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sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Cidadania versus interesse de classe

KASSAB E A CEGUEIRA DA CLASSE MÉDIA

por Altamiro Borges

- “É um absurdo investir tanto dinheiro público em teatros luxuosos e em piscinas aquecidas nos CEUs do fundão da periferia. Aqueles nordestinos não têm cultura e vão destruir tudo”. Chilique de uma especialista na área de saúde e estética.

- “Eu fico puto com estes corredores de ônibus. Gastei uma fortuna no meu carro e ele anda mais devagar do que os ônibus. Parece que a prefeita privilegia quem não tem carro”. Desabafo de um ex-gerente de uma multinacional do setor de alimentação.

As duas declarações absurdas, mas verídicas, revelam bem a visão mesquinha da chamada classe média paulistana. Foram dadas, com a maior franqueza, por vizinhos do bairro da Bela Vista, na região central da capital paulista, quando Marta Suplicy ainda era prefeita. Este comportamento tacanho talvez explique porque Gilberto Kassab, representante do que há de mais conservador na política, deu de goleada neste bairro, venceu o primeiro turno e, segundo as pesquisas, deverá se sagrar o vitorioso no pleito neste final de semana, salvando o oligárquico Demo da total falência.

As farsas paulistanas

O mapa de votação do primeiro turno mostra que Kassab venceu com folga nos bairros nobres e de classe média da cidade; Marta Suplicy só ganhou nos extremos da periferia. Já as pesquisas de segundo turno revelam que o demo tem 73% da preferência entre eleitores que ganham acima de 10 salários mínimos. Estes dados corroboram a triste história do maior centro econômico do país, que sempre apostou em farsas conservadoras. É certo que a visão elitista da classe média paulista é antiga e não deveria gerar surpresas. Mesmo assim, ela causa asco e revolta. Numa linguagem sarcástica, o jornalista Nirlando Beirão, editor da coluna Estilo da revista Carta Capital, lembra:

“São Paulo era contra Getúlio Vargas e a favor da oligarquia. Apoiou o populismo de Adhemar de Barros e inventou Jânio Quadros para a política. Vociferou contra Juscelino Kubitschek. Com as Marchas com Deus pela Família, preparou e apoiou o golpe militar de 1964. Revelou Maluf. Na eleição municipal de 1985, elegeu Jânio contra Fernando Henrique. Na primeira direta para presidente, elegeu clamorosamente Fernando Collor. FHC contra Lula? FHC duas vezes. Maluf contra Eduardo Suplicy? Maluf. Pitta contra Erundina? Pitta. Serra contra Lula? Serra. Alckmin contra Lula? Geraldinho. Serra contra Marta? Serra. Kassab contra Marta? Kassab... Quando Erundina venceu em 1988, não havia segundo turno. Em 2000, o eleitor correu para Marta só porque tinha se cansado da impagável dupla Maluf-Pitta. Exceções que confirmam a regra”.

Come mortadela e arrota caviar

Já o sociólogo Emir Sader avalia que São Paulo se tornou “o núcleo mais conservador do país, o estado mais odiado pelos outros estados, porque assume a imagem da ‘vanguarda econômica’, de discriminação em relação aos outros, pretendendo, desde FHC, assumir o espírito reacionário de 1932. Não por acaso se constitui no estado o pior da imprensa nacional – FSP, Estadão, Veja –, instrumentos de propaganda da oligarquia paulista... O bloco sócio-político da direita representa o egoísmo de quem resiste às políticas de distribuição de renda e de incorporação dos excluídos”.

A chamada classe média, que reproduz acriticamente a ideologia dominante, teria ódio a Lula, a Marta Suplicy e ao conjunto da esquerda. Para esta camada, que come mortadela e arrota caviar, Lula representa “o nordestino chegado a São Paulo pela expulsão das secas do nordeste, operário que se forjou politicamente na oposição à oligarquia, discriminado por ela, odiado hoje porque promove políticas de redistribuição de renda que acusam as oligarquias pelo que não fez quando foi governo e pela sua responsabilidade em fazer do Brasil o país mais desigual do mundo. O oposto a FHC, ídolo dessa classe média conservadora e da elite branca paulista”, fustiga Sader.

Decifra-me ou te devoro

O livro Classe média: desenvolvimento e crise, organizado pelo economista Marcio Pochmann, ajuda a decifrar o enigma deste segmento social, alvo da cobiça dos conservadores. Ele usa como referência conceitual de classe média “o conjunto demográfico que, embora com relativamente pouca propriedade, destaca-se por posições altas e intermediárias na estrutura sócio-ocupacional e na distribuição pessoal de renda e riqueza. Por conseqüência, ela termina sendo compreendida como portadora de autoridade e status reconhecidos, bem como avantajado padrão de consumo”.

Ele subdivide a classe em média/alta (executivos, gerentes e administradores), em média/média (ocupações técnico-científicas, postos-chaves da burocracia pública e privada) e em média/baixa (professores, lojistas, entre outros). Indica que este estrato social teve forte expansão no país em decorrência das mudanças no capitalismo brasileiro, com o fortalecimento do papel do Estado e o aumento do trabalho assalariado. “Sem a propriedade e a posse de alguns meios de produção, a nova classe média assalariada encontrou a diferenciação em relação à classe trabalhadora não apenas pela extremidade do rendimento, mas também pelo padrão de consumo elevado”.

Neoliberalismo e guinada à direita

Após seus anos de glória, porém, ela também foi vítima do tsunami neoliberal. “A partir da crise da década de 1980, com a adoção de medidas recessivas e choques inflacionários, seguidos, nos anos 1990, por políticas neoliberais de abertura comercial e financeira, a classe média sofreu as conseqüências da semi-estagnação econômica, do desemprego e queda de renda. A conseqüente perda de status da classe e as dificuldades crescentes do mercado de trabalho cada vez mais competitivo e exigente de novas qualificações impactaram diretamente as suas aspirações de ascensão social”. A ofensiva neoliberal rompe o padrão de reprodução da classe média.

“Ganha ênfase o conjunto de ocupações vinculadas à existência de algum meio de produção e à posse de propriedade privada, como no caso dos micro e pequenos negócios ou das atividades autônomas”. As mudanças objetivas se refletem na sua subjetividade. “Segmentos importantes da nova classe média repudiam o Estado e jogam o peso da crise sobre o excesso de direitos e de ‘encargos sociais’... A nova classe média proprietária volta-se para o consumo das elites, mostrando-se profundamente reticente a qualquer forma de nacionalismo... Enquanto encolhe a renda da baixa e média classe média, a alta classe média ‘cola’ no processo de financeirização”.

“De um lado, a classe média que depende da expansão econômica, da prestação dos serviços públicos e sociais e da diversificação produtiva vê seu espaço de ação cada vez mais minguado; enquanto, de outro, uma nova classe média, ostensiva em seu padrão de consumo, aproxima-se da elite dominante e revela profundo escárnio em relação às potencialidades do desenvolvimento nacional. O motivo é evidente: a efetivação destas potencialidades implica a contenção e controle do seu modo de vida transnacionalizado e essencialmente anti-republicano... Será que a atual classe média realmente deseja que o país avance se isso lhe custar ceder alguns privilégios?”.

Aliada das elites dominantes

O livro lembra ainda que a classe média se beneficia das injustiças sociais, com diversos tipos de serviços pessoais – empregada doméstica, faxineira, segurança particular, babá, motorista – que estão disponíveis devido à abundância de mão-de-obra barata no Brasil. “Naturalmente, qualquer variação no status quo modificaria essa relação da classe média com a mão-de-obra abundante, tirando-lhe o proveito dos serviços pessoais e reduzindo a sua posição social hoje privilegiada”. Como conclusão, a obra chegava ao veredicto que explica a tendência eleitoral deste segmento:

“Esse quadro reforça a posição tradicional conservadora do grupo em luta pela manutenção das suas regalias. E isso torna a classe média uma aliada dos grupos dominantes do país, da ‘elite do poder’. Sendo assim, não é difícil de entender o verdadeiro sentimento de contradição que parece atravessar esse heterogêneo grupo social: de um lado, o sonho de modernidade, de progresso, de competência e de sucesso; de outro, o contato, o apadrinhamento, os serviçais, a aparência. É quase como o mito da caverna: alia-se ao discurso conservador em detrimento da compreensão mais profunda do país concreto e, por isso mesmo, só observa sombras da realidade”.

Cegueira beira a burrice

Nesta cegueira preconceituosa, a chamada classe média beira a burrice. Repete acriticamente as manipulações da mídia venal. Gosta de ouvir e ecoar os comentários dos colunistas mais elitistas e rancorosos, como Arnaldo Jabor, Diogo Mainardi, Boris Casoy, Lucia Hippolito, entre outros. Metida a esperta e informada, esquece facilmente que Celso Pitta devastou a capital e que tinha como seu principal secretário o atual candidato Gilberto Kassab. Sem memória, releva o sombrio período da ditadura, que hoje tem como herdeiros os oligarcas do demo (ex-PFL), escorraçados pelas urnas no país inteiro, mas salvos na “capital da modernidade”.

Egoísta e egocêntrica, ela não percebe que o país não se desenvolverá, inclusive alavancando as suas camadas médias, sem justiça social; que a miséria estimula a violência e criminalidade; que a barbárie acirra o apartheid social, com os presídios para os pobres e os condomínios fechados, cercados de segurança e câmeras, para os abastados. Ela se opõe às políticas públicas a serviço do conjunto da sociedade e depois reclama dos congestionamentos provocados pela “civilização do automóvel” privado. Critica o Bolsa Família, mas sonha com sua bolsa de estudo no exterior. Diz não ser racista e preconceituosa, mas cada vez mais se parece com a elite fascista da Bolívia.

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