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segunda-feira, 21 de junho de 2010

James Petras: A deterioração econômica da Europa

" Ainda é cedo para se falar em um colapso para o futuro próximo, mas os conflitos sociais e a recessão tendem a aumentar nesse continente e no mundo após a crise do euro, pontua o sociólogo James Petras. China e Brasil emergem como potencialidades nesse cenário. "

Reproduzido da Revista IHU
Por: Graziela Wolfart, Márcia Junges e Patricia Fachin | Tradução de Lucas Schlupp, 24/05/2010

Apesar de não ver um colapso para um futuro próximo, o sociólogo norte-americano James Petras vislumbra “possibilidades de recessão e de aumento nos conflitos sociais”. Na entrevista que concedeu, por telefone, à IHU On-Line, ele sentencia que “estamos entrando num período de deterioração econômica na Europa”. As revoltas sociais estão acontecendo em países específicos, e não há uma revolta social geral. As lutas dos trabalhadores querem, no fundo, manter o status quo, evitando o regresso de direitos já adquiridos. O que é paradoxal, observa Petras, é que eles se valem de medidas radicais para defender esse status quo. Já os capitalistas usam medidas legais para destruir esse cenário. Em sua opinião, após essa crise do euro, “haverá uma reorganização da política em um espectro bem polarizado entre a direita e a esquerda”. Além disso, aponta que a terceira via chegou ao seu limite, sobretudo na Inglaterra e França, em específico, e na Europa, como um todo. Na verdade, diz ele, a terceira via não era uma terceira via: “Era uma forma de liberdade de mercado capitalista com aumento nos gastos sociais, sem a realização de mudanças estruturais”. Petras adverte, também, para a compreensão de que a globalização significa, entre outras coisas, a integração de todas as economias, o que faz com que a crise do euro afete diretamente os EUA de inúmeras formas.

James Petras é professor emérito de Sociologia na Universidade Binghamton, em Nova York. Cursou a graduação na Universidade de Boston e o doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autor de mais de 62 livros, publicados em 29 línguas, entre os quais citamos A mudança social na América Latina (2000), Globalização: O imperialismo do século XXI (2001), Sistema em crise (2003) e Multinacionais Trial (2006). Entre 1973 e 1976, foi membro do Tribunal Bertrand Russel sobre a repressão na América Latina. Atualmente, escreve uma coluna semanal para o jornal mexicano, La Jornada.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as perspectivas apontadas pelo governo Obama diante deste cenário de crise do euro?

James Petras - Em primeiro lugar, penso que é importante lembrarmos que a globalização significa integração de todas as economias, pelo menos as que estão profundamente incorporadas no mercado mundial. Assim, tudo aquilo que acontece na Europa, particularmente a crise do euro, afeta fundamentalmente os Estados Unidos de diversas maneiras. Afeta a capacidade dos exportadores americanos competirem com os europeus, pois o baixo preço do euro torna os exportadores europeus muito mais competitivos. Inevitavelmente, se o euro cria uma crise de grande proporção, também afeta os Estados Unidos, que investiram pesado na Europa, particularmente nas linhas de crédito imobiliário. Dessa forma, a crise espalha-se do sul da Europa para o norte, e do norte europeu para os Estados Unidos, levando a uma “recessão dupla” (Double dip recession), que é a reversão da recuperação, que tem demonstrado alguns sinais, retornando a uma recessão, a um crescimento negativo.

Uma terceira coisa é que já estamos percebendo, nos Estados Unidos e no norte da Europa, mas, particularmente, na Grécia, Espanha e Portugal, um processo de reversão dos ganhos sociais. Isso é um efeito dominó em que as tentativas dos governos para impor o custo da crise na classe trabalhadora, nos sindicatos, causam um efeito profundo nos padrões de vida. Eu não consigo ver como isso pode não acabar aumentando os conflitos sociais. Agora, os principais conflitos estão nas áreas diretamente afetadas. Na Grécia, há uma greve geral afetando em torno de 60% do efetivo, 90% do efetivo público em Atenas, e já atingiu o setor privado. Essa é a expressão militante mais visível de uma rejeição intensa.

Autoritarismo capitalista

Na Espanha, há sinais de greve geral. Em Portugal os sindicatos rejeitaram o plano de Sócrates , de cortes nas áreas sociais. E eu acho que há uma possibilidade de que, de acordo com os desdobramentos de programas como estes, no restante da Europa, as relações de capital de trabalho serão afetadas num futuro não tão distante. Além disso, virtualmente, não há sindicatos nos Estados Unidos. Temos 93% de trabalhadores no setor privado que não são filiados a sindicatos, e os sindicatos do setor público são legalmente proibidos de aderirem a greves. Então, virtualmente, não há resistência organizada contra estes programas nos Estados Unidos. É muito similar a um modelo autoritário, onde o capital faz o que bem entende, o governo faz o que bem entende. A manifestação nos Estados Unidos é muito confusa. É feita de forma que o descontentamento social não se expressa muito em um protesto social ou movimentos em massa. Porque o que temos de organizações trabalhistas é dirigido por milionários dirigentes dos sindicatos. Eu não sei se vocês sabem aí no Brasil, mas praticamente todos os líderes sindicais ganham mais de U$350 mil por ano. Então eles não possuem qualquer interesse em ter engajamento nestas atividades. O que acontece nos Estados Unidos é que as pessoas expressam sua irritação através de processos políticos, principalmente as eleições. Paradoxalmente, e por isso eu acho um pouco ruim, eles estão expressando isto através da rejeição dos que buscam os cargos administrativos na política, não importando se são republicanos ou democratas. Em muitos casos, suportam candidatos de direita que estão utilizando um red alert [expressão utilizada para uma “chamada de atenção”, originalmente utilizada para avisos de ataques aéreos iminentes] antipolítico. Assim, nos Estados Unidos, diferentemente de qualquer outro país, o descontentamento da classe trabalhadora – descontentamento popular –, está sendo direcionado à extrema direita. Vemos isso nas eleições primárias ocorridas na semana passada, onde houve candidatos que usam um red alert anti-Washington, e não oferecem uma solução social real. Na verdade, suas posições são geralmente mais de direita do que a do Obama, que representa, pode-se dizer, uma posição de centro-direita. Temos essas consequências, hoje, no que se refere ao euro. Você começa com uma crise no sul da Europa que se amplia para a União Europeia, vai além do domínio monetário e, por fim, acaba afetando os Estados Unidos.

Agora, a única ressalva é a discussão de se isto afetará a Ásia, que, nos últimos 18 meses, desenvolveu uma espécie de autonomia, diferente da vista nos Estados Unidos e Europa. A China ainda cresce, como a Índia, Coreia e Taiwan. A China está desenvolvendo laços com a América Latina, o que é um fator muito importante em países como o Brasil e a Argentina, para saírem da recessão de forma muito rápida por causa da dinâmica das novas parcerias entre a América Latina e a Ásia.

IHU On-Line - Em quais aspectos o modelo chinês pode indicar novos caminhos a partir da crise da moeda europeia?

James Petras - Bem, há varias coisas a serem ditas, tanto negativas quanto positivas, a respeito do modelo chinês. Primeiro, o modelo chinês demonstra que uma economia diversificada, especialmente arraigada no setor produtivo: indústria, agricultura e campos relacionados à construção e infraestrutura, tem claramente demonstrado sua superioridade em relação a um modelo centralizado no sistema financeiro. Em segundo, o modelo chinês demonstra que a atividade do mercado é muito mais eficaz na distribuição de recursos do que os estruturados sobre as forças armadas, como os Estados Unidos e seus aliados na Europa. Bem, os Estados Unidos estão gastando mais de um trilhão de dólares nas guerras do Afeganistão e no Iraque, e nos atritos bélicos com o Irã, Somália, Iêmen etc. Os chineses investiram mais de 130 bilhões de dólares no Irã, novos projetos na África e empreendimentos conjuntos com o Brasil. Então, vemos estes aspectos positivos do modelo chinês. O que há de negativo, e que está criando contradições sociais, é a ampliação da diferença entre as classes, entre os ricos e os pobres, entre a costa e o interior do país. E isso é o que está criando grande descontentamento, e sendo demonstrado em greves e mobilizações populares. A não ser que o governo chinês saiba lidar com a fragilidade da divisão social, verá que a estabilidade, que é necessária, ficará em perigo.

IHU On-Line - Se as economias britânica e europeia entrarem em colapso, quais os rumos da situação econômica e financeira mundial?

James Petras - Na verdade, não vejo um colapso em um futuro próximo. Eu vejo possibilidades de recessão e possibilidades de aumento nos conflitos sociais. Mas um colapso completo, penso que talvez ocorra em algum momento num futuro distante. Presumindo isto, acredito que haverá uma reorganização da política em um espectro bem polarizado entre a direita e a esquerda, com a direita utilizando um plano racista anti-imigrante, culpando os imigrantes pelos problemas, talvez até encorajando fomentos contra supostos inimigos. Mas eu penso que o problema central, em relação à direita, hoje, e as classes governantes, é o fato de que o elo fraco são os países do Leste Europeu, como Letônia e Romênia, que possuem 25% de desemprego, e estão propondo cortes de 30% nos salários e pensões, e onde um descontentamento está começando a aparecer. Fato semelhante se dá no Sul Europeu, em que a Grécia entrou num período de alto endividamento. Estas quitações são empréstimos, não são presentes ou doações. É impossível visualizar a Grécia quitando tais dívidas com os bancos do norte europeu. E esse é o ponto! Se os bancos não forem pagos, a Grécia terá que reorganizar todos os seus pagamentos ou optar pela inadimplência da dívida. E isto traria repercussões em toda a Europa e nos Estados Unidos.

O setor financeiro é o que pode detonar uma profunda crise econômica em um momento como este. E o problema da Grã-Bretanha é o excesso de déficit fiscal, o acúmulo de dívidas aparecendo. Inevitavelmente, haverá cortes realizados pelo novo governo de coalizão conservadora e liberal-democrata. Refiro-me a grandes cortes em saúde, educação e congelamento de salários. Acho que veremos uma renovação nas atividades sindicais da Inglaterra. Então, penso que estamos entrando num período de deterioração econômica na Europa. Paralelamente, haverá um pequeno boom nas exportações, causado pela desvalorização do euro. Exportações podem aumentar enquanto a crise financeira aprofunda, pelo menos por um curto prazo.

IHU On-Line - Os estados europeus de bem-estar social, tão afetados pelo endividamento e pelos déficits, serão capazes de resgatar suas finanças públicas e reformar suas economias sociais de mercado?

James Petras - Bem, a economia social de mercado está mais para o mercado do que para o social. Como mencionei anteriormente, houve ataques violentos à pensão, as idades mínimas para direito às pensões foram aumentadas, valores das pensões congelados, salários rebaixados, e os desempregados receberam ofertas de trabalho com salários bem menores do que os salários que ganhavam anteriormente. Portanto, está havendo uma regressão geral que piorou o estado de bem-estar social, ao invés de melhorá-lo. O que acho, e deve ser dito, é que o “mercado social”, que surgiu na década de 60 e se desenvolveu até os anos 90, está fazendo o sentido inverso.
A segunda coisa é que, quando se fala da recuperação econômica, acho necessário colocar, no contexto, que há uma enorme transferência de riqueza através destes subsídios às empresas privadas e, em contrapartida, uma certa dureza para com as empresas. Então temos uma substituição enorme, através da agência do governo, de income shares, de salários, a lucros, rendas, royalties etc. E este tipo de recuperação me lembra um pouco do que disse o General Médici: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Penso que devemos entender que o crescimento do capital, hoje, o mínimo que seja, está sendo amplamente financiado por uma batalha entre os salários e o bem-estar.

IHU On-Line - Quais as consequências sociais da redução do estado de bem-estar social? Qual sua análise de uma possível revolta social?

James Petras - As revoltas sociais hoje estão focalizadas em países específicos. Isso precisa ser enfatizado. Não há uma revolta social geral. Há muito protesto na Grécia, uma movimentação social latente na Espanha, em Portugal e no leste europeu, particularmente, na Romênia e na Letônia, onde há indicações de possíveis movimentações sociais. Temos que colocar isto dentro do contexto: estas são lutas defensivas [protetivas]. São lutas para manter o status quo. Os trabalhadores estão empenhados em movimentos massivos para evitar o regresso. Estas não são lutas ofensivas para levar adiante interesses de trabalhadores, mas são para defender os salários, padrão de vida, pensões, empregos etc. O paradoxo é que eles utilizam medidas radicais para manter o status quo. Os capitalistas estão utilizando medidas legais para destruir o status quo e impor regras exclusivamente capitalistas sobre estes países. Se, ao longo do tempo, esse processo continuar, é difícil de imaginar que não haverá uma radicalização das lutas, passando de protestos pacíficos para confrontos mais violentos. Mas isto deve ser pensado ao longo de um bom tempo. Devemos lembrar que estamos falando de décadas de adaptação entre capital e trabalho. Falamos de décadas em que trabalhadores e funcionários, especialmente funcionários públicos, trabalharam através dos partidos, negociações e barganha. Portanto, isso está incorporado na consciência e na ideia de revoluções. Revoltas não são parte desta atuação. É um processo gradual em que as formas antigas já não têm mais efeito, e as novas formas ainda têm que ser colocadas em prática.

IHU On-Line - Em que aspectos o fim da terceira via aponta na direção de uma possível transição para um esvaziamento da política?

James Petras - Penso que a terceira via já chegou ao seu limite, especialmente na Europa e particularmente onde tudo começou, na Inglaterra. Vimos a saída do Partido Trabalhista e o colapso bancário, do sistema financeiro. A terceira via não era realmente uma terceira via. Era uma forma de liberdade de mercado capitalista com aumento nos gastos sociais, sem a realização de mudanças estruturais. Então, quando a crise financeira veio, teve um impacto muito grande. Pois, incorporado à realização das políticas, estavam as ideias de que o sistema financeiro deveria ser poupado acima de tudo. Portanto, nada foi feito para alterar as estruturas. Como resultado disso, temos uma segunda onda de tentativas de resgate do setor financeiro à custa dos trabalhadores e dos sistemas produtivos. Portanto, temos, no resgate financeiro, uma situação de caráter desagradável para com o público. Acredito que a terceira onda de gastos sociais e de liberdade de mercado é um dilema. A liberdade de mercado não está funcionando, e os gastos sociais estão acabando. Na verdade, estamos tendo uma retratação dos gastos sociais. Portanto, a terceira via morreu na Inglaterra, talvez até na França e no restante do continente.

A terceira via na América Latina

Tendo dito isto, vejamos a América Latina e o que está acontecendo nela. A terceira via está muito evidente nas práticas de algumas novas formas de governo de classe média, com governos como Lula e Evo Morales, que são essencialmente desenvolvimentistas. Não são reformadores, mas governos concentrados em encorajar a maximização de investimentos privados, investimentos estrangeiros, capitalistas nacionais etc, e combinam isto com os gastos sociais, particularmente nos chamados programas sociais. Não tocaram em nenhuma estrutura fundamental, como as bancárias, industriais, agrominerais, mas reforçaram-nas e as ampliaram. Portanto, a terceira via está em atividade no Brasil e na América Latina, neste momento. Mas, ao mesmo tempo em que há grande ênfase em encorajar investimentos privados e gastos com programas sociais, mantém-se os salários baixos. A chave dos programas desenvolvimentistas é a estabilidade social através da exploração da classe trabalhadora para pagar os programas para os pobres, enquanto se incentiva o grande capital. A diferença da terceira via no Brasil e na América Latina, é que ela está menos dependente do sistema financeiro do que estava na Inglaterra e nos Estados Unidos. Portanto, há uma diferença na composição da parceria entre o Estado e diferentes tipos de capital. Mas a ênfase unilateral no capitalismo, crescimento e investimento está presente, ao mesmo tempo em que a ausência de qualquer redistribuição significativa do produto social é muito evidente.

IHU On-Line - Podemos relacionar o fim da terceira via e a ruína do trabalhismo inglês com o colapso das finanças públicas europeias? O que esses dois fatos dizem sobre uma mudança de paradigma econômico e social?

James Petras - Bem, nós já temos uma mudança. Há o colapso dos sistemas financeiros, orçamentos e um tremendo endividamento. Aqui podemos ter uma tentativa de criar um novo modelo em que o Estado possui um papel importante e crescente de regular a economia. Isto é, regular no sentido de restaurar as operações do sistema financeiro. As pessoas dizem que o Estado está mais envolvido agora do que esteve no passado, e isso é diferente. Mas temos que nos perguntar: que tipo de aumento na intervenção do Estado? Existe qualquer reequilíbrio da economia entre finanças e produção, indústria etc.? Não há qualquer reequilíbrio, mesmo nos Estados Unidos ou na Europa. Há mais intervenção do Estado, mais gastos estatais, mas estão sendo canalizados para as classes que criaram a crise. Nesta nova abordagem, temos capital financeiro do Estado como uma força motora. E nada tem realmente sido alterado em relação aos fundamentos. Ainda temos uma base econômica muito precária para qualquer tipo de renovação dos objetivos. E eu acho que o futuro do trabalho está apenas se direcionando no sentido de se tornar um desafio para os governos existentes. Quando digo governos, refiro-me aos liberais, conservadores, social-democratas, republicanos e democratas... Nenhuma destas opções demonstra qualquer capacidade de repensar o passado, e dizer: vejam, os modelos de desenvolvimento baseados no sistema financeiro: o turismo no sul, o bancário na Inglaterra, a dependência do financiamento das dívidas no leste europeu etc., não funcionam! Temos que repensar e voltar aos fundamentos da economia política, da necessidade de investimentos públicos, de propriedade pública, de maior grau de participação social na economia etc. Nada disto está nos planos. Acho que estes são planos futuros para a classe trabalhadora.

Leia mais...

James Petras já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:

• ''A esquerda não pode ser um mero salva-vidas do capitalismo''. Revista IHU On-Line, número 287, de 30-03-2009

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Lugarzo: Saramago o humanista

Saramago, na tradição humanista de Russell e Sartre

por Carlos Alberto Lugarzo, da Anistia Internacional (EUA)

Hoje, 18 de junho de 2010, a cultura universal e o humanismo tiveram seu dia mais aciago desde 15 de Abril de 1980, quando faleceu Jean-Paul Sartre, um dos intelectuais mais completos do século e um dos maiores ativistas da história. Foi anunciada a morte de José de Sousa Saramago, o mais celebrado escritor da língua portuguesa, pensador finíssimo e criativo, narrador original e intenso, a figura que fez a delícia de várias gerações de mentes sensíveis e progressistas.

Mas não tenho cacife nem faz parte de minha missão me referir ao grande mestre em sua qualidade de literato, filósofo e artista. Quero que esta nota (que deve ser breve, pela urgência de torná-la pública) se refira a seu aspecto mais importante: os direitos humanos.

Digo isto, porque, junto ou acima de sua lendária celebridade como escritor no mundo todo, nada foi mais importante que sua defesa da condição humana. Saramago não foi apenas um literato que expressou, através de sua arte, uma visão humanista e progressista do mundo. Foi um homem comprometido, um observador e um ator consciente e corajoso, um batalhador que assumiu riscos radicais, desde que emergeu, em sua juventude, de uma região do mundo dominada pelo fascismo e o obscurantismo, até anos recentes.

Diferente das outras duas figuras históricas com as quais possui grande afinidade, Sartre e Bertrand Russell (1872-1970), Saramago nasceu numa família que não provinha da burguesia intelectual francesa, nem, menos ainda, da nobreza britânica, mas de uma família de trabalhadores pobres que lutava contra a devastadora miséria das vielas da Freguesia de Azinhaga, e que se deslocou a Lisboa logo que fora possível.

Se Portugal foi um estado fascista até o começo da década de 70, podemos imaginar como se vivia naquele sofrido extremo da Europa quando Saramago se aproximava dos 15 anos, com a sangrenta imagem do falangismo espanhol batendo nas fronteiras de Portugal, e as atrocidades do Salazarismo em sua própria terra.

A vida de Saramago é pública e bem conhecida. Quero falar um pouco de minhas vivências sobre o grande escritor, a partir de minha condição de ativista dos Direitos Humanos.

No ano 1989, quando um grupo de garotos e meninas inexperientes tentou evitar uma quarta tentativa de golpe militar na Argentina, num esforço generoso de defender a democracia, os ativistas foram alvo de uma tocaia tendida pelo exército, onde muitos deles foram metralhados, queimados com bombas de napalm, e alvejados por bazucas. Mais de 40 foram capturados e submetidos a bárbaras torturas. A democracia não estava grata a seus defensores. Pelo contrário, aqueles infames e covardes politiqueiros odiavam esses jovens ingênuos que tinham estorvado o objetivo das máfias políticas argentinas: reconciliar-se com os militares para continuar a repressão pela via “legal”.

Este caso, chamado La Tablada, pelo nome da cidade onde foi tendida a cilada, é muito longo e complexo. Suas sequelas duraram até o ano 2000. Onze anos após o massacre, as vítimas que foram capturadas vivas e torturadas, estavam cumprindo, com sentença sem julgamento, penas que iam de 20 anos a prisão perpétua. Os corruptos juízes tinham entregado os documentos ao procurador militar, para que ele decidisse, mantendo longe os advogados da defesa, e proibindo a possibilidade de recurso. Durante o governo mafioso e neofascista de Menem (1990-1999), Argentina desobedeceu as exigências da CIDH da OEA (chefiada na época pelo grande mestre dos DH na América do Sul, Hélio Bicudo) de submeter a julgamento àquelas vítimas.

Em 2000, quando assumiu De La Rua, um bacharel ardiloso, as vítimas pensaram que teriam uma esperança. O novo presidente não era um terrorista de estado, como Menem, nem estava implicado em crimes contra a Humanidade como aquele; era apenas um moderado colaborador da direita que podia ser pressionado. A única alternativa dos jovens era morrer dignamente, e começaram uma greve de fome que, em total, durou quase três meses.

Foi então que soube da generosidade de Saramago. Não foi o único prêmio Nobel. Também, Rigoberta Manchu, Pérez Esquivel e outros colaboraram conosco. No entanto, o mais comovente foi sua humildade e objetividade. Ele escreveu uma carta ao Presidente De La Rua, quem deve ter tomado conhecimento do escritor pela primeira vez na vida.

Não lembro literalmente de todo o conteúdo, e não quero distorcê-la, mas lembro seu espírito e as primeiras linhas.

Ele dizia que um prêmio Nobel não tem nada de especial, mas, às vezes a sociedade distingue algumas pessoas, e isso torna a voz delas pessoas mais escutada que a de outras. Não era só modéstia. Era o sentimento profundo do valor relativo das premiações, que tanto deslumbram os buscadores de prestígio e os temperamentos preconceituosos.

Saramago lutou por essa e por muitas outras causas até o final, e é muito difícil avaliar numa rápida olhada quando lhe devem as causas nobres, progressistas e humanitárias ao longo de uma vida, primeiro, assombrada pelo fascismo tradicional, depois, pelo fascismo de mercado, e atualmente, pelo vandálico neoliberalismo.

E foram essas forças trevosas as maiores inimigas do afável e simples Seu José.

Saramago foi tortuosamente acusado de antisemita, por ter expressado, com uma isenção e serenidade alheia a quase todo o resto da esquerda (que generaliza o terrorismo de estado israelense a toda a ideologia sionista), um fato singelo e objetivo: não pode usar-se o pretexto de ter sofrido, para provocar o sofrimento dos outros.

Mas esta posição de crítica objetiva ao terrorismo israelense, o diferenciando do sionismo em geral, também compartilhada por Noam Chomsky e dúzias de intelectuais judeus e não judeus, não é seu principal gesto em defesa dos valores humanos.

Saramago desafiou forças muito mais intensas, ancoradas na península Luso-Ibérica desde os tempos dos reis visigodos, como a superstição e o nacionalismo. Neste último sentido, o escritor se definiu em favor de uma federação Espanha-Portugal, ressaltando a importância da fraternidade das nações e desprezando a ideia fetichista de que a pátria pode ter sentido independente dos habitantes. Ele voltava assim, as fontes mais puras do comunismo clássico, antes do chamado “nacionalismo de esquerda”.

Como Giordano Bruno, Galileu, Miguel Servet, Goya, e outras celebridades capitais na história do pensamento e da ação, Saramago foi alvo do ódio da Igreja Católica. Ao longo da vida cultural de Ocidente, foram poucos os pensadores que ousaram dizer, singelamente, que não existia nenhuma prova da existência de Deus, e que as pessoas acreditavam por diversas razões (entre elas, o temor).

Com efeito, até as mentes consideradas lúcidas, esmolavam moderação da crueldade doentia do Santo Ofício. A colocação de uma filosofia realmente humanista (que teve alguns traços nos hedonistas e céticos gregos) só conseguiu consistência com os mecanicistas franceses, e especialmente com as correntes que surgem do marxismo e do anarquismo.

Saramago se insere nesse grupo de vozes esclarecidas, modestamente seguras, sem empáfia nem alarde. Teve a seu favor o fato de ter vivido numa época em que as fogueiras da Inquisição parecem apagadas… ou amortecidas. Sua defesa do humanismo, seu espírito de tolerância, e seu reconhecimento da beleza de alguns textos teológicos (a despeito de seu vácuo conceitual) são únicos em nossa época. Compartilha com Sartre, Russell e Camus a desmistificação da sacralidade. Mas, Sartre expressa suas ideias não com o senso comum, mas com uma filosofia de compreensão árdua; Russell, como quase todo cientista, não atingiu a popularidade que consegue um artista ou um literato; e Camus, apesar de seu agnosticismo e humanismo, defende uma solução egoísta e individual, porque o homem que ele liberta encarna a luta pessoal e não a solidariedade.

Creio que Saramago está ainda em vantagem com Noam Chomsky, pois sua humildade e objetividade o conduzem a uma visão equilibrada do universo. Ele disse que a Bíblia é um “manual de maus costumes, [...] um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana”, mas nada há nisto que não possa ser demonstrado. Não é o produto de nenhuma parcialidade, mas do amor e preocupação por uma humanidade sadicamente ferida pelas trevas espalhadas pelas teocracias.

José Saramago nunca diminuiu seus esforços pela Humanidade, e os manteve ativos em quanto sua saúde física permitiu. Ninguém pode contra uma doença terminal, porque justamente, essa fragilidade faz parte de nossa natureza biológica. No ano passado tentei me comunicar com ele, para adicionar seu nome à lista de Prêmios Nobel e outras celebridades que pediram a libertação de Cesare Battisti. Não tenho dúvida de que ele teria aderido com entusiasmo. Mas, sem que eu soubesse, ele estava sofrendo os estragos finais da leucemia e meu e-mail não chegou a destino.

Ao transformar-se de novo a brilhante mente e a fina sensibilidade de José Samarago, num conjunto de células sem vida, as perdemos de maneira definitiva. Sabemos que nem um átomo de seu eu sobreviverá em lugar algum. Mas fica sua obra e sua lembrança para iluminar a noite do mundo supersticioso, racista e sanguinário que ainda vivemos.

domingo, 6 de junho de 2010

Robert Fisk: A verdade por trás da propaganda israelense

Publicado originalmente em 5/6/2010, The Independent, UK

Traduzido por: Caia Fittipladi

Eu também, claro, horrorizei-me ao ver homens armados abordando navios em águas internacionais, matando passageiros a bordo que tentavam resistir e em seguida sequestrando o barco e atracá-lo em porto nacional dos piratas sequestradores. Falo, claro, dos piratas somalis que agem em águas ocidentais no Oceano Índico. Como se atrevem, esses terroristas, a tocar em nossos barcos desarmados em alto mar? Temos todo o direito de enviar nossos navios de guerra, para impedir a ação desses terroristas.

Mas... ufa! Sorte, que os israelenses não cobraram resgate! Só querem que os jornalistas vençam, em nome deles, a guerra da propaganda.

A semana mal raiara, e “comandos” de Israel atacaram um barco turco que levava ajuda humanitária para Gaza e mataram nove passageiros. No final da semana, os que protestaram contra esse assalto já estavam convertidos em “ativistas pacifistas armados”, antissemitas pervertidos, que “professam o pacifismo, mas destilam ódio, atacando outros seres humanos com porretes de metal”. Gostei da parte ficcional. A evidência de que os seres humanos que se defenderam com barras de metal estavam recebendo tiros à queima-roupa foi varrida dessa estranha versão dos fatos.

Declaração de uma família turca, de que seus filhos haviam dito que queriam ser mártires – coisa que muitos membros de muitas famílias turcas diriam, se seus parentes fossem assassinados à queima-roupa por israelenses – foram convertidas em prova de que o barco turco conduzia jihadis.

“Naquele barco”, escreveu-me alguém nascido no Sri Lanka, “estavam minha sobrinha, meu sobrinho e a esposa. Infelizmente, Ahmed (meu sobrinho, 20 anos) foi ferido à bala na perna e está hospitalizado, sob custódia militar. Havendo notícias, escrevo.” E escreveu. Poucas horas depois, a imprensa cercou a casa da família na Austrália, perguntando se Ahmed seria jihadi – ou, talvez, potencial suicida-bomba. A propaganda funciona, vejam só.

Não vimos um bit de filme dos protestos, em todo o mundo, porque os israelenses confiscaram tudo. Ninguém explicou por que – se o barco turco conduzia gente tão perigosa – o terrível complô para ajudar os “terroristas” de Gaza não foi descoberto durante a longa viagem desde a Turquia, sequer quando o barco atracou noutros portos. Pois o professor Gil Troy da Universidade McGill em Montreal – em matéria publicada no raivoso e fanático Canadian National Post, é claro – ainda repetia esse lixo sobre “ativistas pacifistas armados”, na 5ª-feira.

Pessoalmente, a matança no barco turco não me surpreendeu. No Líbano, vi esses esquadrões da morte, simulacros de exército, em ação – simulacros de exército, como são também os esquadrões da morte (“grupos de elite”) dos exércitos árabes –, matando civis. Vi-os também, assistindo sem intervir ao massacre de palestinos em Sabra e Shatila na manhã de 18 de setembro (último dia da matança); naquela ação, foram substituídos pelos aliados viciosos das milícias libanesas, mais do mesmo. Eu os vi, em Qana, no primeiro massacre de palestinos por pistoleiros israelenses, em 1996; um dos pistoleiros, na imprensa israelense, chamou os 106 civis mortos de “Arabushim” (termo racista e ofensivo para “árabes”). Mais da metade dos mortos eram crianças. Pouco depois , o governo israelense de Shimon Peres (Prêmio Nobel da Paz!), disse que havia terroristas entre os civis. Mentira, mas... quem liga? E depois, veio o segundo massacre de Qana em 2006 e depois a matança de 1.300 palestinos no ataque de Israel a Gaza em 2008-09, e depois...

Ora, depois veio o Relatório Goldstone, que descobriu que o exército de Israel (e o Hamás) cometeram crimes de guerra em Gaza. Mas todos foram declarados antissemitas – o pobre respeitável juiz Goldstone, ele próprio judeu, além de renomado jurista sul-africano, massacrado também, e declarado “homem do mal” pelo abominável Al Dershowitz de Harvard. – E o relatório foi decretado “controverso” pelo bravo governo Obama. “Controverso”, em inglês, significa “fuck you”. Há dúvidas sobre o relatório. Negócio barra pesada.

Mas voltemos à nossa cronologia. Depois, houve o assassinado, pelo Mossad, de um dirigente do Hamás, em Dubai. Os israelenses usaram pelo menos 19 passaportes britânicos e de outros países, roubados e adulterados. Qual foi a patética reação do então secretário de Relações Exteriores da Grã-Bretanha, David Miliband? Disse que fora “um incidente”. Não o assassinato em Dubai, vejam só, mas a adulteração dos passaportes, assunto super “controverso”, claro. E depois... Aí está. Agora, nove pessoas foram assassinadas a tiros, no mar, por mais dúzia e meia de heróis de Israel.

O engraçado é que tantos jornalistas ocidentais – e incluo aqui a acovardada cobertura da BBC, do ataque aos barcos de ajuda humanitária – estão escrevendo exatamente como a maioria dos jornalistas israelenses. Ao mesmo tempo, muitos jornalistas israelenses escrevem, em Israel, com a coragem que se deveria esperar da ‘mídia’ ‘livre’. E escrevem lá, contra o exército israelense.

Vejam Amos Harel, no Haaretz[1], em matéria na qual analisa a formação do corpo de oficiais do exército de Israel. No passado, muitos saíam dos kibbutz de tradição socialista, de Telavive ou das planícies costeiras de Sharon. Em 1990, só 2% dos cadetes do exército eram judeus ortodoxos religiosos. Hoje, essa proporção já chega a 30%. Seis, dos sete tenentes-coroneis da Brigada Golani, são religiosos. Mais de 50% dos comandantes locais são religiosos “nacionais”, em algumas brigadas de infantaria.

Nada de mal, em alguém ser religioso. Mas – e embora Harel não destaque esse aspecto, apenas registre – muitos dos judeus ortodoxos apoiam a colonização da Cisjordânia e opõem-se à criação de um Estado palestino.

E os colonos ortodoxos são os que mais odeiam os palestinos, e querem tanto detonar qualquer chance de haver Estado palestino, quanto alguns oficiais do Hamás gostariam de detonar o Estado de Israel. Por ironia, foram os antigos oficiais do “velho” exército israelense, que estimularam os “terroristas” do Hamás a construir mesquitas em Gaza. Pretendiam contrabalançar, com mesquitas, o crescimento do “terrorista” Yasser Arafat, em Beirute. E fui testemunha de uma de suas reuniões. Mas a coisa continuará como sempre, a velha história, até que o mundo acorde. “Nunca vi exército mais democrático que o exército de Israel”, disse o infeliz filósofo francês Bernard-Henri Lévy, horas antes do morticínio.

É, o exército de Israel não tem rival, é a elite, é humanitário, heroico. Esperem só até os piratas somalis saberem disso!


[1] Ver “Has the IDF become an army of settlers?” [O exército de Israel converteu-se em exército de colonos religiosos fundamentalistas?], 6/6/2010, em HAARETZ.

sábado, 5 de junho de 2010

Hari: Quando mãos além-oceano são amarradas

Por Johann Hari

4/6/2010

Será que todos temos de nos calar contra agressões aos direitos humanos porque acontecem longe de nós, contra gente que não conhecemos, de cor diferente, cultura ou credo diferentes? Há movimento que diz que sim, crescendo no mundo; que qualquer torrente de solidariedade deveria ser cauterizada nas fronteiras nacionais.

O mundo é partilhado por diferentes culturas e uma não deveria olhar ou comentar criticamente a outra. Em vez disso, todos deveríamos “respeitar as diferenças”. Poderíamos criticar os nossos iguais, não o diferente, o estrangeiro, porque seria incomparavelmente diferente de nós. É o que se ouve hoje, de uma estranha associação de diferentes, tão diferentes entre si quanto o governo de Israel, ditadores e alguns multiculturalistas ocidentais – e todos trabalham hoje para tornar lei esse impedimento de criticar.

Consideremos por um momento como essas ideias se estão impondo em dois locais do mundo em que trabalhei como repórter: na Palestina/Israel e em Honduras.

Todo o mundo já sabe, sem dúvida possível, que a marinha de guerra de Israel cometeu um massacre, a tiros de metralhadora com mira a laser, em navio civil que navegava em águas internacionais e levava produtos de ajuda humanitária ao povo bloqueado por Israel em Gaza – dos quais autoridades israelenses disseram, jocosamente, que não estariam passando fome; Israel apenas os pusera “sob dieta rigorosa”. O barco que tentava chegar a Gaza levava filhos de sobreviventes do Holocausto, uma laureada com o Prêmio Nobel da Paz, além de comida, remédios, cimento para reconstruir casas destruídas na Operação Chumbo Derretido, de Israel contra Gaza, em 2008-9.

Alguns homens que viajavam nos barcos, ao perceberem que estavam sob mira de metralhadoras israelenses, pegaram o que encontraram, para defender-se e defender o barco, barras de metal, pedaços de pau. Um iemenita tirou da cintura sua faca jambarya que todos os iemenitas levam à cintura, de fato, desde crianças. E os comandos israelenses invadiram o barco, já atirando. O exército israelense divulgou fotos para “provar” que havia outras armas a bordo – fotos que todos já vimos pela internet incontáveis vezes, exatamente as mesmas, exibidas inúmeras vezes, sempre pra provar, as mesmas fotos, que “havia armas” num ou noutro lugar atacado por Israel. Em algumas das fotos exibidas ontem, se via até a datação eletrônica: 2003.

Mas quantos sabem que o governo israelense vem silenciosa e continuamente obstruindo a ação de organizações de direitos humanos dentro de Israel? Em todos os casos, são organizações de judeus que lutam para levar o país onde vivem para caminho menos doentio, mais seguro e mais saudável?

Israel abriga vários dos mais formidáveis movimentos pela paz que há no mundo – gente que aprendeu da história dos judeus e luta incansavelmente contra todos os abusos contra os direitos humanos que se cometem em seu país. Esses militantes pacifistas israelenses – como informa Daniel Sokatch, diretor do grupo pró-paz New Israel Fund – “enfrentam hoje violenta e persistente campanha para promover a discórdia e calar toda a comunidade dos direitos humanos dentro de Israel”.

Os ataques começaram em 2008. O governo de Israel e os militares recusaram-se a cooperar com as investigações da ONU sobre o ataque a Gaza no Natal e início do ano. Mas os grupos israelenses de defesa de direitos humanos insistiram em cooperar com os investigadores da ONU e cooperaram. Quando o Relatório Goldstone foi afinal publicado, assinado por juiz judeu, comprovou-se que a investigação acontecera, meticulosa a acurada, com farta documentação do que realmente acontecera; e também condenava o Hamás, pelos foguetes antiquados, que lançavam sem alvo, contra território israelense e várias vezes atingiram civis. Mas, em ver de dispor-se a examinar o que os governantes israelenses haviam feito, muitos cidadãos israelenses passaram a atacar o relatório e o autor; ouviu-se de várias fontes que o relatório seria obra de uma “5ª coluna”, jornalistas e colunistas de jornal que haviam “colaborado” com a ONU.

Os ataques – em que grupos de defesa dos direitos humanos foram pintados como demônios traidores infiltrados, ou corrompidos pelo Hamás – focaram-se num detalhe: aqueles grupos eram patrocinados ou recebiam ajuda financeira de governos europeus.

Esse ano, o governo israelense anunciou que esses patrocínios ou a ajuda financeira a esses grupos indicaria “inaceitável intromissão na autonomia de Israel”. Em audiência no Parlamento, um dos deputados que mais furiosamente criticara a ação dos grupos pacifistas perguntou: “Que direito têm eles de criticar o governo israelense?”

Aquele Parlamento israelense acaba de aprovar lei que impede todos os grupos não-governamentais de direitos humanos de receber um shekel, que seja, de governos estrangeiros, sob pena de perderem o status de isentos de impostos; e exige, sob penas legais, que se apresentem como agentes pagos por governos estrangeiros, cada vez que fizerem declarações públicas. Vários líderes desses movimentos foram presos e detidos incontáveis vezes. E há políticos em Israel hoje que querem limitar ainda mais a atuação dos grupos de direitos humanos em território israelense. Há aqui, claro, um ridículo, cômico paradoxo: Israel não existiria nem sobreviveria sem o dinheiro que chove lá, dos EUA. E ninguém cogita de proibir a entrada daquele dinheiro, sob o (mesmo) argumento de que implica inaceitável intromissão na soberania de Israel. (…)

No outro extremo do mundo, em Honduras, o mesmo argumento – gente de fora não pode criticar os “nacionais” – apareceu também. Há um ano, o presidente Manuel Zelaya foi sequestrado e expulso do país por claque de militares da extrema-direita, depois de cometer o imperdoável pecado de pensar em redistribuir, legalmente, uma pequena parte da riqueza da elite, para os mais pobres. Forjaram-se então eleições absolutamente ilegais, boicotadas por mais da metade dos eleitores. Hoje, os membros da organização pacifista não-armada Frente Nacional de Resistência Popular, estão sendo misteriosamente assassinados por todo o país, e também são assassinados os jornalistas que tentam denunciar os crimes.

São pessoas como Claudia Brizuela, jornalista, que mantinha um programa de tendência oposicionista, de esquerda, no rádio, assassinada com um tiro no rosto à frente dos dois filhos, de dois e oito anos. Porta-voz do governo hondurenho riu, ao ser perguntado sobre esse assassinato e disse que “a Resistência” mata seus membros, “para causar tumulto”. Críticos desses novos esquadrões da morte são descritos como “agentes de Hugo Chávez e Evo Morales”, governos estrangeiros que “não têm direito” de falar sobre Honduras.

Os mesmos argumentos pipocam nos lugares mais inesperados. Se escrevo em apoio aos direitos das mulheres muçulmanas em contextos de opressão, ou em apoio aos gays africanos, ou aos sindicalistas no Irã, logo vem o gás pimenta dos críticos, a clamar que eu não passaria de mais um “imperialista inglês”. Que nada sei da “nossa [deles] cultura”. Ele “não é muçulmano” nem “africano” nem “iraniano”. Há de tudo. Todos defendendo seus iguais contra os diferentes. São argumentos que, quase sempre, vêm de gente que se considera progressista, e que ficariam boquiabertos se descobrissem que estão usando argumentos idênticos aos da extrema-direita israelense e da ‘junta’ de generais hondurenhos.

Esse tipo de posição exagera ao absurdo as diferenças culturais.

Quando delegados de todo o mundo reuniram-se, imediatamente depois do Holocausto, para escrever a Declaração Universal dos Direitos do Homem, temiam que houvesse terrível dificuldade para definir os tais “direitos do homem”. Não houve dificuldade alguma.

Como logo se viu, as pessoas, em todos os cantos do mundo, aspiram a alguns direitos básicos – que em todas as culturas têm de ser defendidos contra um conjunto parecido de pessoas e interesses que se opõem à realização daqueles direitos, de fato, universais.

As diferenças culturais são muito menos importantes do que tantos ainda supõem. Nenhum ser humano quer ser torturado. Nenhum ser humano quer morrer de fome. Nenhum ser humano quer ser encarcerado sem julgamento e sem motivo. Mesmo em culturas em que esses atos são tornados ‘normais’ por alguns, as vítimas continuam a gritar e lutam. No momento em que a tortura começa, ou quando se fecha a porta da cela, todas as diferenças culturais desaparecem e só resta, da humanidade dos homens e mulheres, o desejo de recuperar a dignidade e a segurança roubadas. Isso é universal. Não há “cultura” na vítima de tortura, que a faça querer que a tortura prossiga.

Quem somos nós, então, para criticar governos de Israel ou Honduras? Somos pessoas que podemos – e devemos – nos opor aos crimes que aqueles governos cometem contra gente inocente. A isso se chama solidariedade.

É das poucas forças que ainda podem ajudar o povo de Gaza ou os dissidentes de Honduras, hoje. Em vez de nos fechar em nós mesmos, dentro de limites culturais e nacionais, temos, isso sim, de encher mais barcos e partir, levando comida, remédios e esperança a estranhos, completos estranhos, que sofrem.

Para ler o original, clique aqui: Johann Hari: When hands across the sea are tied

The Independent, UK

Tradução: Caia Fittipaldi

terça-feira, 1 de junho de 2010

Financial Times: Israel está perdida no mar

1 de junho de 2010

Israel is lost at sea

Editorial do jornal britânico Financial Times

Com o ato claro de pirataria de ontem, Israel deu um golpe na legitimidade de sua própria luta. A morte de ativistas a bordo dos navios capturados fez a forma como Israel defende sua segurança, que já deveria ter retornado aos limites das leis internacionais, ser jogada no território dos sem-lei.

Israel alega que os ativistas tinham ligações com grupos extremistas e que alguns atacaram soldados israelenses com facas e paus (e de acordo com alguns testemunhos com armas leves). Mesmo se for verdade, isso não justificaria a captura de navios civis carregando ajuda humanitária em águas internacionais, menos ainda o uso de força mortífera.

Ultrajante o comportamento, o verdadeiro ultraje é o bloqueio ilegal de Gaza [mantido por Israel]. Desde a guerra de janeiro de 2009 em Gaza, que expôs a determinação de Israel de destruir as capacidades do Hamas sem considerar os custos para palestinos inocentes, Israel e o Egito se juntaram para evitar a reconstrução do enclave. De acordo com as Nações Unidas, três-quartos da destruição não foram reparados e 60% das casas não tem alimentos suficientes.

O objetivo ostensivo é enfraquecer o Hamas, a vertente da Irmandade Muçulmana que governa Gaza (e cuja encarnação egípcia é a verdadeira oposição a Hosni Mubarak). Mas o bloqueio cujo objetivo é destruir [o Hamas], além de ser punição coletiva ilegal, apenas faz aumentar o apoio ao Hamas. Se Israel e o Egito pretendiam transformar Gaza em um pequeno estado governado pela máfia, teriam feito o que fizeram: acabar com as alternativas à rede de contrabando do Hamas, deixando a população ainda mais à mercê do movimento.

O Hamas engaja em terrorismo e ocasionalmente atira foguetes contra Israel, mas é um exemplo daquela espécie rara no Oriente Médio: um governo popularmente eleito. Também assinou a proposta de paz de 2002 da Liga Árabe e da Organização da Conferência Islâmica. Se for um blefe, é um blefe que Israel deve pagar para ver. É isso o que está em jogo. O governo de Israel tem pretendido que está pronto para negociar a paz, mas que não há ninguém para negociar do outro lado. O ataque aos violadores-do-bloqueio demonstra que o país caiu no desrespeito pela lei internacional, na intolerância com a dissidência e na sabotagem aberta de uma representação viável para os palestinos.

Israel sempre soube da importância de sua conduta ser julgada legal pelos principais poderes do mundo. Esses poderes — que tomam corpo no Quarteto e no Conselho de Segurança das Nações Unidas — devem deixar claro que Israel foi muito além.
Tradução do Viomundo

Uri Avnery: Israel: Um governo de piromaníacos põe fogo no Oriente Médio

Israel: Um governo de piromaníacos põe fogo no Oriente Médio

Por Uri Avnery, Gush Shalom [Bloco da Paz] Telavive (Press-release)
31/6/2010


“Só um governo que já tenha perdido toda a capacidade de se autoconter e toda a conexão com a realidade comete tal crime. Atirar contra ativistas pacifistas, agentes de obra de auxílio humanitário, de várias nacionalidades, tomá-los como inimigos e enviar força militar massiva, em águas internacionais, atirar para matar e matar, é inconcebível!”

“Ninguém no mundo acreditará nas desculpas e mentiras do governo de Israel e dos porta-vozes do Exército” – disse o ex-deputado Uri Avnery, do movimento “Bloco da Paz”. Os ativistas do “Bloco da Paz”, com vários outros grupos, reuniram-se hoje em Ashdod, Tel-Aviv, Haifa e Jerusalem.

Hoje é dia de desgraça para o Estado de Israel. Dia de ansiedade, em que os israelenses descobrimos que nosso futuro está entregue a um bando de alucinados, todos de armas engatilhadas, atirando sem qualquer senso de responsabilidade. Hoje é dia de desgraça e loucura e estupidez sem limites. Dia em que o governo de Israel enlameou o nome do país ante todo o mundo, juntou mais provas, a comprovar que a imagem de uma Israel brutal, agressiva, não é invenção de propaganda. Hoje Israel dá um passo gigantesco afastando-se dos poucos amigos que nos restam no mundo.

Sim, houve ato de provocação no litoral de Gaza. Mas os provocadores não foram os ativistas pacifistas convidados a vir à Palestina e que tentavam chegar. Provocação houve, isso sim, praticada pelos comandos armados e encapuzados dos barcos de guerra, a mando do governo de Israel, que, para bloquear o avanço dos barcos dos pacifistas, não vacilou em atirar para matar, e matar!

É hora de levantar o sítio que sufoca a Faixa de Gaza e que tanto sofrimento causa aos palestinos. Hoje, o governo de Israel arrancou a máscara da face – com as próprias mãos – e mostrou a verdade: Israel jamais “desengajou-se” de Gaza. Nenhum desengajamento há, se Israel bloqueia o acesso à área ou manda soldados com ordem para matar e ferir quem tente chegar a Gaza.

Pelos Acordos de Oslo, há 17 anos, o Estado de Israel comprometeu-se a permitir e estimular a construção de um porto de águas profundas em Gaza, pelo qual os palestinos pudessem importar e exportar livremente seus produtos e o que necessitassem comprar, para desenvolver livremente sua economia. É hora de cumprir o acordado e abrir o Porto de Gaza. Só depois que o porto de Gaza estiver aberto, para livre movimentação, como acontece nos portos de Ashdod e Haifa, então sim, Israel ter-se-á “desengajado” da Faixa de Gaza. Até lá, o mundo continuará – com razão – a considerar a Faixa de Gaza como território ocupado por Israel; e Israel, responsável pelo destino dos seres humanos que vivem lá.

Tradução: Viomundo