12 de agosto de 2010 às 15:30h
Cena 3: dona Gertrudes ou “é ele, é ele!”
Quando o filho de dona Gertrudes morreu, ela começou a se interessar em saber mais sobre a sua luta. Já senhora, foi estudar direito e leu todos os livros que pôde sobre a esquerda brasileira. Saiu atrás das pessoas que conheceram seu filho e que com ele militaram. Soube da participação de Frederico Eduardo Mayr na ALN, descobriu que ele foi treinar guerrilha em Cuba e que voltou como militante do Molipo.
Dona Gertrudes participou ativamente da luta dos familiares de mortos e desaparecidos. Conseguiu localizar os restos mortais de Frederico (na vala comum do cemitério Dom Bosco, no bairro paulistano de Perus), pois haviam documentos que atestavam sua morte e o local onde ele havia sido enterrado.
“Dona Gertrudes era capaz de dizer quando seu filho havia sido preso, onde e quem o prendeu, sabia de tudo, mas dizia que, até o dia de enterrá-lo, toda vez que chovia à noite e uma porta ou janela batia, pulava da cama e corria para a porta dizendo ‘é ele, é ele!’”. Quem conta a história é o ministro Paulo Vannuchi. Mayr foi morto sob tortura no DOI-Codi em 1972. Foi enterrado, no Rio de Janeiro, somente 20 anos depois.
“Esse é o tema da espera que gosto de colocar em todas as conversas que tenho, posso ter e terei ainda com o [ministro da Defesa Nelson] Jobim e com chefes militares”. Vannuchi afirma que não entra na discussão da punição dos torturadores. Não diz que não, nem que sim, mas, se o pressionam muito, acaba confessando ser a favor de punir, sim. “Não que punir seja necessariamente enfiar na cadeia, porque significaria enfiar na cadeia octogenários”. Mas defende que essa discussão é tema do Judiciário. O presidente Lula já avisou: o Executivo não entra no debate sobre punição.
“Lula insiste em que eu coordene o trabalho de apoio às famílias, para localizar todas as informações, arquivos e, sobretudo, os corpos. Porque os corpos constituem um problema limiar de uma ideia de barbárie. Essa espera eterna se constitui numa manutenção da violação dos direitos humanos, numa manutenção do crime. A ocultação de cadáveres não está protegida por nenhuma lei de anistia”, diz Vannuchi, que acrescenta: “Às vezes, as famílias se irritam e dizem: ‘temos de obrigá-los a falar onde estão os corpos’.Vamos obrigar com 110 ou 220 volts? Não tem pau de arara, não tem cadeira elétrica. Não tem como obrigar ninguém, o esforço agora é de convencimento. E, nesse sentido, o convencimento é muito difícil quando a imprensa e setores conservadores não ajudam a reforçar esse consenso necessário e nacional de que não queremos discutir quem ganhou ou quem perdeu. Vamos dizer que o Brasil perdeu”.
Narrativa e reconstrução
O regime ditatorial sufocou a cultura, a manifestação, o pensamento, a juventude. Matou e torturou. “Eles vão dizer que, se não houvesse isso, haveria uma ditadura comunista pior ainda”. Para Vannuchi, esse não é o ponto. “Continuemos pensando diferente, vamos debater isso no voto, na universidade. O problema é que não dá pra dizer que o assunto terminou, que está encerrado”.
Segundo ele, não adianta colocar uma pedra em cima. “É preciso acabar com a ocultação de cadáveres e, se não houver cadáver, é preciso construir uma narrativa oficial, formal, com um pedido oficial de desculpas feito pelo presidente da República e pelo ministro da Defesa, ou os chefes das três armas”.
Vannuchi cita o caso de Ulysses Guimarães. Até hoje, não encontraram seu corpo. Porém, há uma reconstituição do acidente. Ele estava em um helicóptero, sobrevoando o mar de Angra dos Reis no dia 12 de outubro de 1992. A aeronave caiu no oceano – a hora exata do acidente pode ser informada –, foram detectados os problemas que a fizeram cair e foram encontrados os corpos de todos os outros passageiros à bordo: sua mulher, o senador Severo Gomes e esposa, e o piloto.
A narrativa e a reconstrução do momento permitem afirmar que, mesmo sem terem achado o corpo, ele está morto. Sem o corpo e, pior, sem a narrativa e a certeza da morte, resta a dúvida: “e se fulano foi torturado até perder a consciência, teve uma amnésia e está encostado em um asilo ou abrigo?”, indaga o ministro.
“A narrativa é importante para encerrar esse processo de espera que se caracteriza como crime continuado e violação de direitos continuada. Essa incerteza, essa angústia, produz situações como a de dona Gertrudes. Tem que haver uma narrativa. Sem ela, não existe nenhuma certeza. E sem a certeza, os familiares não podem processar o luto. Isso tem que acabar, os familiares de desaparecidos não podem legar aos seus filhos essa espera”.
Cena 4: o ritual necessário ou a travessia de Caronte
O ministro sabe o que está dizendo. Segundo Carl Gustav Jung, um dos “pais” da psicologia analítica, para lidar com o imponderável, de nada adianta ao homem seu pensamento lógico e sistematizado que explica o mundo. Em situações em que o desconhecido, o incompreensível e o inexprimível estão envolvidos (no caso, o desaparecimento de familiares), a instância simbólica se compõe como a única solução. Apenas os rituais permitem ao homem, de alguma forma, participar do fenômeno e vivenciá-lo de fato.
A busca incansável dos familiares pelos corpos dos desaparecidos está ligada à instância simbólica. Racionalmente, há muito pouca diferença entre ter ou não o corpo, a prova concreta dessas perdas. Simbolicamente, no entanto, isso representa muito mais do que uma prova; o corpo sem vida é a passagem para o que Jung chamou de participação mística, que permite à pessoa enlutada transformar o momento de dor e melancolia em verbo, significá-lo, fazê-lo acontecer.
Por isso, a situação dos familiares de desaparecidos políticos, de nutrir uma esperança sobre a morte, é pior do que o luto, “uma tristeza inteira”. Aquilo que não pode ser definido e não pode ser falado, não se concretiza. Somente a simbolização poderia fazer essa ponte, o que, nesse caso, só poderia ocorrer com um enterro dos corpos ou restos mortais dos desaparecidos. Os familiares se certificariam de sua perda e concretizariam a morte, pondo fim à eterna angústia da incerteza.
A necessidade de rituais fúnebres está tão arraigada no imaginário da humanidade que já existia na mitologia grega. O barqueiro Caronte tinha a função de atravessar as almas para a outra margem do Aqueronte, o rio dos Mortos. Porém, só transportava as dos que tinham tido seus corpos devidamente sepultados.
Segundo essa lenda, as almas dos que não haviam sido sepultados não podiam atravessar o rio, e estavam condenadas a vagar pela margem do Aqueronte durante 100 anos.
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