A história dos irmãos Petit é um caso emblemático, dos três que foram para a Guerrilha do Araguaia em 1970, até hoje apenas um foi encontrado
Cena 5: sobre Penélope e Antígona – Laura Petit tem 63 anos. Viu seus irmãos, pela última vez, em 1970. Viveu e vive a melancolia até hoje. Espera até hoje. Assim como Antígona, quer enterrar seus irmãos, para que eles não sejam obrigados a vagar durante um século às margens do rio dos Mortos. Como Penélope, que aguardava seu Ulisses, Laura espera a abertura dos arquivos da ditadura, espera respostas, e a punição dos responsáveis.
Eram em quatro: Lúcio, o mais velho, Jaime, ela e Maria Lúcia, a mais nova.
O pai deles morreu antes de Maria Lúcia nascer. Era administrador de uma fazenda de café perto de Jaú, no interior de São Paulo, quando um de seus capatazes o assassinou. A mãe, de então 28 anos, ficou viúva cedo e com quatro filhos pequenos.
Permaneceram por um tempo onde viviam, na fazenda que pertencera aos parentes da escritora Hilda Hilst, numa cidade hoje chamada Itapuí. A família do pai das crianças ofereceu à mãe uma casa que havia sido do avô delas, em Amparo. E para lá se foram, os cinco. Lúcio e Jaime, os mais velhos, fizeram o primário na cidade e Laura começou a estudar por lá. Moraram ali durante quatro ou cinco anos. Era uma casa enorme, com um quintal muito grande também. Clóvis, o quinto irmão, nasceu do segundo casamento da mãe.
“As lembranças são boas. Crescemos juntos, todos tínhamos quase a mesma idade.
Lúcio sempre se destacava, porque era muito inteligente, e a professora lá de Amparo ficava admirada. Ele surpreendia”, conta Laura. De Amparo, mudaram-se de novo, dessa vez, para Bauru, onde o avô materno administrava uma fazenda.
Ali, Lúcio começou a fazer o ginásio e a mãe, sozinha e sem apoio da família do pai, começou a ter dificuldade para manter os quatro filhos estudando. Decidiu: “os meninos vão continuar estudando e as meninas vão parar”. Mais tarde, escreveu para um tio das crianças que morava em São Paulo, que aceitou receber Laura e custear seus estudos.
Que nem a Emília – “Nas férias, eu reencontrava meus irmãos. Eu sentia falta, porque éramos muito unidos. Nessa fase que minha mãe passou dificuldade para comprar material escolar para quatro filhos, o Lúcio a ajudava. Tinha um esquema de escolher café em casa. Era trabalho doméstico infantil”. Laura ri quando conta que a mãe punha todo mundo numa mesa grande para tirar graveto e escolher o café. E recorda: “Uma coisa que foi o traço mais forte de Lúcio era o de sentir e perceber as diferenças. Um dia, estávamos na casa do meu avô em Amparo com relativo conforto, depois, estávamos passando necessidade. Ele teve que trabalhar ainda criança, ajudar a mãe a criar os irmãos. Com certeza, sentiu isso”.
Em Bauru, a família Petit morava perto da estação de trem, por onde passavam a pé na volta da escola. Lá, havia um armazém de cargas coberto, sob o qual paravam ciganos e “um pessoal que rodava o mundo”. Um dia, Lúcio viu um homem negro e muito, muito pobre, que levou para casa. Lá chegando, deu a ele um prato de comida, mesmo diante das dificuldades da família. Depois, buscou uma caixa de ferramentas e pegou um alicate para tirar, do sapato do homem, um prego que estava machucando seu pé. “Eu era bem pequena na época, mas aquilo ficou muito marcado em mim. O Lúcio era assim, solidário e fraterno com o sofrimento alheio. Em termos de caráter, tinha essa coisa de partilhar, de ser solidário, e, por isso, dá para entender porque mais tarde lutou contra uma ditadura opressora e por um mundo melhor onde todos fossem iguais”.
Laura estudava em São Paulo, Lúcio em Minas Gerais e Jaime no Rio, cada um na casa de um tio ou parente que aceitara custear seus estudos. Maria Lúcia e Clóvis, os mais novos, ficaram com a mãe em Duartina, cidade para a qual haviam se mudado recentemente. Nas férias, os três primeiros se encontravam em São Paulo, na estação da Luz, e tomavam o trem até lá, onde se reuniam com os irmãos menores e a mãe durante o mês inteiro, até a volta das aulas.
“Nessa época, na escola, as professoras falavam que a Maria Lúcia era muito crítica. Ela lia e discutia muito. Meus irmãos, que vinham de fora, traziam as discussões para dentro de casa. Ela leu a coleção do Monteiro Lobato inteira e era ‘perguntadeira’ que nem a Emília”.
Pela última vez – Mais tarde, com Lúcio e Jaime formados em engenharia, Laura cursando ciências sociais e Maria Lúcia tendo acabado a escola, os quatro juntaram-se outra vez em São Paulo. Mas não por muito tempo. Lúcio e Jaime tornaram-se militantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em 1967. Maria Lúcia entrou para o partido ainda como estudante secundarista.
Em 1968, Jaime, que havia sido preso por alguns dias por conta do 30º Congresso da UNE e fichado pelo Dops, foi chamado para depor. “Já havia muita repressão. Ele ficou com medo de ser interrogado e preso, então, a partir daí, entrou na clandestinidade. Ele não veio para nossa casa, porque podia ser procurado”.
Mais tarde, Laura ficaria sabendo que ele se hospedara na casa de uma tia-avó, na zona Norte paulistana. As filhas dessa tia-avó contaram que haviam sido recomendadas a não comentar com ninguém que ele estava lá. “Ele só saía à noite, para reuniões. Foi aí que o partido o mandou para o interior, mas não podia nos dizer onde por questões de segurança”.
Quando Jaime ia a São Paulo para reuniões, visitava a irmã. Não podiam trocar cartas, mas, mais tarde, Laura soube que ele morou em Goiás. Os três Petit foram para o Araguaia, para a região onde seria instalada a guerrilha, em princípios de 1971. Laura os viu pela última vez, em datas distintas, em fins de 1970.
Maria Lúcia ainda não estava clandestina quando foi para o Araguaia. Trabalhava com Laura em uma escola municipal. “Prestamos os primeiros concursos da Prefeitura para o cargo de professora. Ela tinha acabado de sair da escola e passou. Foi efetivada e escolhemos o mesmo lugar para trabalhar. Ela queria ainda estudar medicina, tinha muitos planos, mas, depois, a vida a levou para outro lado. As coisas mudaram”, conta.
Cena 6: a ditadura que não era branda – Maria Lúcia deixou São Paulo no começo de 1970, e Lúcio, no final do mesmo ano. Ele tampouco estava clandestino: trabalhou como engenheiro até partir. No período de preparação da guerrilha, Maria Lúcia, frequentemente doente de amidalite, fez uma operação e se preparou como pôde. “Eu sabia que ela ia para algum lugar, mas não sabia para onde”, conta Laura.
Sua irmã se despediu no começo de 1970, mas voltou em dezembro, para as festas de fim de ano. “Ela ficou alguns dias na minha casa e, depois, visitou nossa mãe em Bauru. Veio para reuniões do partido. Na noite do reveillón, as irmãs se juntaram “ao pessoal da USP” e foram para o samba no Camisa Verde e Branco, na Barra Funda.
“Nessa época, eu estava grávida, meu filho nasceria em fevereiro. Na hora de se despedir, Maria Lúcia disse: ‘ainda bem que eu não vou conhecer meu sobrinho, seria uma pessoa a mais para sentir saudades lá’”. E se foi mais uma vez. E, mais uma vez, Laura não sabia exatamente para onde. Só sabia que era um lugar quente e com muitos insetos: “quando ela veio, estava muito morena de sol e tinha picadas de pernilongo pelo corpo inteiro”.
A partir de então, Laura não tinha mais contato direto com os irmãos. “Um mensageiro trazia as cartas, eu respondia, e ele as levava de volta. Eu não sabia onde estavam, não tinha nenhuma dica. Esse mensageiro era da direção do partido. Eu o conhecia como Antônio”.
O Exército chegou ao Araguaia em abril de 1972. “Ele nos trouxe a notícia. Não era o momento exato, mas a guerrilha havia começado”. Ainda estava em fase de preparação, mas fora descoberta. Antônio explicou que era difícil circular pela região. Laura ficou sem notícias dos irmãos, mas, agora, sabia onde eles estavam.
“Em 73, vi em um jornal pendurado em uma banca com uma foto imensa estampada na capa: Antônio estava morto. Eram aquelas versões inventadas: tentativa de fuga, morto em confronto com a polícia ou outras alegações do gênero. Já sabíamos que não teríamos mais sequer as notícias dele. A partir daí, ficamos sabendo que Antônio era Carlos Nicolau Danielli, dirigente do PCdoB”. Ele havia sido morto sob tortura, no DOI-Codi.
Sofrer em silêncio – “Pegamos todos os documentos do partido, fotos dos meus irmãos, o jornal A Classe Operária e meu marido levou numa ponte do Tietê e jogou tudo rio abaixo. Como o Antônio vinha em casa, a qualquer hora poderiam aparecer. Foram livros do Marx, do Lênin e tudo que era considerado ‘subversivo’”.
Laura ficava preocupada com a falta de notícias. “Em fins de 1968, depois de decretado o Ato Institucional número 5, o AI-5, a ditadura nunca foi ‘ditabranda’. A situação estava feia. Pode ter sido branda para quem ficou assistindo televisão, que veiculava as propagandas do governo do tipo ‘este país vai pra frente’ ou ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Para quem sentiu na pele a repressão, sabe que de branda a ditadura não teve nada”.
Em 1973, Laura foi visitar a mãe em Bauru. Quando voltou, seu marido disse que tinha uma notícia muito ruim. Contou que havia encontrado Regilena de Aquino. Ela, que também havia participado da guerrilha, mas que estava de volta, pois havia se entregado ao Exército, fora casada com Jaime, seu irmão.
Regilena havia contado com detalhes que Maria Lúcia estava morta. Ela fora à casa de um camponês do Araguaia, seu “compadre”, João Coioió, que lhe havia comprado mantimentos. Maria Lúcia se tornaria madrinha de seu filho. Combinou de ir à casa logo cedo, com mais dois companheiros, Miguel Pereira dos Santos, conhecido como Cazuza, e Rosalindo de Souza, vulgo Mundico, que a ajudariam a carregar os mantimentos. Quando estava chegando, recebeu um tiro na altura da bacia e outro na cabeça. Os militares estavam na casa e a executaram assim que ela se aproximou. Seus companheiros conseguiram escapar.
Laura conta que, no momento em que soube da morte da irmã, teve que ficar calada. Sofria em silêncio e chorava às escondidas. Não podia compartilhar seu luto nem contar da morte da irmã aos amigos mais próximos.
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