Entrevista a Aníbal Quijano
Jorge Pereira Filho-
Na imposição global do "neoliberalismo", ou seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do estado por parte das corporações globais e de seu Bloco Imperial Global, a erosão da autonomia dos Estados menos democráticos e menos nacionais é contínua. Desde essa perspectiva, foi um erro trágico, teórico, político e histórico, a proposta da Terceira Internacional de que todos os países submetidos ao imperialismo tiveram "burguesias nacionais" com as quais os dominados/explorados/reprimidos tinham que fazer alianças porque supostamente havia um terreno comum de interesses diante da dominação imperialista.
Jorge Pereira: Por que o senhor entende que a questão da identidade, na América Latina, é um projeto histórico aberto e heterogêno, como escreveu em um artigo?
Aníbal Quijano: Essa é uma das conclusões de um complexo argumento teórico e histórico que está em debate desde mais de uma década e que procurei expor em uma apertada síntese no artigo mencionado, quando escrevi: "É pertinente assinalar, contra todo este pano de fundo histórico e atual, que a questão de identidade na America Latina é, mais do que nunca, um projeto histórico aberto e heterogêneo, não só, e talvez não tanto, uma lealdade com a memória e com o passado. Porque essa história permitiu ver que, na verdade, são muitas memórias e muitos passados, sem ainda um caminho comum e compartilhado".
Essa conclusão implica, de uma parte, que não há ainda, e que não é seguro que chegue a ser produzida no futuro, uma identidade comum a todos os povoadores do espaço/tempo que chamamos não faz muito tempo de América Latina. Esta possível identidade pode ser hoje, talvez, uma fina e delicada atmosfera subjetiva comum a certos setores da população, por exemplo a seus eurocêntricos grupos dominantes e às camadas médias educadas dentro do atual padrão de poder.
Não se poderia afirmar com segurança, contudo, que tenderá a se consolidar e se fazer comum a todos os habitantes desta geografia do poder.
Primeiro, porque há, neste mesmo tempo, várias, muitas na verdade, identidades históricas que agora lutam para serem reconhecidas, inclusive para se reconstituírem em sua especificidade, especialmente as que formam o chamado Movimento Indígena que, apesar de ser objeto de uma denominação comum, na realidade é um universo heterogêneo de identidades.
Já começou também um movimento em direção análoga da população que se identifica como afro-latino-americana, cuja diversidade identitária é menos perceptível devido a seu prolongado desprendimento, mas sem dúvida bem mais ampla. E, depois, porque há uma identidade emergente "global", ou "pós-nacional", como alguns já dizem, em setores tecnocráticos cujo poder e influência não são nada desdenháveis.
Em segundo lugar, certamente, há um passado globalmente comum a todos nós que deu lugar à formação de um padrão de poder cujo traço central inerente é sua Colonialidade e dentro do qual todos habitamos e que nos habita a todos. E que a "racialização" e a "capitalização" das relações sociais de tal novo padrão de poder e o "eurocentramento" de seu controle estão na mesma base de nossos atuais problemas de identidade.
Também, entretanto, apesar de sua violência, profundidade e magnitude, a destruição histórica durante esse processo não conseguiu evitar completamente que permanecessem núcleos de identidades históricas muito complexas e antigas. E, sem dúvida, este padrão de poder, ativo durante 500 anos, originou também, e não deixou de produzir, outros novos processos identitários e em seu desenvolvimento abriu contraditórios e heterogêneos espaços de interações, mutações, conflitos, convergências e comunidades, entre todos os agentes desse heterogêneo e descontínuo universo de identidades remanescentes e/ou em constituição. Estas não trilharam o mesmo caminho, mesmo sendo simultâneas ou contemporânea.
A heterogeneidade histórico-estrutural e a descontinuidade são, por isso, mesmo excepcionalmente presentes na América Latina. Viemos, pois, de muitos passados, chegamos a um presente muito heterogêneo e conflitivo e estamos indo a um futuro igualmente heterogêneo e certamente muito conflitivo. Abrir de novo estas questões à investigação e ao debate hoje é indespensável e urgente, porque é discernível que há no ar uma tentação ao mesmo tempo identitária e ahistórica.
Assim, no debate latino-americano atual há uma corrente, sobretudo em alguns setores dos movimentos sociais chamados "indígenas", por exemplo entre alguns intelectuais aymarás, que defende a "essencialidade" ou a "ancestralidade essencial", de sua identidade histórica, categorias que só poderiam implicar que é possível uma "identidade" capaz de atravessar imutável o longo tempo histórico dos últimos 500 anos, sem dúvida um dos mais ativamente mutantes de toda a história.
Pereira: Desde os anos 90, os movimentos indígenas, sobretudo nos Andes, ganharam força, derrubaram governos e impulsionaram mudanças no poder. Quais as semelhanças entre esses movimentos da Bolívia, Peru e Equador? O que pensa da atualidade da proposta do Estado plurinacional e pluriétnico?
Quijano: Primeiro, quero chamar a atenção sobre as dificuldades de olhar ou de pensar os "movimentos indígenas" como se se tratassem de populações homegeneamente identificadas. Segundo, o Equador é o único lugar onde a virtual totalidade de todas as "identidades" ou "etnicidades" "indígenas" conseguiram conformar uma organização comum, sem prejuízo de manter as próprias particulares. É também o "movimento indígena" que mais cedo chegou à idéia de que a liberação da colonialidade do poder não consistiria na destruição ou eliminação dos outros agentes e identidades do poder, e sim na erradicação das relações sociais materiais e intersubjetivas do padrão de poder e a produção de um novo mundo histórico intercultural e de uma autoridade política (pode ser o Estado) comum, portanto, intercultural e internacional, mais que multicultural ou multinacional. O projeto de uma Universidade Indígena InterCultural e de seu Instituto de Investigações Interculturais é um dos claros testemunhos desta proposta, apesar de que seus desenvolvimento tenha sido, até agora, mais lento e irregular.
Depois de frustradas, por apressadas e equivocadas, alianças políticas que levaram a alguns líderes do movimento a formar parte do governo do Estado central, sob o comando do coronel Gutiérrez - que logo se revelou como agente da colonialidade do poder -, divisões e debates ásperos abriram um período de grave crise na unidade e na organização do movimento.
Entretanto, está em curso um claro processo de renovação organizacional e de relegitimação da nova liderança tanto dentro da população "indígena", como em relação a agentes sociais de outras identificações. Isso não permitiu ao movimento indígena equatoriano voltar a ser o principal agente e representante político-cultural da população popular equatoriana, até o ponto de ser o condutor do atual movimento popular que conseguiu bloquear e impedir a aprovação do Tratado de Livre Comércio (TLC) entre Equador e Estados Unidos.
Sem dúvida, logo estará dentro do movimento indígena equatoriano, se já não está, o debate em torno do avanço em direção ao governo do Estado. E, nesse caso, as questões da interculturalidade e da internacionalidade do Estado, suas formas de apresentação e de organização institucional para a prática de ambas as propostas, nos convocarão a todos na América Latina.
Pereira: E na Bolívia?
Quijano: No caso da Bolívia, não ocorreu um processo semelhante. Os que se auto-identificam como "indígenas" não conseguiram produzir uma organização comum, nem propostas culturais e políticas comuns. O Movimento ao Socialismo (MAS) não se formou nem se desenvolveu como "movimento indígena", e sim como organização sindical, primeiro, e política, depois, ainda que a população que o integra começando por seu principal líder, Evo Morales, seja identificada ou inclusive possa autoidentificar-se como "indígena", segundo a classificação social fundante da colonialidade do poder, ou seja, em termos de "raça".
Entretanto, a Bolívia é o primeiro país latino-americano no qual os "indígenas" (em termos já não só "raciais", mas antes de tudo "culturais") terminaram sendo hegemônicos em um movimento amplo que conseguiu assumir, por votação majoritária da população, o governo do Estado Central do país.
Pereira: E por que isso ocorreu justamente ali?
Quijano: Isso abre à investigação e ao debate um conjunto complexo de questões. A primeira e óbvia é se Evo Morales e o MAS seriam o que são se tivessem se apresentado, desde o primeiro momento, como um "movimento indígena", em vez de formar-se e de se desenvolver como um movimento político "popular" (isto é, pluri-social e pluriétnico), cuja meta histórica seria o socialismo. Evo Morales é aymará, mas em momento algum apareceu como o dirigente aymará de maior autoridade e reconhecimento. Felipe Quishpe, apelidado El Malqu, esteve - e talvez ainda esteja - mais perto desse lugar e desse papel. E enquanto que para uma parte influente da inteligência e da liderança política aymará, o projeto central aymara é o restabelecimento do Collasuyo (nome do âmbito neohistórico aymará dentro do Tawantinsuyo ou "Império Inca"), para o atual governo do MAS o projeto político central é, em parte, o estabelecimento de um Estado multicultural e multinacional. Ou seja, a redistribuição da representação política de todas as "culturas" e/ou "nações" no mesmo Estado.
Essa democratização das condições e limites da dominação política, se tiver êxito, implicaria um processo peculiar de des/colonização do Estado e abrirá, sem dúvida, questões cruciais no debate boliviano, latino-americano e mundial. Especialmente acerca de quais poderiam ser as formas de representação multinacional e multicultural e quais as respectivas formas de institucionalização no novo Estado.
Como nenhum "Movimento Indígena" unificado e organizado esteve debatendo aquelas questões durante o processo que levou o MAS ao governo do Estado, o indispensável debate está apenas começando. E essas discussões, sem dúvida, serão algumas das mais importantes áreas do conflito político durante e depois da Assembléia Constituinte. Fundamentalmente, as opções em debate poderiam ser:
a) Se o "multicultural" e o "multinacional" do Estado consistiriam na idéia de indivíduos de todas as várias "culturas" e/ou "nações" terem lugar e papel no governo do Estado;
b) se tais papéis seriam distribuídos entre indivíduos "indígenas", proporcionalmente à magnitude de cada uma das "identidades", mas em um Estado com a mesma estrutura institucional que o atual, ou seja, sua conhecida e respectiva "divisão de poderes";
c) se cada uma das populações que reivindicam identidade diferenciada e própria terão, como já estão reivindicando, autonomia territorial, política e jurídica e
d) se os organismos constituídos pelas populações pluriidentitárias, em seus principais momentos das lutas dos últimos anos, por exemplo, a Federação de Juntas Vecinais de El Alto, a Coordenadora da Água e outros equivalentes também formarão parte de um novo universo institucional de autoridade coletiva e pública, se preferir, se um novo Estado.
Pereira: E qual a relação do projeto do MAS com uma sociedade socialista na Bolívia?
Quijano: Ainda que o termo socialismo esteja inscrito no nome mesmo da organização política governante (o MAS), o vice-presidente, Alvaro García Linera, sustenta que, na Bolívia, não estão dadas as condições para tratar de ir agora em direção ao socialismo, pois não existe nesse país uma classe operária ampla, muito menos majoritária.
García Linera propõe ir mais a um "capitalismo andino-amazônico". Fundamentalmente, essa fórmula pareceu se referir, de um lado, ao controle estatal de uma parte maior da renda produzida pela produção mercantil do gás e do petróleo, como resultaria da recente nacionalização das respectivas jazidas, para redistribuí-la entre as comunidades, povoados, pequenas e médias empresas e serviços públicos.
Essa política poderia implicar uma relativa desconcentração do controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos. Mas, do outro lado, seria mantido o controle privado-empresarial do restante da acumulação capitalista, atualmente em mãos, sobretudo, da burguesia de Santa Cruz, Tarija e outros centros menores, associada já ao capital global. Não está ainda esclarecida a relação entre ambas as formas de admnistração do capital.
Os conflitos e as associações serão, provavelmente, discutidos e negociados na Assembléia Constituinte e no Referendo que também foi acordado para resolver as questões das autonomias.
As burguesias regionales reivindicam, obviamente, o controle autônomo de suas respectivas regiões (sobretudo Santa Cruz e Tarija, onde estão as reservas de hidrocarbonatos, a mais moderna agricultura comercial e algumas indústrias), mas as "identidades indígenas" demandam autonomia territorial por questões culturais e jurídico/políticas.
A próxima história permitirá contestar uma crucial e ineludível questão: A redistribuição multicultural e multinacional do controle do Estado pode ocorrer separadamente da redistribuição do controle de trabalho, de seus recursos e de seus produtos e sem mudanzas igualmente profundas nos outros âmbitos básicos do padrão de poder?
Pereira: E o movimento indígena no Peru?
Quijano: Bem, nesse caso, a maior parte da população que "racialmente" é considerada "índia" ou "indígena" não está incorporada, nem parece até aqui interessada em entrar em nenhum "movimento indígena" das mesmas dimensões e impacto que em outros países em referência. A proposta teórica* para explicar essa diferença é que, sobretudo depois de 1945, ocorreu uma vasta "desindianização" no processo de urbanização da sociedade peruana, no contexto da migração rural/urbana, da crise do "Estado Oligárquico" e da bancarrota de suas duas expressões de dominação cultural mais afirmadas: a "cultura gamonal-andina" nas relações entre o senhorio proprietário de terra e os "índios", sobretudo no campo, mas também nas cidades da serra, e da "cultura senhorial-crioula" nas relações entre a burguesia senhorial, os grupos de classe média educados por aquela, e os "negros", "mestiços" e "índios", nas cidades da Costa.
Pereira: E o que isso gerou?
Quijano: Esse processo de "desindianização" foi abrupto, masivo e abarcou todo o país e produziu uma população, sobretudo urbana, ainda que também rural, a quem dentro da "cultura senhorial-crioula" se impôs o nome de "cholo". A "desindianização" produziu, assim, uma "cholificação" da população. Essa população identificada pelos outros como "chola" foi, sem dúvida, o agente principal de mudança da sociedade e do poder no Peru, embora primeiro tenha sido contida e derrotada políticamente, começando com os sucessivos regimes militares que se autodenominaram "revolucionários", em boa parte cooptada depois ao alterado padrão de poder pós-oligárquico, especialmente desde a reprivatização do controle do Estado e a profunda reconcentração do controle dos recursos de produção e dos investimentos, que começou com a funesta ditadura fuji-montesinista.
Uma ampla parte da população que não se desindianizou foi vítima da "guerra suja" entre o terrorismo de estado e o do Sendero Luminoso, entre 1980 e 2000. Segundo o informe da Comissão da Verdade e Reconciliação, a maioria dos mais de 60 mil assassinados nesse período eram, precisamente, camponeses "indígenas". Não faltam agora tentativas procedentes de alguns grupos da "ex-esquerda" para formar um "movimento indígena" e até se montou por conta da "primeira dama" do governo Toledo um maquinário burocrático, já acusado de corrupção fiscal, para manipular alguns poucos e pragmáticos grupos com um discurso "originário".
Os únicos grupos que de verdade se movem nessa direção são as comunidades da Selva Amazônica, onde começou há umas três décadas, com a formação da Coordinadora de Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica (Coica), toda a história recente dos movimentos indígenas da área andina-amazônica **.
Mais recentemente, sob os impactos dos processos da Bolívia e do Equador, algumas comunidades camponesas, sobretudo aquelas que enfrentam as corporações mineiras multinacionais, começaram a identificar-se como "indígenas" e a se estabelecerem como novos movimentos políticos identitários, seguindo, principalmente, o exemplo do Equador.
De todo modo, o mapa político da América Latina, tanto em termos territoriais como "culturais" ou "étnicos", está mudando notoriamente. Mas a questão central destes preocessos é a crise da Colonialidade do Poder. Historicamente fundado nestas terras, também aqui está entrando em seu momento de crise mais radical.
Pereira: Na América Latina, há uma safra de presidentes de origem no movimento social ou de orientação de esquerda e nacionalista que chegaram ao poder. No governo, essas lideranças têm mantido uma política econômica de clara orientação neoliberal. Você acredita que isso tem relação com o fato de que, cada vez mais, os Estados de nações subdesenvolvidas terem se transformados em estruturas de administração local dos interesses do capital mundial?
Quijano: No padrão atual de poder, um de cujos eixos centrais é o capitalismo, a idéia de um interesse social chamado "nacional" corresponde à existência de uma sociedade nacional dominada por uma burguesia nacional, com um estado nacional. Ou seja, a uma estrutura de poder configurada segundo essas condições. Na América Latina, antes da chamada Revolução Mexicana, essas características correspondiam somente ao Chile, desde a República Portaliana, desde a segunda década do Século XIX. Tal Estado Nacional Oligárquico foi consolidado com o extermínio genocida dos "mapuches" - denominação imposta a uma população de "índios" de diversas origens.
Os movimentos sociais, sobretudo das classes médias e do proletariado mineiro rumo a um Moderno Estado-Nação que se desenvolviam desde os anos 20 do Século XX, culminaram nos anos 1930 com o Governo de Frente Popular, que implicou numa espécie pacto político entre a burguesia chilena e os partidos políticos dos trabalhadores e das classes médias, para consolidar as normas e instituições da democracia liberal/burguesa.
Foi com elas que os trabalhadores e seus associdados nas classes médias chegaram com Allende ao governo do Estado em 1971, mas foi também sua lealdade com elas que facilitou sua derrota a um sangrento golpe militar em 1973. Sob o Pinochetismo, levou-se a cabo uma contra-revolução. Uma ditadura sangrenta foi imposta enquanto eram removidas e alteradas as bases sociais mais corroídas deste Estado para adequá-las à neoliberalização do capitalismo, que foi precisamente iniciado ali e nesse momento, e às necessidades da globalização, ou seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do Estado.
Mas isso produziu também uma nova sociedade capitalista nacional e seu respectivo novo estado-nação.
Pereira: E esse processo foi localizado?
Quijano: Essa condição é o que explica que o que ocorre hoje com o capitalismo no Chile, mas não ocorrera na Bolívia, apesar de que também ali ditaduras militares ferozmente represivas atuaram desde há mais tempo e durante os mesmos anos, ou mais tarde na Argentina ou Uruguai. Também não ocorrera em um país como o Peru, de longe melhor dotado em termos de recursos, mas cuja burguesia não deixou de praticar a rapina desde o começo mesmo da República, em associação com o capital imperialista.
Por isso hoje, como ocorre na Bolívia, a demanda das populações que, precisamente, foram vítimas de Estados não-nacionais e não-democráticos não é mais "nacionalismo" e mais Estado, mas sim, antes de tudo, outro Estado, ou seja, des/colonializar esse Estado, que é a única forma de democratizá-lo. Mas se esse processo chegar a ser vitorioso, o novo estado não poderá ser um Estado-nação ou um Estado nacional, e sim um multinacional, ou melhor, internacional.
Nos demais países, processos que iam nessa direção foram derrotados, como no Brasil desde o golpe de 1964 ou no Peru desde 1990. Na imposição global do "neoliberalismo", ou seja, da reconcentração mundial do controle do trabalho e do estado por parte das corporações globais e de seu Bloco Imperial Global, a erosão da autonomia dos Estados menos democráticos e menos nacionais é contínua.
Desde essa perspectiva, foi um erro trágico, teórico, político e histórico, a proposta da Terceira Internacional de que todos os países submetidos ao imperialismo tiveram "burguesias nacionais" com as quais os dominados/explorados/reprimidos tinham que fazer alianças porque supostamente havia um terreno comum de interesses diante da dominação imperialista.
A propensão homogenizante, reducionista e dualista do Eurocentrismo se expressava também nesse "materialismo histórico" pós-Marx. Como toda teoria eurocêntrica, produziu na América Latina desvarios históricos, práticas políticas errôneas e que não levavam a lugar nenhum e derrotas cujas vítimas foram e são os trabalhadores e todas as vítimas da colonialidade do poder.
E mesmo com José Carlos Mariátegui (pensador peruano) insistindo que na América Latina não havia fundamento histórico para nenhuma "burguesia nacional", diferentemente de outras áreas, como na Ásia, por exemplo, a doutrina da burguesia nacional e da aliança nacional dos trabalhadores com ela foi imposta sobre a imensa maioria das "esquerdas" quando da sua morte.
O "nacionalismo" dominou virtualmente todo o debate das esquerdas na América Latina durante o Século XX, com uma associação puramente ideológica com o "socialismo", sobretudo porque ambas as vertentes buscavam o controle do mítico Estado-Nação, precisamente em países nos quais, como obviamente nos "andinos", a colonialidade do poder havia feito historicamente inviável o projeto liberal/eurocêntrico de um moderno estado-nação.
Assim, no Peru, por exemplo, Alan García Pérez, presidente eleito, foi, entre 1985 e 1990, um dos agentes de tais desvarios teóricos e erros políticos, pelos quais levou seu povo a uma derrota cujas conseqüências não terminamos de pagar. E, pior, ao regressar agora mostra que aprendeu ao contrário a lição política dessa história. Essa lição não foi tampouco aprendida por seus adversários. Estes seguem, obviamente, acreditando que o "nacionalismo" produz "nações" e Estados-nação em sociedades configuradas em torno da colonialidade do poder e com universos pluriculturais e também plurinacionais.
Muito pior, todos os eurocentristas do debate mundial atual, como os autores do muito vendido "Império" (Michael Hardt e Antoni Negri), persistem em sustentar que todo país, em qualquer contexto histórico, é por definição uma nação e que todo estado central é, por isso, um estado-nação.
Pereira: O conflito no Iraque gerou uma disputa momentânia - hoje superada - entre os interesses dos EUA e de parte do bloco imperialista mundial. Se os EUA continuarem a insistir com ações unilaterais, há possibilidade de haver rachas nesse bloco? Ou todas as outras potências globais (União Européia, Japão) já aceitam um papel subalterno ao dos EUA na divisão do poder global?
Quijano: Obviamente, com a desintegração do "campo socialista", o mundo emergiu como "unipolar", no sentido específico de que um único padrão de poder controlava toda a população do "globo". Por isso, o que era, e ainda é, um Bloco Imperial Global com os EUA como seu Estado Hegemônico, foi percebido por muitos como virtualmente um único Estado todo poderoso, e até como o centro mesmo de um único império global. No entanto, os conflitos e tensões internas não podiam deixar de existir nesse Bloco Imperial Global, por exemplo, em relação à invasão do Iraque. Mas, é claro, visto que ocorriam dentro de um Bloco Imperial Global, um bloco de interesses sociais e políticos comuns, não tinha sentido esperar rupturas ou enfrentamentos violentos.
De nenhum modo, no entanto, se poderia dizer que os conflitos terminaram, que os interesses particulares, inclusive nacionais, dos outros membros do Bloco Imperial Global, deixaram de atuar. Dados os notórios problemas do capitalismo nos EUA, por exemplo, a maior dívida internacional mundial, assim como os maiores déficits fiscal e comercial do mundo; suas crescentes dificuldades nas guerras colonial/imperialistas no Iraque e no Afeganistão; a resistência dos "migrantes" nos centros mesmos do Bloco Imperial Global (as lutas na França, na Espanha e nos EUA, onde aconteceu a maior manifestação política de todos os Primeiros de Maio da história desse país), a resistência social mundial dos trabalhadores contra as tendências extremas do poder; a luta dos "indígenas" na América Latina e na Ásia; as tensões nesse Bloco Imperial poderiam ser ainda mais fortes.
E na perspectiva do futuro, as tendências apontam para a formação de novos participantes das disputas hegemônicas no mundo, e em alguns casos para realinhamentos conjuntarais de interesses possíveis nessas disputas, como China, Índia, Rússia, talvez Brasil, talvez, inclusive, teríamos direito a imaginar uma Comunidade Sulamericana de Nações. Como se percebe, não se trata somente de disputas entre "Estados", mas também de conflitos no padrão mesmo de poder, cujas expressões são esses Estados.
Ninguém, em nenhum espaço dentro deste padrão de poder, poderia estar fora ou livre dos conflitos, da exarcebação da crise e de suas violências. Ninguém, portanto, deveria imaginar sequer que entre as crescentes perversões dos dominadores/exploradores/repressores e as lutas de resistência de suas vítimas pode ser neutro. E na medida em que os estudos e os debates sobre o alterado mundo que a crise da colonialidade do poder produziu, também estão se levantando outros horizontes históricos em direção aos quais encaminhar nossas lutas.
Pereira: Em um artigo, o senhor afirmou que a globalização impulsionou uma nova relação entre capital e trabalho. Como isso está se refletindo na América Latina?
Quijano: Três modalidades principais: 1) a precarização e a flexibilização do trabalho foram muito mais longe que nos países "centrais", a extensão do que Marx chamou de "mais-valia absoluta", ou seja, a prolongação arbitrária da jornada de trabalho; 2) a re-primarização e a terceirização da estrutura produtiva reduziram drasticamente a população operária industrial-urbana, quase desmantelaram suas organizações gremiais, assim como suas organizações políticas diferenciadas e geraram a crise de identidade social dessas populações em termos de classes sociais; 3) a re-expansão das formas não-salariais de exploração, como a escravidão (como no Brasil e no conjunto da Bacia Amazônica), a servidão pessoal e a pequena produção mercantil independente.
Pereira: Por que o senhor crê que a "colonialidade do poder" tem uma relação profunda com o atual padrão de poder?
Quijano: A Colonialidade não tem somente uma relação profunda com o padrão de poder hoje mundialmente dominante. É o caráter central mesmo desse padrão de poder. A associação entre o novo sistema de dominação social fundado na idéia de "raça" e de um novo sistema de exploração do trabalho, que consiste na combinação de todas as formas de exploração em uma única estrutura de produção de mercadorias para o mercado mundial, sob a hegemonia do capital, ou seja, formando em seu conjunto o capitalismo mundial, não seria possível de outro modo.
Pereira: É possível um movimento revolucionário ter sucesso na América Latina tendo uma visão eurocêntrica?
Quijano: Dificilmente. O eurocentrismo é um modo de distorcer a percepção da experiência atual e histórica e como conseqüência impede resolver nossos problemas, salvo de modo parcial e distorcido. A derrota mundial entre meados dos anos 70 e final dos anos 80 no século XX foi, antes de tudo, uma conseqüência do domínio do eurocentrismo, e além disso, em suas fase de tecnocratização e aprofundamento de suas propensões distorcivas sob o domínio de capital finaceiro novo e mais predatório. Agora, estamos de novo na resistência mundial, a derrota vai ficando para trás, e estamos começando a produzir outro horizonte histórico.
Pereira: Como o senhor avalia o processo bolivariano conduzido por Hugo Chávez? Qual o potencial dessa proposta, em termos de aglutinação de outras nações, por meio de propostas como a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba)?
Quijano: Desde o ponto de vista da ampliação e defesa das margens de autonomia relativa dos países latino-americanos frente ao Bloco Imperial Global e antes de tudo frente ao imperialismo dos Estados Unidos, esse processo tem uma inegável importância. Não está claro o que poderia implicar em termos da destruição do padrão de poder como tal, ou seja, da dominação/discriminação/exploração/repressão no controle do sexo, do trabalho, da subjetividade, da autoridade pública e das relações com as demais espécies animais e o resto do universo. Só quanto as vítimas do controle em cada um desses âmbitos puderem ganar autonomia, a produção democrática de uma sociedade democrática entre iguais/heterogêneos pode avançar. Isso implica na redistribuição do acesso ao controle dos recursos de cada um de tais âmbitos. E isso não ocorre, não pode ocorrer a não ser pelo desenvolvimento da capacidade de auto-organização de auto-governo dos povos do mundo.
Pereira: Muito se tem escrito sobre as rivalidades e as disputas de Argentina e Brasil no Mercosul (agora, entre Argentina e Uruguai). Como o senhor avalia o esforço de construção de uma integração sócio-política na América do Sul a partir dos atuais Estados?
Quijano: Enquanto a maioria das populações da América não conquistarem a igualdade básica e a des/colonialidade do poder, me parece difícil que a integração da América Latina possa avançar e se consolidar. Até agora, as tentativas se fazem em termos de mercado, porque os mercados locais são considerados pequenos, dada a limitada, em rigor decrescente, capacidade aquisitiva das maiorias. Mas, não é tempo de nos perguntarmos por que a Suíça ou a Bélgica, que não têm os recursos de nossos países, nem o tamanho de nossas populações, têm entretanto grandes mercados internos? Essa questão não pode ser indagada, nem contestada, a não ser em termos da colonialidade do poder.
Pereira: Como o senhor avalia a posição do governo brasileiro na Organização Mundial do Comércio (OMC), que está empenhado em obter a retomada das suas negociações, usando sobretudo o status de liderança dos países subdesenvolvidos para convencer as outras nações da pertinência de um acordo?
Quijano: Não vejo nada de surpreendente no comportamento ambíguo do atual governo brasileiro nesse cenário. Corresponde a uma linha de política de Estado estabelecida já há um bom tempo, de negociação entre a burguesia brasileira e os grupos dominante da burguesia global.
[Entrevista tirada do sitio web ‘Brasil de fato’, 23 de xuño de 2006]
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