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sexta-feira, 10 de julho de 2009

ON DUCOR, DUCO: A Ideologia da Paulistanidade e a Escola

Luis Fernando Cerri
Universidade Federal de Ponta Grossa


Resumo

O artigo apresenta as idéias centrais da dissertação homô-nima, preocupada com a identificação da ideologia do regionalismo do Estado de São Paulo, a construção de deter-minadas imagens utilizando a história tradicional por parte dos intelectuais da oligarquia paulista, bem como a projeção dessas características histórico-tradicionais dessa ideologia através do tempo via ensino público.

Abstract

The article presents the central ideas of the homonymous dissertation, preoccupied about the identification of the regionalist ideology of the São Paulo's state, the building of some images utilizing the tradicional history, by the paulista oligarchy's intelectuals, and also the projection of those historic-traditional characteristics of that ideology through the time by way of public teaching.

O regionalismo é um problema com duas faces: em primeiro lugar, é uma decorrência do sentimento natural de etnocentrismo, a tendência do ser humano em encarar o seu grupo como o centro de todas as coisas, conforme aponta Dante Moreira Leite1. O outro lado da questão é o fato das regiões e das próprias nações serem construções historicamente datadas e socialmente determinadas. O surgimento do Estado Nacional é um exemplo claro disso, em que os interesses das classes dominantes do início da Idade Moderna criam as nações demarcando os seus limites e estabelecendo sua identidade. Essa identidade é generalizada socialmente numa complexa interação entre interesses dominantes, elementos da cultura popular, ideologia, história e educação, donde nasce o nacionalismo enquanto sentimento e projeto político sob vários olhares possíveis; um processo semelhante acontece, como foi possível constatar nessa pesquisa, com o regionalismo. Portanto, ao contrário do etnocentrismo, o sentimento nacional e o sentimento regional são construções, são artificialidades colocadas ao conjunto dos cidadãos, são identidades adaptadas artificialmente ao sentimento etnocêntrico, para o quê concorre de forma imprescindível a ação da instituição escolar2. O Estado e a classe que o hegemoniza têm um papel fundamental na constituição da idéia do "eu" e do "outro".

Foi levando em consideração essas questões que abordamos o regionalismo paulista e seu instrumento principal e inseparável de divulgação e perpetuação: o ensino de História. Evidentemente, compreendemos aqui o ensino de História como um amplo conjunto de práticas pedagógicas que utilizam a referência ao conjunto de conhecimentos construídos sobre o passado: não limitamos o campo do ensino de História às aulas dessa disciplina, mas consideramos que ele se realiza também na sala de aula no espaço das outras disciplinas e atividades (Literatura, Estudos Sociais, Canto Orfeônico, Educação Artística, atividades de pesquisa escolar, festas cívicas, monumentos, iconografia).

Tratamos o regionalismo paulista como ideologia da paulistanidade, em busca de um referencial teórico que permitisse captar a multiplicidade de aspectos do objeto. Ideologia, portanto, não aparece aqui como um conjunto de falsificações maquiavélicas ou como erro, mas sim como o "conjunto de representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de conduta)"3, como concepção de mundo que aparece em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva. Escolhemos abordar este objeto através deste conceito pela possibilidade que daí decorre de englobar a multiplicidade de formas por meio das quais o regionalismo manifesta-se. A ideologia da paulistanidade, como parcela da ideologia da classe dominante com características regionais, expressa-se desde a ciência - destacando aí a produção historiográfica paulista - até o folclore, passando pelo senso comum. Engloba o imaginário social e as mitologias, especialmente no que se refere às identidades "geográficas" (região e nação). Cumpre parte da função mais ampla do discurso ideológico, que é o de forjar outras identidades que não as de classe.

O termo "paulistanidade" surge, pelo que foi possível averiguar, na obra do historiador Alfredo Ellis Jr., intitulado A Nossa Guerra4. Ellis utiliza o termo ao adjetivar o espírito, o sentimento que toma conta dos paulistas e leva-os à guerra civil de 1932 depois dos ultrajes impostos pelo Governo Provisório e as interventorias impostas ao Estado. Ao qualificá-lo de ideologia, a intenção também é ultrapassar essa caracterização vaga de sentimento, simplesmente para enquadrá-lo como algo mais complexo. A paulistanidade é a ideologia produzida pela oligarquia paulista que consiste na criação de uma identidade de ordem regional, valorizando a condição de pertencente ao Estado (numa operação de homogeneização, nível das idéias, de seus habitantes), ao mesmo tempo em que institui uma série de valores e características como próprias da condição de paulista e, para sacramentar essa construção, oferece uma explicação para essa situação por meio do recurso à História Regional, que aponta o bandeirante como ancestral, civilizador, patriarca do paulista.

Paulistanidade em Perspectiva Histórica

Uma generalização da condição de paulista e uma avaliação favorável dessa condição são criações presentes já no século XVIII, quando Pedro Taques de Almeida escreve a Nobiliarquia Paulistana, visando ligar as famílias paulistanas aos nomes da nobreza. Outros cronistas também seguem essa preocupação, visando dar ao pequeno burgo de Piratininga uma identidade guerreira, destacada da maioria dos mortais. Provavelmente influenciado por esta leitura da história paulista, o viajante Auguste de Saint-Hilaire exclama que os paulistas são uma espécie de "raça de gigantes", e com esta frase faz escola, sendo repetido por muitos intelectuais e outros membros da elite de São Paulo.

Entretanto, a ideologia da paulistanidade só passará de um aglomerado de idéias fragmentadas para um sistema coerente quando, no Estado, um grupo social emergente passa a se dedicar à cultura cafeeira, no século XIX. Essa atividade moldará um novo perfil da classe dominante regional, ávida, além dos lucros, do poder estatal, da sedutora perspectiva de comandar não apenas a sua própria região, mas o país como um todo. A paulistanidade começa a se definir, nesse momento, a partir de duas funções básicas: como auto-afirmação/identificação de um grupo social em ascenção econômica e política, e como instrumento deste grupo para atingir seus objetivos de hegemonia sobre a sociedade e controle sobre as demais parcelas da classe dominante brasileira.

Dessa maneira, a história paulista é chamada de seu sono, convocada a servir de base para a ideologia. Uma das primeiras construções e identificações feita neste momento é das características da elite cafeicultora com as do bandeirante, com o qual procura-se estabelecer uma relação mais que histórica, uma relação genética:

Por meio século, poucos paulistas educados tinham qualquer dúvida de que sua psicologia coletiva fôra herdada dos bandeirantes, mas a maioria dos autores e apologistas enfatizavam os aspectos positivos: o bandeirante havia expandido a fronteira; havia posto sua energia a serviço de fins produtivos; havia percebido oportunidades e tirado bom proveito delas; havia apontado o caminho do futuro à nação brasileira. Cabia a seus descendentes modernos aceitar o destino de liderarem o país5.

Para a elite, o bandeirante vincula atemporalmente o paulista a uma vocação nacional, de construtor das amplas fronteiras do território a mantenedor da grandeza nacional. O mecanismo ideológico básico de generalização transmitirá essa noção, essas imagens e esse sentimento ao conjunto das classes sociais presentes em São Paulo, ainda que nem de longe possam estabelecer qualquer relação - mesmo que remota ou duvidosa, como é o caso da elite - de parentesco com os sertanistas coloniais. Trata-se, portanto, de uma dupla construção, do bandeirante e do paulista, estabelecendo um embricamento necessário entre cada uma das construções isoladamente.

No Partido Republicano Paulista, em luta pela derrocada do Império e pela presença paulista no governo do país, o discurso da paulistanidade tem uma presença marcante e desenvolve-se ao seu extremo em algumas alas, que propõem o separatismo de São Paulo para constituir o que Alberto Sales (irmão do futuro presidente Campos Sales) chama de A Pátria Paulista 6.

Com a proclamação da República e a federalização do poder, começam as primeiras iniciativas oficiais no Estado de São Paulo no sentido de incentivar a produção historiográfica e a divulgação que privilegiem a consolidação da paulistanidade. A fundação do Museu Paulista (também conhecido como Museu do Ipiranga) em 1895 e a publicação dos inventários das famílias paulistas dos séculos anteriores pelo governador Washington Luis, de 1920 a 1924, são exemplos claros dessa preocupação.

Neste mesmo período, os intelectuais orgânicos da elite paulista desenvolvem estudos historiográficos importantíssimos para a consolidação - pela comprovação documental - dos postulados da ideologia em questão. O exemplo mais significativo é o de Afonso d'Escragnolle Taunay, autor de uma vasta obra sobre os bandeirantes na qual se destaca a História Geral das Bandeiras Paulistas, cuja publicação leva quase quatro décadas. Taunay terá como contribuição fundamental a ligação da história nacional à história paulista, tornando a primeira dependente da segunda; isso será feito por meio de sua obra, de sua ação como diretor do Museu Paulista e da sua atividade didática como o primeiro ocupante da cadeira de História da Civilização Brasileira na Universidade de São Paulo.

Data também desse período a mistificação de que São Paulo é o Estado mais rico porque o seu povo é o que mais se dedica ao trabalho. O movimento verde-amarelo, expressão de um modernismo com posições mais conservadoras, será um dos movimentos intelectuais dedicado a propagar a seriedade, o trabalho, o pragmatismo, a responsabilidade, como características naturais do caráter regional paulista7.

Em meados da década de 20, entretanto, a produção intelectual da elite de São Paulo passa a ter uma nova preocupação: a de defender a supremacia de São Paulo perante as críticas de outras elites regionais, que desenvolvem um discurso contrário ao da paulistanidade, como reflexo de sua luta pela participação no poder central. Essa preocupação marca as obras dos autores paulistas, como Souza Lobo e Paulo Prado.

A década de 1930 e as seguintes, marcadas pelo fato novo das revoluções de 1930 e 1932, colocam a paulistanidade na defensiva, mas também são o período mais significativo para o estudo do objeto em questão: a propagação da ideologia da paulistanidade tendo a escola por meio. Para o estabelecimento desta ponte, procuramos selecionar dois intelectuais que constituíssem padrões da historiografia paulista, formadores de opinião e construtores do conteúdo, do saber histórico empregado na escola.

Entre tantos autores ligados à contínua formação da ideologia da paulistanidade, principalmente na década de 1930 (por exemplo, Paulo Duarte, Guilherme de Almeida e Menotti del Picchia), fizemos uma análise mais detida em dois deles, apenas: Aureliano Leite e Alfredo Ellis Jr., que apresentam algumas características comuns e que interessam ao tipo de preocupação sobre a qual nos debruçamos. A formação acadêmica de ambos (bem como da maior parte da elite paulista) é muito parecida, pois ambos passam pela Faculdade de Direito de São Paulo, o templo sagrado da ideologia e escola dos quadros da oligarquia de São Paulo. Em primeiro lugar, porque a tônica de sua obra intelectual está ligada ao estudo da História de São Paulo: podemos mesmo arriscar a afirmação de que são os dois mais significativos autores desse objeto específico que se seguem cronologicamente a Afonso de Taunay.

Dada essa condição, em segundo lugar os dois participam da Revolução Constitucionalista de 1932 na condição de combatentes efetivos. Creio que essa experiência dar-lhes-á um tom mais carregado para o seu regionalismo, marcando sua posição política e intelectual para o resto da vida, bem como fornecendo-lhes a autoridade de participantes briosos e viris da mais significativa atividade dos "bandeirantes" no século XX, exatamente o período de maior apelo e expressão da ideologia da paulistanidade neste século. Por sua atuação na política paulista, na ocupação de cargos eletivos e por nomeação, ambos podem ser considerados membros efetivos da elite política estadual, estando ligados cada um a um setor da oligarquia paulista: Alfredo Ellis Jr., seguindo a tradição paterna, é participante e convicto defensor do Partido Republicano Paulista, e Aureliano Leite é membro fundador e participante do Partido Democrático, além de participante da bancada federal do Partido Constitucionalista.

Finalmente, ambos serão membros do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, espaço de produção e divulgação de uma história tradicional, política, social, historiograficamente falando. Esse é um ponto crucial: sua tarefa, enquanto intelectuais/historiadores tradicionais de São Paulo, utilizando a terminologia braudeliana, é inserir a Revolução Constitucionalista de 1932, elemento do tempo curto, numa construção ideológica e historiográfica mais extensa, a tradição da paulistanidade. Esta é reivindicada como uma continuidade psicológica desde João Ramalho até Armando de Salles Oliveira e além.

Convencer desta continuidade histórica com a naturalidade inquestionável do dogma é o objetivo dessa construção historiográfica em sua projeção escolar. Mais do que elencar biografias, procuramos identificar tanto as características da ideologia que orienta suas produções intelectuais, quanto evidenciar que suas atividades profissionais constituem-se em espaços de atividade intelectual8. Não procuramos nestes historiadores os especialistas mais destacados no tema bandeirismo, mas sim os produtores das matrizes historiográficas da paulistanidade, da edificação de uma tradição9 que procura ligar as bandeiras com a cafeicultura, as indústrias, a revolução de 1932. É por este motivo que não selecionamos Cassiano Ricardo, por exemplo, pois ele busca nos bandeirantes prioritariamente uma expressão de brasilidade, e além de tudo não tem relações partidárias ou pessoais com a oligarquia regional.

Na análise desses autores, foi possível a constatação de alguns eixos da ideologia da paulistanidade atualizada por esses autores neste momento. Trata-se, por exemplo, de:

a- uma visão restrita da idéia de povo e de cidadão, englobando nesta condição apenas as pessoas alfabetizadas e educadas pelos instrumentos controlados pela oligarquia, ou seja, as pessoas enquadradas em seu projeto político-pedagógico;

b- uma idéia do paulista como defensor nato da Lei e da Ordem, ainda que estes termos apareçam de uma forma um tanto vaga e pouco criteriosa, também com a preocupação de ligar esta construção a eventos do passado;

c- uma elisão dos aspectos negativos da história dos personagens paulistas e uma sobrevalorização dos momentos em que os mesmos apresentam os comportamentos esperados (e esse é o mecanismo de construção da tradição histórica), ainda que Ellis se sinta forçado a manifestar os "maus momentos" pela sua ética cientificista;

d- um racismo mal disfarçado, ainda que tendendo a valorizar o índio para justificar que os mamelucos paulistas pudessem compor a tal "raça de gigantes";

e- enfim, mas não concluindo, a idéia de que 1932 é o momento máximo da epopéia dos paulistas no século XX, marco de heroísmo e luta pelo Direito e pela Liberdade, afirmando o Estado de São Paulo perante a nação. Aqui, a derrota converte-se, invariavelmente, em vitória.

Histórias Tradicionais e Histórias Oficiais

Julgamos fundamental discutir a diferença e o inter-relacionamento entre os conceitos de história oficial e história tradicional, a fim de melhor perceber o trânsito da ideologia entre as classes sociais, daí para o Estado, daí para a escola e de volta para as classes sociais.

A história oficial é um conjunto de saberes que estrutura o discurso do poder quando este se refere à sua situação no tempo, mas não é necessariamente produzida de forma direta por ele. O Estado recorre aos intelectuais organicamente ligados ao grupo que está no poder, e estes estabelecem parte significativa da argumentação que os governantes utilizarão para o debate político (ou o monólogo, nos regimes politicamente excludentes), bem como para os rituais cívicos exercidos pelos mesmos. Quero dizer, com isso, que a história oficial não é uma produção sistematizada unicamente pelo (e dentro do) Estado, mas geralmente produzida pelos intelectuais cuja visão compartilha da ótica do grupo no poder, e que a ele estão relacionados por afinidade política, geralmente expressa pela presença em algum posto da hierarquia governamental ou por financiamentos oficiais sob variados títulos.

O discurso oficial é o discurso que ganha a força da legitimidade, uma vez que é legitimado pelo poder que representa. O discurso oficial, portanto, é o discurso do poder. A história oficial é a história diretamente vinculada ao poder, legitimada e ao mesmo tempo legitimadora dele. Essa idéia corresponde, de uma forma geral, ao conceito de "história institucional", de Marc Ferro, referindo-se à história que legitima uma política, uma ideologia, um regime10. O estabelecimento de uma história oficial é uma necessidade básica, instintiva mesmo, de cada grupo social nas instituições que organiza; essa história é um dos elementos ideológicos com o papel de justificar e legitimar a existência da instituição perante a luta ideológica que se manifesta no conjunto da sociedade.

Próximo, mas não coincidente, temos o conceito de história tradicional. O termo evoca a idéia de uma continuidade temporal que se projeta, a partir do presente, em direção ao passado. Assim, possibilita entender e/ou justificar práticas e valores que sobrevivem contemporaneamente, e cuja origem é estabelecida na ponta inicial da linha da tradição.

Ao contrário da história oficial, que é uma história vinculada ao seu caráter de pertença à instituição, a história tradicional é uma história de classe, e portanto tem uma conotação primeiramente social. Ela é, então, um elemento de identificação de um determinado estrato da sociedade, e surge no seu confronto objetivo com outros setores, ligando-se ao próprio processo de formação e desenvolvimento da classe.

Assim, compreendido o termo, podemos somar a essa reflexão sobre a história tradicional uma outra contribuição sobre o seu caráter, através da referência ao conceito de intelectual tradicional, de Antonio Gramsci. O intelectual tradicional é aquele que tem sua origem marcada pela ligação com uma classe já desorganizada ou em vias de desaparecimento, motivo pelo qual, em algum tempo, tem a possibilidade de ser cooptado por algumas das classes efetivamente participantes da luta na sociedade. O próprio autor reconhece uma certa ambigüidade no conceito, na medida em que os intelectuais tradicionais muitas vezes já aparecem com ligações orgânicas com as "novas" classes, sem perder de vista idéias e valores da tradição na qual se formaram. Parece-nos uma forma adequada de se caracterizar a oligarquia paulista na década de 1930, desde que estejamos abertos ao conceito mais flexível de classe tal como é pensado por Thompson11 e Przeworski12, entre outros.

Para Hobsbawn e Ranger13, existem tradições genuínas e tradições que são inventadas; as primeiras ligam-se ao período em que "os velhos usos ainda se conservam", em que a classe que a institui está, de fato, ligada à origem que anuncia, numa longa continuidade temporal, e não encontra problemas para a sua situação na sociedade. Já a tradição inventada caracteriza-se pela ligação "forçada" que uma classe, em um momento em que precisa se afirmar, faz com um determinado passado, a fim de inculcar valores e normas de comportamento. Nesse sentido, a oligarquia cafeeira de São Paulo cria, no século XIX, a noção de que está ligada pelos valores, práticas, e até mesmo pela vinculação biológica aos bandeirantes dos séculos XVI, XVII e XVIII. O símbolo do bandeirante e suas características psicológicas serão daí por diante reverenciados e transmitidos para as novas gerações da elite, bem como propagandeados para o restante da população, procurando generalizar essa tradição como pertencente aos habitantes do Estado como um todo.

Partindo dessas considerações, preocupamo-nos em estabelecer as diferenças de discurso entre alguns personagens eminentes que ocuparam postos de direção no Estado. Basicamente, por meio dos discursos do interventor/governador de São Paulo entre 1933/1937, Armando de Salles Oliveira, e do Chefe do Governo Provisório/Presidente da República, Getúlio Vargas, pudemos pontuar a disparidade de leituras sobre a Revolução de 1932 (além de outros eventos ligados à problemática de centralização/federalização), que aparece regionalmente como um evento positivo e de brasilidade; entretanto, na leitura oficial do mandatário máximo da nação, 1932 aparece como um evento mesquinho, bairrista, sedicioso e fruto da propaganda ilusória de uma oligarquia em prejuízo da maioria dos filhos do Estado. Como veremos adiante, o discurso da paulistanidade que aparece na escola paulista, principalmente sobre 1932, é o esforço em afirmar a versão tradicional regional e, por todos os meios, negar a versão oficial de origem federal. Portanto, a dinâmica do embate entre história oficial e tradicional - e também entre a história regional e a versão nacional - dá as características do discurso pedagógico da paulistanidade, do discurso sobre o Estado que vai para o ambiente escolar, "formar os cidadãos".

Cotidiano Escolar: O Lugar Pedagógico da Ideologia

Para Agnes Heller, o cotidiano é uma situação que absolutamente todos os seres humanos vivem, e que absorve a todos de forma preponderante. É o momento em que a pessoa inteira é chamada a responder ao meio, com todas as suas capacidades, ao mesmo tempo determinando que todas elas se realizem com baixa intensidade, incapacitando o ser de se fixar em apenas um aspecto dos que lhe demandam a atenção. Destaca assim, que a vida cotidiana compõe-se de uma heterogeneidade de partes orgânicas que estabelecem entre si uma hierarquização que acompanha as atividades principais de cada tempo, classe e tipo de relacionamento entre o homem e a natureza14.

No nosso caso, é importante refletir sobre um momento específico do cotidiano na história deste nosso século: a escola. Somente na medida em que situarmos a escola para a sociedade atual é que poderemos traçar algumas características da sua cotidianidade. É a civilização ocidental que introduz uma instituição mantida pelo Estado ou por ele fiscalizada/orientada, com o objetivo de transmitir sistematicamente a bagagem de conhecimentos gerais acumulada pelas gerações anteriores. Essa instituição, inicialmente, será tanto condição para a cidadania liberal - entendida politicamente - quanto promessa de ascenção social para as famílias mais pobres. Posteriormente, com o desenvolvimento tecnológico, o acesso à escola passa a significar a única chance de uma colocação razoável no mercado de trabalho, e hoje é possível dizer que os contingentes excluídos da escola serão brevemente os excluídos da sociedade em processo de automatização e informatização. A escola, enfim, torna-se em nossa sociedade o passaporte para a cidadania entendida amplamente, como a condição de participação digna em todos os aspectos da vida social. É possível notar, portanto, que a centralidade da escola para a sociedade vem numa linha ascendente do século XIX para o século XX, concomitantemente ao processo de sua massificação.

A escola, enquanto instituição responsável pelo amadurecimento do homem no sentido de lhe fornecer grande parte das habilidades imprescindíveis para a vida cotidiana de sua camada social, é o elemento que organizará, além do cotidiano futuro do indivíduo, o seu próprio cotidiano enquanto criança e adolescente. Essa afirmação é válida para os contingentes em crescimento da população que passam pela escola, apesar de todos os problemas nacionais relativos à repetência e evasão nas camadas populares. Além de definir o dia-a-dia dos escolares, a instituição é efetivamente também responsável pelo processo de fragmentação do indivíduo, na definição de seus papéis sociais e no reforço das condições de manipulação social e alienação15. É interessante notar que os momentos que Heller denomina como "elevação ao humano genérico", ou seja, a realização ampla das capacidades integrais da pessoa como ser humano, expressos na ciência, na arte, nas atitudes revolucionárias, são registrados pelo conhecimento como avanço da humanidade, transformados em saber transmissível e assim passados mecanicamente para os escolares.

Uma primeira característica do cotidiano escolar, que envolve principalmente o professor e o aluno (sendo para o primeiro uma situação de trabalho e para o segundo um cotidiano preparador da cotidianidade adulta) seria então a "anulação" do humano-genérico pela sua conversão em informação. Na Química, na História, na Biologia, o cotidiano da escola resume-se em informar os rompimentos da cotidianidade por meio de procedimento mecânico e repetitivo; daí a concepção tradicional em educação de que a escola é o lugar da re-produção do conhecimento, enquanto a produção do mesmo ocorre na universidade, nos laboratórios e em outros lugares privilegiados da criação onde se encontra, segundo Lukács, o "homem inteiramente"16.

Uma outra característica da cotidianidade da escola é a maneira cíclica e repetitiva pela qual transmite os conhecimentos, tanto nos programas de cada série em si quanto, no caso da História, pelo calendário cívico escolar. É este o espaço privilegiado para que se generalizem as "tradições inventadas", já que estas constituem "um processo de formalização e ritualização, caracterizado por se referir ao passado, mesmo que apenas pela imposição da repetição"17.

Optamos, então, por abordar alguns aspectos centrais desse processo mecânico de transmissão que ocorre no cotidiano da escola tradicional, em nossa busca da ideologia da paulistanidade tal como se expressa na escola. Estudamos os materiais didáticos, entendidos amplamente como todos os recursos materiais que auxiliam o professor e a instituição como um todo na transmissão dos conhecimentos aos quais se propõem, tanto nas atividades de sala de aula quanto nas conhecidas pesquisas bibliográficas em que o aluno recorre a todo tipo de materiais e publicações disponíveis na biblioteca. Os recursos didáticos são, dessa maneira, organizadores da memória que subsistirá como recurso a ser utilizado na vida cotidiana do futuro adulto que passa pela instituição.

Em busca da manifestação concreta desses condicionadores do cotidiano escolar, analisamos os materiais didáticos disponíveis na biblioteca da Escola Estadual Cesário Coimbra e da Biblioteca Municipal de Araras, complementando tal estudo com livros didáticos encontrados no Centro de Memória da UNICAMP e no Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas. Evidentemente, essa base documental é limitada, principalmente no que tange à sua representatividade, que fica impossível de mensurar com clareza, na medida em que não estão disponíveis dados como as tiragens dos livros, seu número total de edições, a efetiva utilização desses materiais por professores e alunos e a maneira pela qual esses materiais foram usados (de forma crítica ou passiva, por exemplo).

O objetivo do estudo desses materiais teve pretensões menores, pelas características desse trabalho: identificar, apenas, a presença da ideologia da paulistanidade nos materiais, indicando sua grande potencialidade de se concretizar, bem como analisar os mecanismos prováveis que essa ideologia usa para se reproduzir, a partir das pistas dessa documentação.

Foi possível constatar que os temas, conteúdos e discursos relativos a São Paulo e os paulistas reproduzem de forma simplificada o jogo de interesses e os conflitos entre as pretensões de história regional e história nacional, principalmente no que se refere às abordagens sobre a Revolução Constitucionalista de 1932.

Não é fácil determinar se um manual reproduz ou não a ideologia da paulistanidade. É preciso reconhecer que os historiadores vinculados a essa visão de mundo particular conseguiram fazer um excelente trabalho ao inserir entre os "grandes fatos históricos do Brasil", utilizando desde a consistência teórica e argumentativa até o volume de pesquisas e publicações, o ciclo das bandeiras e a Revolução Constitucionalista de 1932. Podemos considerar esses dois temas como os dois pontos fulcrais da transmissão da paulistanidade no ensino de História. Portanto, podemos considerar que o próprio fato de 1932 lograr inserir-se nos livros de História e ser estudado, qualquer que seja a leitura, já é uma grande demonstração de sua capacidade de aglutinar a recordação por força de seus agentes ou entusiastas em destacá-lo. Evidentemente, as proporções do combate contribuem para essa presença do episódio no ensino, mas, isoladamente, não a explicam.

A oligarquia paulista e seus remanescentes também tiveram que travar uma luta surda para obter espaço para a sua revolução. Sendo um tema menos "quente", o bandeirismo conseguiu esse espaço de uma forma mais suave, com as contribuições fundamentais de Taunay, Ellis Jr., Aureliano Leite e, posteriormente, o estadonovista Cassiano Ricardo. A nacionalização do tema do bandeirante decorre da sua capacidade de simbolizar a integração nacional, pois surge com esse objetivo na virada do século, tornando-se naquele momento o símbolo do federalismo hegemônico, e depois um dos símbolos da nação em crescimento18. A Revolução Constitucionalista de 1932, entretanto, encontra resistências até hoje e não consegue obter uma leitura positiva na maior parte do país, com raras exceções (a história produzida pelo exército e a opinião do mineiro Juscelino Kubitschek, por exemplo, tendo este último, inclusive, usado a imagem de progresso e desenvolvimento atribuída ao bandeirante em sua campanha presidencial).

Na medida em que a ampla maioria dos manuais didáticos segue a regra positivista de apresentar os fatos objetivamente (os fatos falando "por si próprios", como expressões da verdade), não saltam à vista de imediato os posicionamentos ideológicos dos autores; procuramo-los, portanto, nas entrelinhas e nos indícios de cada obra, que são, freqüentemente, o espaço onde habitam os valores dominantes e as lições da ideologia.

Não apenas na escrita reside a transmissão dos valores e idéias da paulistanidade. Também as imagens têm essa função. O cartunista e ilustrador Belmonte (pseudônimo de Benedito Canero Bastos Barreto) é um dos maiores, senão o maior responsável pela transformação em representação gráfica da construção literária do bandeirante, feita pela historiografia tradicional paulista entre o fim do século XIX e o início do XX. Além disso, é um dos ilustradores mais importantes da Revolução de 1932, com cartazes nos quais procura também reproduzir a leitura da elite paulista sobre a guerra civil e suas motivações. Tornou-se indispensável procurar e analisar, em sua obra, os mesmos temas e conceitos trabalhados com as palavras dos materiais didáticos.

Abordamos, enfim, os materiais didáticos enquanto veículos de ideologia e enquanto presença marcante no cotidiano escolar, mediando ideologia e cotidiano, cumprindo esta função central da escola. Constatamos, via material didático, a presença histórica da ideologia da paulistanidade na instituição escolar, em seu relacionamento com a memória e o ensino de História. Essa presença histórica deve-se à ação dos intelectuais tradicionais, que realizam na escola a transmissão desta mensagem, entre tantas outras, para formar o cidadão ideal para o projeto político e social que advogam.

As Festas Cívicas da Paulistanidade

A República instituirá, para um povo acostumado às festas de memória religiosa, novos momentos cruciais da formação da identidade: em vez de Paixão, Páscoa, Natal, Advento, a data de formação da Nação, a proclamação da República, as revoluções redentoras. Novas festas de memória, agora laicas. Em vez dos santos, serão comemoradas as datas dos grandes heróis e mártires da nacionalidade. Daí o parentesco com os "dias santos" ou "dias de guarda" da Igreja, daí também o termo "rituais", bem como a paráfrase presente no título do artigo de Lúcia L. Oliveira, "As Festas que a República Manda Guardar"19.

Procuramos analisar, entretanto, não as festas nacionais, mas os rituais cívicos ligados à formação de uma identidade mais específica, a de paulista, com todas as suas atribuições ideológicas. Nesses rituais regionais, diferentemente dos rituais republicanos do século XIX, não há uma tentativa de substituir os rituais religiosos (o clero católico foi uma força importante na defesa dos ideais da paulistanidade em 1932, e na defesa de sua memória, posteriormente), mas sim somar-se a eles, no que surge uma concepção ideal do homem paulista, que deveria ser cívico e religioso.

Com o intuito de aprofundar as considerações anteriores, deve-se refletir a respeito dos momentos em que há uma ênfase especial e consciente sobre determinados aspectos ideológicos do dia-a-dia de uma escola estadual em São Paulo. Isso na medida em que, conforme Da Matta, o ritual não é uma suspensão do cotidiano, um momento especial e qualitativamente diferente, mas sim uma situação em que os elementos triviais da cotidianidade aparecem como símbolos20. Os rituais são parte indissociável da condição humana, e vão além das atividades sagradas e solenes, invadindo as atividades seculares. O ritual, integralmente ligado à ação cotidiana, constitui-se de gestos (ritmos evocativos de significados que formam atos simbólicos dinâmicos) e posturas (que se constituem em paradas simbólicas da ação)21.

A escola Cesário Coimbra, em Araras - SP, é tomada como uma amostra representativa da rede pública paulista. Isso foi feito levando em conta as condições de sua origem (criada em 1934, dentro da política de formação de quadros para a elite estadual, por parte do governo de Armando de Salles Oliveira, considerado como o momento em que os revolucionários de 32 retomam o poder), e a continuidade de suas relações com os centros da sociedade política (Secretaria da Educação e outras instituições estatais) que em alguns momentos zelam pela ideologia da paulistanidade.

A partir das experiências concretas desta instituição, partindo de entrevistas com alunos e educadores que vivenciaram esses rituais desde a fundação do Ginásio do Estado em Araras (sua primeira designação), bem como com os materiais indicados ou cedidos por esses personagens (poemas, discursos registrados, jograis, letras das canções) trabalhamos as descrições das festas, numa análise, novamente, da ideologia e de como ela é transmitida. Uma particularidade desses eventos rituais é a transmissão de um outro valor: o de morrer pela pátria, pelo ideal, que é particularmente abordado na festa do Soldado Constitucionalista, o 23 de maio, na qual se celebra o martírio de Martins, Miragaia, Draúsio e Camargo em confronto com os apoiadores do governo de Vargas.

Não podemos separar a existência humana da presença dos rituais. Estes, quando ligados às questões da memória política, ganham um papel de manutenção da identidade coletiva adequada ao consenso hegemônico da classe dominante. Foi neste sentido que analisamos os rituais cívicos da paulistanidade como expressões de uma tentativa de regionalizar a identidade a partir de uma perspectiva decadente, ou seja, a da oligarquia paulista. Classe diluída no espectro político e social após o Estado Novo, suas idéias permanecem e se manifestam nos rituais a partir da ação de intelectuais tradicionais ligados pessoalmente ao movimento armado de 1932 ou à sua infra-estrutura material e ideológica. Os rituais, espaço privilegiado na escola para a difusão da história oficial, são os momentos cruciais para que percebamos os mecanismos da ação da ideologia, que se utilizam tanto dos gestos físicos quanto da verbalização dos símbolos para proporcionar a consecução de seus objetivos.

No decorrer do tempo, a tendência é o esgotamento das fontes da comemoração: oficialmente incluídas no calendário cívico estadual, as festas cívicas da paulistanidade tendem cada vez mais a serem apenas um registro formal e indiferente, em vez de uma fervorosa exibição de memória e valores tradicionais. Isso porque os intelectuais tradicionais (desde os pesquisadores e professores universitários aos soldados, policiais, professores do ensino primário e médio) que de alguma forma viveram o 23 de Maio e o 09 de Julho vão desaparecendo, e as novas gerações não herdam essas preocupações de memória. Parece que as comemorações ocorrem porque as abaladas forças da memória tradicional sobre 32 conseguem se reunir em períodos mais esparsos, como os aniversários múltiplos de 05 ou de 10 anos da Revolução Constitucionalista de 1932. O último desses aniversários, que contou com uma grande mobilização, foi o cinqüentenário do movimento.

O ano de 1982 resgatou a comemoração cívica da Revolução Constitucionalista do marasmo em que ia caindo no correr dos anos 60 e 70, nos quais os professores que haviam participado de alguma forma do movimento e eram dele entusiastas começavam a rarear nas escolas. Concomitantemente, os novos professores relegavam essa memória a um segundo plano por duas ordens de motivos: em primeiro lugar, por uma postura já mais crítica, reservados em relação a 1932 pela dúvida de seus verdadeiros objetivos, e todo quilate de críticas dos adversários do movimento ou de sua memória tradicional. Em segundo lugar, o esquecimento era passivo, num reflexo mesmo da decadência da qualidade da formação dos professores tradicionalmente responsáveis por esse assunto, principalmente nos anos 70, em que os novos docentes responsáveis pela disciplina de História e pelas comemorações cívicas não eram especialistas, e sim polivalentes, pouco conhecendo o desenvolvimento do processo histórico em si, pouco sabendo sobre 1932 e pouco interessando-se em alardear a memória do movimento. Por força do calendário escolar, das determinações oficiais, as datas de 1932 não deixavam de ser comemoradas, mas movidas pelo mesmo impulso que fazia comemorar o Dia da Árvore, do Índio, da República.

Estudando a organização dos festejos de 1982, podemos identificar um movimento articulado no sentido de reverter essa situação, aproveitar o cinqüentenário para grifar e sublinhar o 23 de Maio, o 09 de Julho, a paulistanidade. O epicentro dessa agitação cívica regional está, como não poderia deixar de ser, nos representantes mais autorizados da propagação da história oficial e da manutenção da história tradicional. Em perfeita associação, a Secretaria de Estado da Educação em sua Comissão de Moral e Civismo, a Sociedade de Veteranos de 1932 - M.M.D.C. e o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo promovem atividades destinadas a dirigir e a garantir a efetivação dos festejos do cinqüentenário do movimento constitucionalista.

Essa agitação, portanto, não ocorreu espontânea ou desorganizadamente, mas sim seguindo uma estrutura pré-determinada, tendo por raiz as entidades acima relacionadas, espalhando-se pelas regiões do Estado graças à ação das delegacias de ensino, chegando ao cotidiano dos estudantes por meio das escolas oficiais e ganhando espaço na sociedade como um todo pela atuação das comissões municipais de organização dos festejos, que envolveriam as escolas particulares, as entidades da sociedade civil e os poderes públicos municipais.

Também aqui julgamos extremamente importante abordar a vivência concreta de um processo mais amplo, e por esse motivo retornamos ao Cesário Coimbra, em Araras. Neste caso, o recorte teve que ser um pouco mais amplo que o colégio em si, visto que a orientação das comemorações solicitava um trabalho integrado de todas as instituições de ensino primário e médio, públicas ou particulares. Esta opção de trabalho permitiu vislumbrar algumas particularidades interessantes. Um exemplo é a concepção elitista da cidadania, presente na ideologia da paulistanidade pelos autores que trabalhamos: essa mesma concepção expressa-se no momento em que a Delegacia de Ensino propõe a formação de uma comissão organizadora dos festejos.

Mais do que simplesmente organizar os eventos, a comissão municipal mencionada acima, que surge por iniciativa da educação oficial, tinha o objetivo de envolver os vários segmentos organizados da sociedade civil e mesmo os representantes dos poderes estatais a nível municipal. Nem por isso as manifestações adviriam de uma estruturação democrática: a comissão foi composta por "cartas marcadas" no cenário das entidades conservadoras, nenhuma que representasse as camadas populares e os trabalhadores, reafirmando o caráter de elite e de cima para baixo que marcou todas as fases da preparação e realização dos festejos.

O papel das comemorações da Revolução Constitucionalista de 1932 foi agir sobre a formação dos alunos, tanto no sentido de inculcar a versão tradicional a respeito do movimento, no aspecto de formação das noções históricas, quanto com a perspectiva de formá-lo politicamente, cultuando os heróis do passado e da identidade paulista. Na verdade, a perspectiva política que se procura inserir no estudantado é conservadora, na medida em que o recurso ao passado não afeta as discussões sobre o presente. Os valores transmitidos são principalmente o "morrer pela pátria", a identidade regional como condição para a defesa do nacionalismo e a defesa da ordem, principalmente a ordem legal, tudo dentro de uma concepção limitada e excludente de democracia (a exemplo da concepção que tinham os membros da oligarquia paulista). Não existe uma extrapolação que levasse o aluno a comparar o Governo Provisório de Vargas com o regime militar, ambos governos de exceção, pois a conseqüência seria propor um combate semelhante dos paulistas contra o regime. Isto é impensável pelo comprometimento da própria fonte estatal das comemorações, o governo de São Paulo, comprometido com o regime ditatorial.

Como na maior parte das festas cívicas, a ausência de um diálogo com o presente permite o incensamento dos valores conservadores. O heroísmo da luta armada só é elogiado e estabelecido como ideal enquanto defenda tão somente mudanças dentro da ordem burguesa que já está dada, sendo visto como abominável quando questiona o sistema social como um todo. Portanto, se politicamente os destinos do Brasil estariam encaminhados, o que se propõe para o aluno é a reverência ao passado... e também à situação política do presente.

Concluindo, gostaríamos de apresentar, como contribuição, algumas pistas metodológicas para a ação concreta na escola com esses temas. A metodologia, para o trabalho com os cânones da história oficial e as datas nacionais e regionais, precisa ser dialógica, admitindo múltiplas mãos de direção neste diálogo. Se pensamos a formação do aluno-cidadão pelo ensino da História em termos de valores, o valor da tolerância e a abertura para o diálogo precisa ser um dos primeiros da lista.

Além disso, é interessante apontar algumas possibilidades e caminhos para discussão. Cremos que existe a necessidade antropofágica de deglutir o civismo como está colocado hoje, ligado à ideologia da nação e/ou da região, metabolizá-lo pela preocupação em desenvolver uma Educação Histórica, algo talvez mais amplo que ensino de História, no qual possamos procurar uma nova base que escape à história "territorial", ou seja, que organiza os interesses sociais em torno das geografias, e não das relações sociais. Precisamos de uma determinação em responder que não devemos amor ao chão em que nascemos ou vivemos, na medida em que este nos daria de comer: quem me dá de comer é o meu relacionamento social, a minha interação com as pessoas que estão comigo numa comunidade que só permanece porque estabeleceu vínculos com diversas outras comunidades, às quais, indiretamente, pertenço. A identidade de "paulista" é abstrata, da mesma forma que a identidade de "brasileiro" é abstrata. "Existe é homem humano", já dizia o Riobaldo de Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, como Dante Moreira Leite cita, muito brilhantemente.

O esforço em pensar a história como propiciadora da consciência de cidadania (no forte sentido que essa palavra tem adquirido no Brasil nos últimos anos, ganhando uma conotação mais social, além da política, que já existia) já é um passo importante nessa direção. O que importa, mais do que novas técnicas, novos conteúdos, é o trabalho de todos esses "novos" a partir de novos princípios, novos pontos de partida para a discussão: em vez do ponto de partida geográfico/regional/nacional (espacial), um ponto de partida social. Como um possível ponto humanista de chegada, a compreensão da responsabilidade pessoal com os demais e com o ambiente em que todos vivem, a vida como valor máximo, e aí a compreensão clara da defesa dos direitos humanos, a democracia como valor universal, o pacifismo. Ensinar a pensar e a agir na história, autonomizar para possibilitar a convivência em melhores bases.

Notas

1 LEITE, Dante Moreira Leite. O Caráter Nacional Brasileiro - História de uma Ideologia. São Paulo, Pioneira, 1983, p. 07. [ Links ]

2 Idem, p. 09.

3 CHAUÍ, M. O que é Ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1981, p. 113. [ Links ]

4 ELLIS JR., A. A Nossa Guerra. São Paulo, Piratininga, 1933. [ Links ]

5 LOVE, J. "O Poder dos Estados: Análise Regional". In FAUSTO, Bóris. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo, DIFEL, Tomo III, 1º vol, 1975, p. 55. [ Links ]

6 SALES, J. A. A Pátria Paulista. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1983. [ Links ]

7 VELLOSO, M. P. "A Brasilidade Verde-Amarela: nacionalismo e regionalismo paulista". In Estudos Históricos. vol. 06, nº 11, jan./jun. 1993. [ Links ]

8 GRAMSCI, A. Os Intelectuais e a Organização da Cultura. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991, p. 07. [ Links ]

9 ABUD, K. M. O Sangue Intimorato e as Nobilíssimas Tradições. Tese de Doutoramento, São Paulo, FFLCH-USP, 1985, p. 145. [ Links ]

10 FERRO, M. A História Vigiada. São Paulo, Martins Fontes, 1989, p. 11. [ Links ]

11 THOMPSON, E. P. A Miséria da Teoria ou Um Planetário de Erros. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. [ Links ]

12 PRZEWORSKI, A. Capitalismo Social - Democracia. São Paulo, Companhia das Letras, 1989. [ Links ]

13 HOBSBAWN, E, J. & RANGER, T. (org.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. [ Links ]

14 HELLER, A. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972. [ Links ]

15 Idem, p. 22.

16 Idem, p. 29.

17 Idem, p. 12.

18 Idem, p. 132.

19 OLIVEIRA, L. L. "As Festas que a República Manda Guardar". In Estudos Históricos. vol. 02, nº 04, jul./dez. 1989. [ Links ]

20 DA MATTA, R. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro, Guanabara, 1990, p. 63. [ Links ]

21 McLAREN, P. Rituais na Escola: em direção a uma economia política de símbolos e gestos na educação. Petrópolis, Vozes, 1992.

Fonte: Rev. bras. Hist. vol. 18 n. 36 São Paulo 1998

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