Morreu na contramão atrapalhando o tráfego
Por Leonardo Sakamoto
Com as refilmagens de “O Poderoso Chefão” no Senado, muitas pessoas, indignadas com a política, têm feito seus protestos. Acham que aquilo é o máximo da participação cidadã e que terá um efeito avassalador nos salões do Congresso Nacional. Na minha avaliação, isso é de uma inutilidade atroz, só comparável à compra de indulgências durante a Idade Média.
Começam pelas correntes na internet - não peguei até agora uma que trouxesse alguma possibilidade de causar alterações reais. Mas o pessoal acha que está mudando o mundo através do spam. Triste.
Isso passa pelos “flash mobs”, aquelas manifestações relâmpago organizadas pela internet. Eu estava na avenida Paulista, dia desses, quando um grupo de umas 80 pessoas se reuniu no vão do Masp e começaram a protestar. Cruzavam a faixa de pedestres quando o semáforo fechava e retornavam à calçada quando abria. Gritavam “Fora Sarney!” Uma senhora, já avançada em anos e sabedoria, parou, olhou, refletiu e me perguntou: “é alguma festa?” Respondi que, de certa forma, sim. Um ato mais para expiação da culpa individual do que algo realmente construtivo. Depois o povo deve ter ido tomar um refri na rede de fast food mais perto.
Também atinge as reclamações e ações virtuais em blogs e twitters. Já postei muita coisa sobre a atual crise neste blog, sei que o acesso à informação contribui para a conscientização do problema real e não apenas de sua superficialidade aparente, mas não tenho a mínima pretensão de achar – como alguns – de que o mundo virtual sozinho pode ser a ponte para a derrubada de fulano ou ciclano do poder.
Muita gente se esconde atrás da tela de um computador, mas não tem coragem de usar as armas da democracia para tirar aquele povo de lá. A indignação vai durar enquanto o tema estiver no topo dos mais comentados, vai seguir a pauta política da situação e da oposição e não a da sociedade. Não chegará às próximas eleições. Depois, a indignação dará lugar à outro sentimento exatamente porque ela não é real, não veio de dentro para fora e sim de fora para dentro. Para alguns, foi embutida ali, como uma moda. A moda hoje é estar indignado. Amanhã é usar azul celeste.
E falando em cores, um outro protesto foi inacreditável. Recebi um torpedo ordenando que, no dia seguinte, todos vestissem preto para derrubar o Sarney. Mas não vi alteração significativa nas ruas. Certamente quem mandou o SMS deve ter achado que quem usava o pretinho básico protestava ferozmente.
Por fim, os protestos da turma do antigo “Cansei!” Dia desses, zapeando canais, parei em um daqueles programas bregas de fofocas da alta classe. Ícones do “Cansei!” reclamavam, enojados com tudo e com Brasília. Depois, apareciam, na mesma festa, abraçados com políticos que não têm currículo e sim capivara, ficha corrida. Eles cansaram, mas foi só de brincadeira. Até porque o caviar tem que sair de algum lugar, não?
Enquanto isso, quem protesta de verdade, tentando mudar as coisas, é taxado de vagabundo, louco, imbecil, retrógrado, egoísta. Por que? Porque eles não protestam como eles, seres civilizados, que nunca parariam o trânsito. Para estes manifestantes de butique, o protesto tem limites. A partir daí, vira arruaça.
Estava voltando de Brasília e não conseguiu deixar de ouvir uma conversa de duas mulheres sentadas atrás de mim no avião. Aliás, a aeronave inteira ouviu, porque elas falavam muito alto:
- Você viu que morreu uma daquelas sem-terra na rodovia dia desses. Atropelada.
- Também, estava andando no meio da estrada, fazendo protesto. Atrapalhando o trânsito.
- Não gosto daquela gente, sabia? São um bando de arruaceiros. Por que não vão arrumar um emprego ao invés de ficar protestando por aí?
- Tem gente que não sabe se encaixar.
“Encaixar”! Nossa elite é o máximo, de uma sinceridade aviltantemente bonita! É o velho: ponha-se no seu lugar! Eles cantam Chico Buarque, mas não entendem o que ele diz – talvez se soubessem, parassem de cantar. Pois foi uma trabalhadora rural do MST pedindo reforma agrária, mas poderia ter sido um pedreiro caindo de um andaime, sonhando com uma vida melhor: “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”.
Ontem, também na avenida Paulista, foi realizado um protesto de verdade contra a crise no Senado, que juntou sindicatos, movimentos populares e estudantis, organizações da sociedade civil. Mais de quatro mil pessoas, de acordo com a polícia.
Um taxista, ao ver o trânsito causado pela manifestação, começou a gritar: “Cambada de vagabundos! Vagabundos!” (como o prefeito Kassab naquele ataque de histeria anos atrás…) Perguntei o motivo. “Porque eles estão atrapalhando o tráfego. Por que não vão arranjar um emprego!”
Exercer sua cidadania e colocar a democracia em prática em um país como o Brasil é perigoso. Além de poder morrer atropelado, ser xingado e considerado um inútil, você ainda pode ser desalojado e tratado como um marginal.
Tempos atrás, moradores de uma favela próxima ao Real Parque, zona Sul de São Paulo, fecharam as pistas da Marginal Pinheiros para protestar contra a derrubada de suas casas. Seus barracos estavam em um terreno público e a prefeitura resolveu removê-los antes de finalizar negociações. Afinal de contas, a gente bonita que passa por aquele bairro rico não é obrigado a ver aquelas casinhas de madeira feias. Houve bombas de gás, surras de cacetetes, enfim, aquela corja tinha que acabar com aquilo. Na mídia, a ênfase estava nos relatos sobre o congestionamento causado, o ato era apenas um detalhe.
O tráfego, sempre ele, que reina soberano em uma cidade que quer funcionar como um relógio suíço, sem se atrasar. Protestos agendados, marcados, pequenos, ordenados com começo, meio e fim, protestos que não mudam nada só expiam culpa, são o desejo de muitos paulistanos, cada vez mais embutidos no sistema. Não conseguem perceber que manifestações que fogem disso, que rompem a lógica, é que são reais e têm poder de mudança.
No fundo e por trás de tudo isso, uma pergunta ecoa no peito de muita gente das classes média e alta desse país quando defrontada com tudo isso: Mudar para quê? Time que está ganhando, não se mexe.
Um comentário:
Um nome encaixa bem nessa história, hipocrisia. Na minha cidade existe um programa de rádio onde os ouvintes participam ao vivo, cobrando ações, em sua maioria do poder Executivo. Um dos itens mais cobrados é segurança. A questão é que: quando um jovem da periferia leva um celular de uma estudante desatenta, muitos ouvintes ligam para cobrar providencias urgente. Nos bastidores é comum ouvir-se moradores (todos religiosos) dizer que a única solução para esses narginais é a morte. No entanto, não faz muito tempo, nosso estado (Alagoas) foi notícia em todo o Brasil, devido a prisão pela Policia Federal de vários políticos, devido ao rombo de R$ 300 milhoes, no entanto nunca se ouviou nesse programa de rádio, que por ironia tem o nome de "Liberdade de Expressão" as pessoas, muito menos o locutor, cobrar qualquer providência para esse caso.
Resultado, para as classes dominantes os verdadeiros culpados pela crise serão:
os sem-terras são culpados pela monocultura,
os sem-tetos, pelo déficit habitacional,
os pobres pelas favelas,
as crianças, pela pedofilia, etcétera e tal.
Para isso contam fielmente com a grande mídia.
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