"A imprensa já não é cão-de-guarda. A imprensa, hoje, é cachorrinho-de-madame, que procura a coleira e a traz nos dentes, para entregá-la à patroa."
(Uri Avnery, dez. 2008)
Quem tenha a sorte de chegar aos 85 anos com boa saúde e boa cabeça, muitas vezes prefere olhar para trás, seja com tristeza seja com satisfação, e fazer algum balanço dos anos que viveu. Uri Avnery, afiadíssimo, definitivamente prefere olhar à frente, otimista e confiante. "É meu otimismo genético", diz ele. Não passa nem sombra de sorriso em seu rosto, quando lhe perguntam sobre o país em que estará vivendo daqui a dez anos. Sua mãe chegou aos 95 anos, e ele está decidido a bater o recorde de uma família que chegou à Alemanha, ele conta, com Júlio César. O decano dos combatentes pela paz em Israel não tem dúvidas de que estará presente, na festa que celebrará a paz entre israelenses e palestinenses.
"Ao longo da vida vi acontecer as coisas mais inesperadas; vi Hitler subir ao poder e vi o amargo fim de Rommel em El Alamein," diz um dos mais conhecidos judeus-alemãos da história de Israel. "Mas se se vive de cabeça baixa, olhando os próprios pés, morre-se de tristeza. Então, sempre ergo a cabeça e olho à frente. "
Esse otimismo, Avnery o arranca de tanto observar o longo caminho que os israelenses já percorreram, desde quando apoiavam a idéia de uma "grade pátria de Israel", até hoje, quando a opinião pública em Israel já não admite a presença de colonos judeus nos territórios palestinos; também, diz ele, de ver o longo caminho que os norte-americanos andaram, do presidente Bush, branco e conservador, até o presidente eleito Barack Obama, negro e liberal.
Quando tantos, aos 85 anos, brincam com os bisnetos, Avnery lidera seus companheiros do Grupo da Paz, Gush Shalom, em manifestações contra o muro da separação em Bilin, faz conferências no exterior e, sobretudo, jamais pára de escrever. O artigo que publica semanalmente é traduzido para várias línguas, entre as quais o árabe e o português, e é distribuído pela internet a dezenas de milhares de leitores, em todo o mundo.
A esposa, Rachel, sempre ao seu lado, diz que não se arrependem de terem decidido não ter filhos. Para o simpósio em homenagem a Avnery, que se realiza essa semana, passou-lhe pela cabeça a idéia de que teria sido lindo ter uma neta que entregasse um ramo de flores a Uri. Mas se tivessem tido filhos, teria sido muito mais difícil para ele esconder-se entre as rodas dos jipes militares, ou viajar para Beirute, no calor da hora, durante a primeira guerra do Líbano.
Vê-se, em Uri Avnery, bem pouco de ceticismo, essa preciosa qualidade. Diz Rachel: "tenho um punhado de 'quases' que salpico nos 'absolutos' dele." Avnery não tem qualquer dúvida (nem Rachel) de que a Israel do primeiro-ministro Ariel Sharon assassinou seu bom amigo Yasser Arafat. Quando Uri e Rachel encontraram-se com o líder palestino, poucas semanas antes de ele morrer, Arafat parecia estar muito bem. Até hoje, ainda não há qualquer explicação oficial sobre a misteriosa doença que o teria matado. Avnery não tem qualquer dúvida sobre quem tinha o motivo, os meios e a oportunidade para livrar-se de Arafat sem deixar pistas – pelo mesmo método que os espiões do Mossad usaram para tentar assassinar Khaled Meshal, líder do Hamás, e que os russos parecem ter usado para livrar-se do espião Alexander Litvinenko.
Jamais ocorreu a Avnery que Arafat possa ter-lhe ocultado suas reais intenções e que talvez o tenha seduzido e cooptado. Não. O ativista pela paz tem certeza de que conheceu Arafat melhor do que o próprio Arafat se conhecia ele-mesmo, e não duvida de que, se os dois, o líder palestino e Yitzhak Rabin, não tivessem sido assassinados, teriam conseguido fazer dos acordos de Oslo um verdadeiro acordo de paz.
Rachel Avnery exibe com orgulho uma grande fotografia em que Avnery e Arafat aparecem lado a lado, de mãos dadas, erguidas. Não há foto de Avnery com Máhmude Abbas (Abu Mazen), presidente da Autoridade Palestina. Avnery foi considerado "homem de Arafat" e, portanto, desde a alegada tentativa de envenenamento, as portas da Muqata, em Ramállah, têm estado fechadas para ele. Para Avnery, Abu Mazen tem mais traços de diretor de escola, que de líder carismático.
Avnery está convencido de que é possível chegar a um acordo de paz com o Hamás. Há anos, os manifestos que o Grupo da Paz publica na imprensa israelense insistem sobre a necessidade de Israel criar condições de conversação com Ismail Haniyeh, líder do Hamás em Gaza. Para Avnery, Haniyeh não precisa reconhecer o Estado judeu. Dependesse de Avnery, abrir-se-iam já canais de conversação também com o presidente do Iran, Máhmude Ahmadinejad – e ele não duvida de que essas conversações acontecerão, mais dia, menos dia. Quem algum dia supôs que o império russo ruiria e que o Muro de Berlim viria abaixo?
Ehud Barak é imperdoável
A janela da pequena sala de trabalho de Avnery em Telavive abre para o prédio quadrado que abriga o ministério da Defesa e o ministro da Defesa, Ehud Barak, que Avnery chama de "criminoso anti-paz". O homem que dedicou toda sua vida política e de jornalista para conscientizar os israelenses sobre as possibilidades de viver em paz com os palestinos ("Mudar a mentalidade", diz ele, "é 80% da história"), não perdoa Ehud Barak pelo pecado de ter dito aos israelenses que os árabes jamais seriam "parceiros" e que, portanto, Israel "não tem parceiros para a paz".
Algumas das características de Avnery, de fato, são como o contraponto da alienação que Barak irradia. "A esquerda admira idéias e a direita só admira o poder", diz. "Poder sem idéias nada vale, mas idéias sem poder tampouco valem grande coisa." A paz será quase inalcançável, se não se conseguir persuadir as pessoas a enfrentarem os sacrifícios necessários para que tenhamos paz. A paz é valiosa e, portanto, exige sacrifícios. A noção de que os árabes não seriam "parceiros" de Israel, na luta de todos pela paz – idéia que Barak introduziu na opinião pública – tornou ainda mais difícil a luta pela paz.
Para Avnery, a esquerda ainda confia demais na lógica, e carece de inteligência emocional. Ele orgulha-se de ter dito que, em política, é irracional ignorar a irracionalidade; muitas vezes, a irracionalidade domina qualquer racionalidade. O fracasso da esquerda, sugere, deriva da incapacidade da esquerda para romper o código do apoio irracional que a direita encontra entre os mais pobres em Israel, por exemplo, dos Mizrahim[1] e dos russos migrados da ex-URSS, que apóiam os partidos da direita.
"É impossível introduzir a idéia de paz em Israel, se não falarmos a todos os israelenses", diz. O homem de quem se diz que seria "narcísico e insensível", acrescenta: "A mensagem tem de ser emocional." E continua, falando com seu conhecido sotaque de judeu-alemão: "Achamos que nós podemos cozinhar melhor o frango e servi-lo mais bem servido. É hora de substituir a arrogância elitista dos asquenazes por linguagem e conceitos que toquem todos os israelenses e lhes digam alguma coisa." Diz que a esquerda precisa encontrar um líder Mizrahi[2]. (Amir Peretz? "Cheguei a pensar que sim, mas antes do verdadeiro profeta, sempre aparecem falsos profetas.")
"A cultura dos judeus é tecido misto, entretecido com a cultura islâmica, desde o Rambam[3] e Judah Halevi[4]", continua Avnery, "e a mensagem da paz é acolhida com muita naturalidade por judeus que tenham vivido em sociedades muçulmanas."
Garotas e biquinis
Um dos resultados da recente convenção do partido Meretz é que o jornalista Nitzan Horowitz aparece em terceiro lugar na lista eleitoral para as eleições do Parlamento. Com todo o respeito ao talentoso repórter de TV, Avnery não acredita que a salvação da esquerda virá de duas ou três "estrelas de televisão" que ganhem ou não ganhem algumas cadeiras. "A esquerda de Israel tem de chegar ao poder. É a única via possível para implementarmos nossas idéias. Depois de Obama ter sido eleito, pode-se falar, assim, mais claramente, sem parecer otimista iludido."
Avnery não entende que tantos surpreendam-se tanto com jornalistas buscarem assento no Parlamento. Ha'olam Hazeh – revista semanal que Avnery editou, que já não existe e que teve o mesmo nome do partido também fundado por ele – foram, na opinião dele, dois instrumentos para um único e mesmo objetivo: pôr fim ao conflito entre israelenses e palestinenses. Para Avnery, sempre foi natural discursar no Parlamento pela manhã e escrever editoriais à tarde. Quanto a isso, diz ele, não há nem jamais houve qualquer problema.
A revista Ha'olam Hazeh foi "a mãe" do jornalismo "alternativo" em Israel. A capa negra com garotas de biquini serviu, diz ele, como instrumento legítimo para atrair os jovens, oferecendo-lhes artigos com melhor análise política e boas matérias investigativas sobre corrupção e corruptos.
"Sempre gostamos da idéia de quebrar, um depois do outro, os principais tabus da sociedade israelense", Avnery sorri. "Naquele momento, não havia jornal nem revista no mundo que desafiasse praticamente todas as instituições do 'consenso' e que, ao mesmo tempo, fosse lido em todos os salões de beleza e salas de espera de dentista."
A idéia de os políticos deverem ser tratados com cuidado (como "limão judeu"[5] – referência à presumida tendência de alguns jornalistas de se encherem de cuidados ao criticar os políticos, atentos sempre a não os apertar 'demais', como se recomenda que se faça com o limão judeu, nas festividades do Sucot) jamais passou pela porta da redação da revista de Avnery. Ele diz que ainda lembra vagamente de nada ter publicado sobre uma conta em dólares de Yitzhak Rabin, em 1977 (matéria que, depois, foi publicada no Haaretz), exclusivamente porque não vê que importância tenha o fato de um ex-embaixador esquecer de encerrar uma conta em banco no exterior. Dan Margalit, o repórter que lhe levou aquela matéria, como vários outros hoje destacados profissionais do jornalismo israelense, iniciou sua carreira na revista Ha'olam Hazeh.
Avnery lembra a cor do biquini de crochê da bela moça que saiu da água, há 30 anos, e subiu ao barco em que ele velejava no Mar Vermelho, dizendo que queria escrever uma coluna regular na Ha'olam Hazeh. Chamava-se Odetta – Odetta Danin – e escreveu, por muitos anos, uma coluna de dicas úteis e de conselhos em geral. Odetta, hoje, é jornalista de uma revista de grande circulação, a Maariv.
Avnery também lembra do encontro com o primeiro-ministro Yitzhak Rabin, quando Rabin reclamou muito de ele estar espantando as pombas do partido no poder (os escândalos Yadlin, Ofer e Levinson, em meados dos anos 70, que antecederam a queda do "Alinhamento", antecessor do Partido Labor de hoje). Ainda que estivesse convencido de que o primeiro-ministro Ehud Olmert estivesse pronto para assinar um acordo de paz com os países árabes, ainda assim Avnery insistiria em que fosse processado e julgado por seus crimes. Para ele, "a imprensa já não é cão-de-guarda. A imprensa hoje é cachorrinho-de-madame, que procura a coleira e a traz nos dentes, para entregá-la à patroa."
© 2008, Haaretz, Telavive, 25/12/2008, em http://haaretz.com/hasen/spages/1050153.html . Tradução de Caia Fittipaldi, sem valor comercial, para finalidades didáticas.
[1] Judeus descendentes de árabes do Oriente Médio. A palavra, aí, é usada do plural. NT.
[2] Judeu descendente de árabes do Oriente Médio. A palavra aí é usada no singular. NT.
[3] Rabino Moshê ben Maimon, também chamado Maimônides e Ramban, nasceu em 1135, em Córdoba. É autor de comentários aos dois Talmud, o de Jerusalém e o da Babilônia. Para saber mais, ver http://www.jewishvirtuallibrary.org NT.
[4] Nascido em Toledo, em 1086, é reverenciado como o maior poeta hebreu de seu tempo. Para saber mais, ver http://www.jewishvirtuallibrary.org NT.
[5] No orig. etrog (heb.), espécie de fruto cítrico usado nas festas do Sucot. Essa espécie de fruto tem formato de coração e um pedúnculo numa das extremidades, que tem de ser mantido intacto até o final das cerimônias. Daí o que diz o texto, sobre "manusear com cuidado o limão". Para saber mais, ver http://www.morasha.com.br/conteudo/ed38/etrog.htm NT.
Israel monta campanha de mídia, para culpar o Hamás pela destruição de Gaza
(In Guardian, UK, 28/12/2008, 15.45 GMT, em http://www.guardian.co.uk/world/2008/dec/28/israel-gaza-hamas)
Israel montou ampla campanha de mídia [que ingleses e norte-americanos chamam de "public relations (PR) campaign"] para convencer corações & mentes em todo o planeta, de que o Hamás é culpado pela morte e destruição que o mundo está assistindo pelos noticiários de televisão.
Para evitar que se repetisse a onda de crítica, em todo o mundo, que atingiu Israel no início de 2008, quando Israel invadiu Gaza para prender militantes que lançavam foguetes de quintal – brincadeira de criança, comparada ao brutal ataque hoje em curso –, Israel decidiu precaver-se.
"No passado, nosso primeiro-ministro recebia telefonemas de funcionários e políticos. Quando dizíamos a eles "Vocês entendem nossa reação, não é? Não podemos admitir aqueles foguetes que..." eles respondiam "Que foguetes?!" Não tinham qualquer informação sobre nossos problemas", disse o porta-voz do governo israelense, Yigal Palmor.
Então, enquanto os chefes-da-guerra armavam seus aviões-bombardeiros, o ministério do Exterior preparava ampla campanha de divulgação, para conter as críticas contra o assalto à Palestina, que viria no sábado.
Todos os diplomatas israelenses tiveram o fim-de-semana suspenso e foram chamados às embaixadas. E foi montado em Sderot, junto à fronteira norte de Gaza, um centro de imprensa, multilíngue, para o qual foram convocados jornalistas do mundo inteiro.
Em Telavive, a ministra do Exterior, telefonou a David Miliband, secretário de Relações Exteriores da Inglaterra; a Condoleezza Rice, secretária-de-Estado dos EUA; a Ban-ki-Moon, secretário-geral da ONU; a Javier Solana, chefe de política internacional da União Européia, e aos ministros do Exterior da Rússia, da China, França e Alemanha.
Ontem, no centro de imprensa de Sderot, Tzipi Livni falou a 80 representantes de países e a altos funcionários de suas embaixadas.
"Concluímos que é essencial divulgar o contexto no qual estamos tomando as necessárias decisões em Israel, e que os acontecimentos seguem uma sequência lógica" – disse Palmor.
Para Israel, a "sequência lógica que levou ao brutal bombardeio da Faixa de Gaza não começa pela ocupação de território palestinense, em 1967 – única sequência lógica que os palestinenses bombardeados conhecem.
Para Israel, a "sequência lógica" começa há três anos, com a decisão de retirar os acampamentos militares e as colônias de civis da área da Faixa de Gaza.
"Poderíamos começar por 1948 [ano em que a Palestina foi dividida, para criar Israel] mas queremos concentrar-nos na situação atual. Comecemos, então, pela retirada, em 2005" – prosseguiu o porta-voz. – "Palestinos militantes chegaram a dizer que a evacuação seria vitória sua, resultado dos ataques de foguetes e fogo continuado, sobre cidades do sul de Israel."
Depois de cercar Gaza – o chamado "Muro da Vergonha", na Palestina – antes de retirar-se da Faixa, Israel passou a impor um bloqueio cada vez mais forte, que impedia, no final de 2005, que quem trabalhasse em Gaza entrasse em território israelense; em 2006, foi bloqueado todo o tráfego de caminhões e o abastecimento; finalmente, em meados de 2007, foram bloqueados até os caminhões de ajuda humanitária.
Perguntado sobre se a campanha de propaganda internacional estaria dando resultado, o porta-voz respondeu que ainda é cedo para avaliar.
Seja como for, os ataques começaram no sábado, no mesmo momento em que matérias que repetiam a fala ouvida no centro de imprensa de Sderot passavam a ser repetidas, sem alteração, em todo o mundo.
Condoleezza Rice culpou o Hamás "por quebrar o pacto de cessar-fogo e pelo reinício da violência". Máhmude Abbas, presidente da Autoridade Palestina, disse que os bombardeios poderiam ter sido evitados.
"Sabíamos que havia esse perigo e que teríamos de evitar qualquer pretexto que Israel pudesse usar", disse Abbas ontem, enquanto posseguia o bombardeio sobre Gaza.
(Ambos textos reproduzidos do site Viomundo
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