A meu ver, este texto de Lúcia Valente (que já tem quase 3 anos) tem uma clareza imensa sobre a necessidade de que nós professores assumamos o compromisso de fazer valer na prática a lei 10639/03, cuja redação foi acrescida pela lei 11.645/03.
Apreciem, avaliem a sua pertinência e incorporem em sua prática pedagógica as valiosas contribuições da autora.
Ana Lúcia Valente*
Às vésperas do dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, em memória a Zumbi dos Palmares, foi divulgado na imprensa nacional um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em que a análise de vários indicadores sócio-econômicos com foco na população negra reitera a inexistência da propalada democracia racial no país.
No Correio Braziliense (19/11/2005, p.12), a jornalista Paloma Oliveto, ao comentar a posição manifestada naquele estudo, de que as distorções educacionais não serão corrigidas apenas (grifo meu) por políticas de cotas, relatou um episódio que ilustra o tipo de dificuldade que deverá ser enfrentado em todos os níveis de formação escolar para o combate ao racismo:
“A dona-de-casa Jucimara Santos de Souza, 29 anos, teve de trocar o turno escolar da filha mais velha por causa da discriminação em sala de aula. A menina, de 10 anos, estuda em uma escola no Cruzeiro e, segundo a mãe, ‘é a única neguinha da turma’. Por causa da cor Dayane ouve piadas o dia inteiro e recebeu o apelido de Xica da Silva. ‘Ela ficou uma semana ser ir ao colégio, inventando que estava doente. Depois confessou que não queria ir por causa do racismo’, relata Jucimara”.
Relatos como esses são comuns, em que pese a Lei nº. 10.639, de 2003, que torna obrigatórios o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos níveis fundamental e médio, oficiais e particulares. Prefiro nomeá-la por Lei Ben Hur, para substituir ou complementar o número, tão frio e sem história: Ben Hur é militante negro, vinculado ao grupo Trabalho e Estudos Zumbi (TEZ/MS), e ex-deputado federal pelo Estado de Mato Grosso do Sul. Foi quem propôs o projeto de lei com a também deputada federal Esther Grossi, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). Afinal, nos termos do parecer do Conselho Nacional de Educação - CNE que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, esse ensino far-se-á por diferentes meios, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social. Entre eles, Ben Hur, na política partidária.
Embora a coibição de manifestações de racismo seja imprescindível no plano legal, conquistas e avanços alcançados nessa direção não bastam para transformar as concepções arraigadas no imaginário da população brasileira. Por essa razão, muitos estudiosos das relações interétnicas e militantes de grupos negros organizados no País têm apontado para a necessidade de se dar maior atenção ao processo educativo que se desenvolve em várias instâncias da convivência humana.
Considerando-se o baixo índice de escolaridade do negro ante outros segmentos étnicos da população brasileira, as chances de acesso à educação formal e sistemática são menores para a criança negra. Esse quadro é ainda mais grave quando se avalia, na educação básica, o nível considerado pelos pedagogos como indispensável para o êxito nos estudos posteriores: o da educação infantil. Esse nível educacional tem sido inacessível ao grupo negro, quer por não ser satisfatoriamente atendido pelo Estado, quer por razões econômicas quando ministrado em escolas particulares.
Com base nas dificuldades apontadas nos estudos que buscaram analisar as interfaces da educação e relações interétnicas e no conhecimento sobre a conformação das relações entre brancos e negros no Brasil, ganha destaque a necessidade de serem desencadeadas ações mais pragmáticas, no sentido de “equipar” a sociedade e, em especial, a escola, para progressivamente enfrentar a questão racial. Mas para que seja garantida a “qualidade” desse processo, devem ser enfrentados os desafios na formação de professores, para que saibam lidar adequadamente com a questão. E isso não se faz em cursos intensivos de capacitação nos finais de semana e sem que se leve em consideração, de um lado, o conhecimento acumulado sobre a temática, de outro, aquele “cristalizado” que por vezes falseia.
A crítica à forma como, ao longo do tempo, foi contada a História do negro no Brasil deve estar acompanhada do cuidado com “impropriedades”, “meias-verdades” e “ocultações” históricas, sem o quê a própria crítica é contrariada. Afinal, não se pode pretender enfrentar o racismo, que se baseia em concepções falsas, incorrendo em outros erros similares. Ou ainda, não se deve negligenciar que, conhecidos os mecanismos das relações raciais no Brasil, a implementação da Lei Ben Hur – que envolve alunos e professores negros e brancos - estará sujeita a resistências. É improvável que a escola se posicione criticamente em relação à história com uma concepção moralista que descole a dominação e a exploração de certos grupos humanos do contexto em que ocorreram e/ou foram refuncionalizados para justificar a desigualdade. Afinal, o que hoje aparece como errado, conceitual e eticamente, pode não ter sido em épocas passadas. Desse modo, o foco de atenção deve ser centrado na compreensão dos mecanismos históricos que transformam a diferença num problema, resgatando a historicidade dos significados que a diversidade assume.
Minimizadas as resistências e com o interesse dos professores em combater o racismo na educação escolar, a reação de Dayane, a menina negra discriminada na escola do Cruzeiro, poderá ser diferente, porque balizada no conhecimento de quem é a tal Xica da Silva, apelido que os colegas de sala de aula lhe atribuem.
Francisca da Silva, a Chica da Silva (com Ch e não com X) viveu durante a segunda metade do século XVIII, no Arraial do Tijuco, Minas Gerais. Era mulata, filha de negra e português e se tornou amante de um cavalheiro local, Francisco da Silva Oliveira, e depois do contratador de diamantes e doutor em leis, João Fernandes de Oliveira. Milionário, João Fernandes satisfez todos os desejos de Chica da Silva, mesmo os extravagantes. Observa a pesquisadora Júnia Ferreira Furtado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autora do livro Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes (Companhia das Letras):
Garantido o seu direito de ter acesso à informação, quem sabe Dayane compre um outro discurso e lute também ela contra o racismo.
* texto originalmente publicado na Afropress - Brasil- 11/12/2005
No Correio Braziliense (19/11/2005, p.12), a jornalista Paloma Oliveto, ao comentar a posição manifestada naquele estudo, de que as distorções educacionais não serão corrigidas apenas (grifo meu) por políticas de cotas, relatou um episódio que ilustra o tipo de dificuldade que deverá ser enfrentado em todos os níveis de formação escolar para o combate ao racismo:
“A dona-de-casa Jucimara Santos de Souza, 29 anos, teve de trocar o turno escolar da filha mais velha por causa da discriminação em sala de aula. A menina, de 10 anos, estuda em uma escola no Cruzeiro e, segundo a mãe, ‘é a única neguinha da turma’. Por causa da cor Dayane ouve piadas o dia inteiro e recebeu o apelido de Xica da Silva. ‘Ela ficou uma semana ser ir ao colégio, inventando que estava doente. Depois confessou que não queria ir por causa do racismo’, relata Jucimara”.
Relatos como esses são comuns, em que pese a Lei nº. 10.639, de 2003, que torna obrigatórios o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos níveis fundamental e médio, oficiais e particulares. Prefiro nomeá-la por Lei Ben Hur, para substituir ou complementar o número, tão frio e sem história: Ben Hur é militante negro, vinculado ao grupo Trabalho e Estudos Zumbi (TEZ/MS), e ex-deputado federal pelo Estado de Mato Grosso do Sul. Foi quem propôs o projeto de lei com a também deputada federal Esther Grossi, ambos do Partido dos Trabalhadores (PT). Afinal, nos termos do parecer do Conselho Nacional de Educação - CNE que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, esse ensino far-se-á por diferentes meios, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de luta social. Entre eles, Ben Hur, na política partidária.
Embora a coibição de manifestações de racismo seja imprescindível no plano legal, conquistas e avanços alcançados nessa direção não bastam para transformar as concepções arraigadas no imaginário da população brasileira. Por essa razão, muitos estudiosos das relações interétnicas e militantes de grupos negros organizados no País têm apontado para a necessidade de se dar maior atenção ao processo educativo que se desenvolve em várias instâncias da convivência humana.
Considerando-se o baixo índice de escolaridade do negro ante outros segmentos étnicos da população brasileira, as chances de acesso à educação formal e sistemática são menores para a criança negra. Esse quadro é ainda mais grave quando se avalia, na educação básica, o nível considerado pelos pedagogos como indispensável para o êxito nos estudos posteriores: o da educação infantil. Esse nível educacional tem sido inacessível ao grupo negro, quer por não ser satisfatoriamente atendido pelo Estado, quer por razões econômicas quando ministrado em escolas particulares.
Com base nas dificuldades apontadas nos estudos que buscaram analisar as interfaces da educação e relações interétnicas e no conhecimento sobre a conformação das relações entre brancos e negros no Brasil, ganha destaque a necessidade de serem desencadeadas ações mais pragmáticas, no sentido de “equipar” a sociedade e, em especial, a escola, para progressivamente enfrentar a questão racial. Mas para que seja garantida a “qualidade” desse processo, devem ser enfrentados os desafios na formação de professores, para que saibam lidar adequadamente com a questão. E isso não se faz em cursos intensivos de capacitação nos finais de semana e sem que se leve em consideração, de um lado, o conhecimento acumulado sobre a temática, de outro, aquele “cristalizado” que por vezes falseia.
A crítica à forma como, ao longo do tempo, foi contada a História do negro no Brasil deve estar acompanhada do cuidado com “impropriedades”, “meias-verdades” e “ocultações” históricas, sem o quê a própria crítica é contrariada. Afinal, não se pode pretender enfrentar o racismo, que se baseia em concepções falsas, incorrendo em outros erros similares. Ou ainda, não se deve negligenciar que, conhecidos os mecanismos das relações raciais no Brasil, a implementação da Lei Ben Hur – que envolve alunos e professores negros e brancos - estará sujeita a resistências. É improvável que a escola se posicione criticamente em relação à história com uma concepção moralista que descole a dominação e a exploração de certos grupos humanos do contexto em que ocorreram e/ou foram refuncionalizados para justificar a desigualdade. Afinal, o que hoje aparece como errado, conceitual e eticamente, pode não ter sido em épocas passadas. Desse modo, o foco de atenção deve ser centrado na compreensão dos mecanismos históricos que transformam a diferença num problema, resgatando a historicidade dos significados que a diversidade assume.
Minimizadas as resistências e com o interesse dos professores em combater o racismo na educação escolar, a reação de Dayane, a menina negra discriminada na escola do Cruzeiro, poderá ser diferente, porque balizada no conhecimento de quem é a tal Xica da Silva, apelido que os colegas de sala de aula lhe atribuem.
Francisca da Silva, a Chica da Silva (com Ch e não com X) viveu durante a segunda metade do século XVIII, no Arraial do Tijuco, Minas Gerais. Era mulata, filha de negra e português e se tornou amante de um cavalheiro local, Francisco da Silva Oliveira, e depois do contratador de diamantes e doutor em leis, João Fernandes de Oliveira. Milionário, João Fernandes satisfez todos os desejos de Chica da Silva, mesmo os extravagantes. Observa a pesquisadora Júnia Ferreira Furtado, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autora do livro Chica da Silva e o Contratador dos Diamantes (Companhia das Letras):
“Chica, como as outras forras da época, alcançou sua alforria, amou, teve filhos, educou-os, buscou ascender socialmente para diminuir a marca que a condição de parda e forra impunha para ela mesma e para os seus descendentes”, continua. “Pois, sob o manto de uma pretensa democracia racial, sutil e veladamente, a sociedade mestiça procurava se branquear e escondia a fria exclusão social e racial, simbolizando o que se passava no Brasil”. Exclusão que tirou de boa parte dos negros e por bom tempo a sua auto-estima. “Daí a falta de um movimento unificado como nos Estados Unidos. Aqui o racismo era e é escamoteado e os negros compram o discurso das elites do ´para que lutar se posso me integrar`. Até Machado de Assis agiu dessa forma após ascender à elite intelectual." (www.revistapesquisa.fapesp.br, edição 93, 11/2003)Esse é o X da questão, o X que distorce Chica.
Garantido o seu direito de ter acesso à informação, quem sabe Dayane compre um outro discurso e lute também ela contra o racismo.
* texto originalmente publicado na Afropress - Brasil- 11/12/2005
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