, como representativos Alfredo Ellis Jr., professor de História na USP nas décadas de 30 e 40, e o historiador e político Aureliano Leite, ambos com ligações políticas com os partidos dominantes de São Paulo em 1932 /34, ambos criadores de paulistanidade através de ensaios históricos, ambos comentadores da Revolução Constitucionalista de 1932 por um viés mais amplo e analítico que o testemunho. Estes autores, têm importância matricial no pensamento, teorização e promoção da ideologia da paulistanidade. Encontram-se inseridos num universo um pouco maior, formado também por pessoas como Affonso de Escragnole Taunay, Paulo Duarte, Washington Luís, Júlio Mesquita, Menotti del Pichia, Guilherme de Almeida, enfim, a intelectualidade ligada à elite paulista. Mas selecionamos estes dois por sua ativa participação na Revolução Constitucionalista de 1932, como combatentes efetivos (e que portanto também produzem livros "narrativos", ainda que uma preocupação maior com a imparcialidade da história faça-os desaparecer enquanto testemunhas e imprima às obras um tom que pretende ser mais analítico), e também por tornarem-se historiadores tradicionais que passam a produzir sistematicamente o conhecimento tendo por tema a história regional de São Paulo. Eles podem ser tomados como produtores de imagens, tradições, matrizes de pensamento, concepções de história e de sociedade da oligarquia que reproduzir-se-ão entre divulgadores, educadores, e no senso comum (Ellis Jr., após carreira jurídica e política, torna-se titular da cadeira de História da Civilização Brasileira na USP; Leite tem intensa atuação jornalística e político-partidária, e torna-se membro atuante no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo). Ambos terão sua formação intelectual baseada na Faculdade de Direito de São Paulo, e serão ambos membros do IHGSP e da Academia Paulista de Letras. Suas obras de história juntas ultrapassam duas dezenas, e o significado dessa produção intelectual é a seleção de fatos do passado paulista para a montagem de um subsídio historiográfico para a tradição inventada que estrutura-se na coerência entre os feitos dos bandeirantes, a pujança da lavoura cafeeira e da economia paulista, a Revolução de 1932 e um pretenso caráter paulista, padrão para a nacionalidade brasileira, que teria surgido a partir daquele, sobretudo.

O Partido Democrático, do qual Leite foi fundador, pela sua própria intitulação, vinha a exigir mais democracia na arrumação oligárquica da política estadual. Entretanto, na citação abaixo, temos um indício importante da concepção de democracia da elite paulista, revelada peli autor ao comentar a adesão de parte da massa popular à revolta de 1924:

" - Compreenda-se o povo - disse-nos um falso observador - há dois meses apenas carregava êle próprio para a casa do govêrno, numa manifestação régia, como igual não há memória em nossa terra, o Presidente Carlos de Campos; hoje, o mesmo povo apoia incondicionalmente subversivos acontecimentos (...) A confusão era quási um crime, ou o falso observador errara grosseiramente. (...)O povo, com interesses enraizados a proteger, famílias a zelar, princípios a defender, prêso ao grilhão dos deveres, com direitos a fruir, não poderia ser revoltoso, não poderia atentar em mero lance aventureiro, sem motivos de grande fôrça, contra os poderes constituídos. O povo não foi revoltoso, a canalha da rua sim" (LEITE, 1924: 76-7 e 80)

Se considerarmos as apreciações heróicas do bandeirante comungadas por Aureliano Leite em sua obra, a derrota militar em 1932 constitui-se em uma grande contradição, em uma nota dissonante na harmonia da tradição paulista. Com efeito, se os ancestrais foram capazes de feitos de armas sob as mais áridas condições, como explicar que os descendentes, em 1932, tenham caído perante forças muitas vezes compostas por soldados de raças que nem sequer chegavam aos pés dos descendentes dos bandeirantes? Há um precedente histórico, um único momento em que aparecem os bandeirantes derrotados, na Guerra dos Emboabas, no episódio do "Capão da Traição": apenas a traição pode explicar a derrota dos paulistas:

"S. Paulo não se rendeu; uma parte daqueles a quem êle confiou sua a sua defeza logrou amarrar-lhe de braços e pernas e entregá-lo ao inimigo, a troco de bem magro prêço. Se foi pago o custo, escreveria Vivaldo Coaraci em ‘Sala da Capela’, sabem os que mercadejaram a transação infame" (LEITE, 1934: 372)

Ellis Jr. é talvez o principal formulador da idéia de paulistanidade no século XX, dando-lhe o nome e, posteriormente, militando por sua penetração no meio acadêmico e por conseqüência no meio escolar. O termo nasce no estudo dos bandeirantes, tema ao qual Alfredo Ellis Jr. dedica toda a sua vida de historiador. Antes, porém, Ellis Jr. dedicará os primeiros anos de sua atividade a obras de comentário da conjuntura política envolvendo São Paulo, nas quais são gestados com firmeza os conceitos regionalistas que embasarão sua obra historiográfica posterior. Nesse sentido são fundamentais "A Nossa Guerra" e "Confederação ou Separação", em que há pouca preocupação em negar o separatismo paulista. Em Alfredo Ellis Jr. o desejo de autonomia e a noção de identidade paulista é mais marcante que em qualquer outro intelectual orgânico da elite paulista que tenha se debruçado sobre o tema, seus pudores são menores e sua influência sobre o setor educacional é bastante considerável.

Um elemento inicial da obra de Ellis, e que é matriz para a grande maioria dos paulistas que escrevem sobre a Revolução de 1932, como foi possível constatar em outro ponto desse texto, é a concepção de história como um corpo neutro de conhecimentos, destinado a estabelecer a "verdade", mesmo em uma obra passional como "A Nossa Guerra", em que o autor pretende, como expressa no prefácio, não acusar ninguém, mas também não deixar de dizer o que é preciso que as novas gerações saibam sobre a grande epopéia bélica dos paulistas no século XX, para que com esta não ocorra a mesma perda dos dados da memória que se deu com o bandeirismo. A mesma intenção de constituir-se como monumento perpetuador da memória de uma revolução pelo ponto de vista de seus protagonistas é colocada para o autor como a busca da verdade, em contraposição às versões da ditadura de Vargas sobre 1932.

Inicia-se "A Nossa Guerra" pela exposição da obra política, social e econômica do PRP no estado de São Paulo, que, segundo o autor, teria sido destruída pela demagógica oposição sistemática do PD, incapaz de perceber a dimensão da paulistanidade na política perrepista na Primeira República. Isso teria se expressado no não-apoio do PD à candidatura paulista de Júlio Prestes à presidência da República e conseqüente adesão à Aliança Liberal, de Getúlio vargas e João Pessoa:

"Levado, talvez, pela sua obstinada oposição systhematica, o Partido Democrático , procedeu brasileiramente,como se o Brasil fosse um país unitário, ao envez de agir paulistamente, tendo a visão geral das cousas, isto é que, o Brasil não é senão um agrupamento de paizes, tendo cada um deles interesses antagonicos e chocantes." (ELLIS JR., 1933b: 26)

A grande causa da Revolução de 1932, para o autor, é a inabilidade do Governo Provisório ao tratar o altivo estado de São Paulo, através de sua política para o café e de interventores, como se fosse uma presa de guerra, desprezando seu poder e sua pujança, dando até aos relutantes a certeza de que a Revolução de 1930 não tinha sido dirigida contra um velho regime, mas contra o estado de São Paulo como um todo:

" Os revolucionários de 30 se encarniçaram em quebrar os liames de lyrismo que prendiam São Paulo à brasilidade. Elles eram os melhores obreiros do separatismo. Cortavam o último laço que prendia S. Paulo ao Brasil, o laço do sentimentalismo." (ELLIS JR., 1933b: 42)

Alfredo Ellis Jr. pretende fazer crer que a paulistanidade, nas dimensões que alcançou após a Revolução de 1932, não é algo natural do paulista mas sim um sentimento que só ganha um desabalado crescimento com o tratamento dado pelo Governo Provisório ao estado, principalmente nas atrocidades da guerra que move contra o paulista. Todavia, perante a situação pós-30, perante a impossibilidade de autonomia, ganha força a perspectiva da pátria paulista:

"O ambiente, ainda não estava sufficientemente preparado para a separação. (...) Não eram todos, que a desejavam; não eram todos, que a comprehendiam; não eram todos que, com facilidade, podiam se despegar do espírito em que haviam sido criados. Ainda um lyrismo pyégas, encobria como um véu, a verdadeira situação de S. Paulo no Brasil. (...) Era um anseio inenarrável pela autonomia, apenas, a qual lhe fora tirada desde Outubro de 1930. O meio de reconquistal-a seria a volta do paiz ao regimen legal." (ELLIS JR., 1933a: 146)

Ainda em 1933, Ellis oferece ao público duas edições, rapidamente esgotadas, de "Confederação ou Separação", onde desenvolve o seguinte raciocínio: o Brasil é um país de imensas diferenças regionais, cujos laços de união necessários à constituição de um Nação estão decompostos e frágeis, notadamente o interesse econômico, que é diverso; a imensa pluralidade das raças só agrava o quadro, não contribuindo para a existência de uma identidade nacional (aqui, vai na contramão dos intelectuais da cultura brasileira, baseado nas teorias raciais do século XIX); há uma grande diversidade de tradições históricas; a sentimentalidade brasileira desaparece aos poucos, perante as dificuldades de se manter o orgulho em pertencer ao Brasil, pelo agravamento de seus problemas; a saída, portanto, é descentralizar, como no regime federativo da Primeira República, pois na impossibilidade disto, a decorrência é a separação. Neste raciocínio aparecerão os argumentos que se enraízam na mentalidade paulista, como por exemplo o fato de São Paulo, por seus tributos, sustentar o Brasil, ou a injustiça da representação parlamentar do estado no nível federal. Para Ellis Jr., as centenas de referências à brasilidade de 32, como o uso das bandeiras verde-amarelas, a efígie de figuras nacionais nos bônus de guerra (em vez dos bandeirantes), o brasão do "Pro-Brasilia Fiant Eximia", são preocupações dos dirigentes da revolução com seus argumentos para justificá-la frente a opinião pública do resto do Brasil e também do mundo; tal preocupação, narra Ellis, não era tão marcante entre o povo, onde o desejo de separação encontrou ressonância com facilidade.

Em 2002, o movimento constitucionalista estará completando 70 anos. Nos aniversários anteriores, muito se falou e escreveu, sendo que em 1997 a grande marca foi a retomada do 9 de Julho como feriado oficial em São Paulo, perante uma população "bestializada", para a qual a data já tinha perdido o significado. Este texto pretende contribuir em dois sentidos: para que esse significado seja relembrado, e para que as visões oficiais e tradicionais continuem perdendo sua onipresença.

Referências Bilbiográficas

  1. ALVES SOBRINHO, Rufino. São Paulo triunfante. Depoimento e subsídio para a história. São Paulo, Edição do autor, 1932.
  2. BENJAMIN, Walter. O narrador, Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo, Brasiliense, 1994.
  3. BEZERRA, Holien Gonçalves. As artimanhas da dominação: São Paulo, São Paulo, Tese de Doutorado - FFLCH-USP, 1981 (mimeo).
  4. BRUSSULO, Armando. Tudo pelo Brasil. São Paulo, Editorial Paulista, 1932.
  5. ELLIS JR., Alfredo. Confederação ou separação. São Paulo, Piratininga, 1933(a).
  6. ELLIS JR., Alfredo. A nossa guerra. São Paulo, Piratininga, 1933(b).
  7. HOBSBAWN, Eric J. e RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
  8. KARAM, Elias. Um paranaense nas trincheiras da lei. Curitiba, A Cruzada, 1933.
  9. LEITE, Aureliano. Dias de pavor. Figuras e scenas da revolta de São Paulo. São Paulo, s.c.p., 1924.
  10. LEITE, Aureliano. Martírio e glória de São Paulo. São Paulo, s.c.p., 1934.
  11. LEITE, Dante Moreira. O Caráter Nacional Brasileiro - História de uma Ideologia. 4ª ed., São Paulo, Pioneira, 1983.
  12. MOURA, Jair Pinto de. A fogueira constitucionalista. São Paulo, Paulista, 1933.

Fonte: Narradores de 1932: bibliografia paulista de uma revolução. Revista Resgate (Centro de Memória da UNICAMP), Campinas, SP, v. 10, p. 23-38, 2001

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