Estudos sobre a vinda da família real ao Brasil ignoram que país estava inserido no contexto mais amplo do Atlântico Sul |
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
No termo do ano do bicentenário, talvez ainda haja algo para ser dito sobre a chegada da corte.
Eventos variados apresentaram as mudanças introduzidas em 1808.
Apontou-se o desenvolvimento comercial, a modernização social e institucional, o transplante da burocracia européia que forjou o aparelho estatal da nação, a não-fragmentaçã o da América portuguesa e a singularidade monárquica brasileira no contexto americano.
Some-se a isso certa nostalgia da época em que o Rio de Janeiro era a capital política, econômica e cultural do país.
Com exceção deste último aspecto, os temas não foram muito distintos dos que haviam sido destacados cem anos atrás.
Como há um século, a comemoração da vinda da corte serviu para apregoar a preeminência do Brasil na história da expansão européia e a excepcionalidade do destino brasileiro.
Pouco se falou a respeito da ofensiva inglesa no Atlântico Sul, ilustrada pelos ataques de 1806 e 1807 a Buenos Aires, cujo comércio seria em seguida aberto à Inglaterra.
Quase nada foi notado sobre o arrocho de Londres para que a corte viesse para o Brasil comboiada -subjugada pelos canhões da Royal Navy.
No entanto -respondendo à chancelaria britânica, que insistia, ainda em 1838, na generosidade da ajuda naval inglesa em 1808-, Sá da Bandeira, primeiro-ministro português, argumentou que a corte podia muito bem ter se estabelecido na ilha da Madeira, mais próxima de Lisboa e inacessível à Marinha de Guerra francesa (destruída em 1805 na batalha de Trafalgar).
Pressão inglesa
Para ele, a vinda da corte para o Rio de Janeiro fora imposta pelos ingleses, sobretudo interessados em ter livre acesso ao mercado da América portuguesa. Nessa perspectiva, o fator decisivo do translado da corte é a pressão inglesa para forçar a abertura do comércio do Brasil.
Assim, o plano de mudança da sede do reino, cogitado desde sempre por uma elite portuguesa ansiosa por vir morar em Pindorama -eixo central da historiografia e do comemoracionismo- , se torna aleatório.
Enviesada por uma interpretação territorial da história do Brasil que desconsidera a unidade do Atlântico Sul, boa parte das análises não atinou para o outro evento marcante de 1808: o engolfamento brasileiro nos portos africanos abandonados pelos negreiros da Inglaterra e dos EUA.
De fato, concretizou- se nesse mesmo ano a proibição do tráfico de africanos ordenada aos comerciantes dos dois países por seus respectivos governos.
Atenta à mudança, a Mesa de Inspeção -órgão regulador do comércio do Rio- anunciou, em agosto de 1808, as grandes oportunidades abertas ao Brasil, "pela falta de concorrentes estrangeiros na costa [da África], sendo a todos vedado este comércio [de escravos]".
Na seqüência, as trocas diretas com a Inglaterra estimulam as exportações brasileiras para a Europa, avolumando a importação de africanos.
Campeão absoluto do comércio negreiro, já considerado pirataria no século 19, o Brasil captou 1,5 milhão de africanos entre 1808 e 1850. Desses, 760 mil foram ilegalmente introduzidos no país, sobretudo entre 1831 e 1850.
Conforme a legislação brasileira de 1831, todos esses indivíduos eram considerados livres ao pisarem nas praias do império. Sua redução ao cativeiro constituía crime de seqüestro.
Porém a esmagadora maioria deles -e de seus filhos e netos- foi mantida na escravidão com a tolerância das autoridades e o conluio da sociedade.
Livres e escravizados
Desse modo, as duas últimas gerações de escravos simplesmente não eram escravos. Trata-se de indivíduos plenamente livres e escravizados ao arrepio da lei.
Nesse contexto, a transferência da corte ofereceu duas condições importantes para a sobrevivência do sistema negreiro. Um governo português -e depois brasileiro- obstinado na continuidade do escravismo e um aparato diplomático competente, apto a neutralizar as ofensivas diplomática e naval inglesa, protelando o tráfico de africanos até 1850.
A visão irênica da chegada da corte propala a ocidentalização do Brasil pela dinastia dos Bragança que reinava nas duas margens do Atlântico.
Mas houve também uma terceira margem no rio-oceano, formando a cadeia de trocas que conectou a barbárie ao progresso econômico: quanto mais cresceu a economia brasileira, mais gente foi arrancada da África e escravizada no Brasil.
O poeta alemão Heinrich Heine escrevia em 1833: "Cada época é uma esfinge que mergulha no abismo logo que o seu problema é decifrado".
Terá o Brasil decifrado as conseqüências do problema gerado em 1808?
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris 4. É autor de "O Trato dos Viventes" (Cia. das Letras) e escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
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