Na imensa maioria das vezes, a África é retratada também como um continente miserável, repleto de doenças, perdido, que só existe para comover de quando em vez o Ocidente a se mobilizar em campanhas humanitárias e socorrer os africanos da fome, da AIDS, deles mesmos.
Eu vivi muitas experiências impressionantes ao visitar apenas 4 dos seus 53 países. Em todos eles pude constatar o que estudo há mais de 20 anos: existe uma imensa diversidade e riqueza de povos e culturas em cada um dos países visitados. E apesar de alguns destes serem de fato pobres por continuarem sendo sangrados por países desenvolvidos em conluio com elites políticas e econômicas africanas; apesar de alguns não contarem nem mesmo com a presença de rios; apesar das secas, da fome e da aids; apesar de golpes e tentativas de golpes, as pessoas continuam a tocar suas vidas e muitas delas fazem uma diferença imensa nos lugares onde vivem.
A África também é retratada como um continente 'sem história', visto como se seus habitantes vivessem parados no tempo. Entretanto, a simples experiência de visitar qualquer país africano, viajar pelo seu interior, nos lugares mais ermos, é suficiente para percebermos que este talvez seja o mito mais absurdo que persiste em relação aos países africanos e seus habitantes.
É um mito na medida em que ele se sustenta na nossa percepção cristalizada do que seja tradição. Precisamos considerar que a tradição, como qualquer aspecto da cultura, é algo que se constrói e se reconstrói continuamente, e mais, manter 'tradições' não significa viver em oposição à tecnologia.
Em uma das minhas viagens ao continente, percorrendo o interior de Moçambique (nossa equipe cruzou o país de norte a sul de automóvel), nosso motorista/guia se perdeu. Nem o GPS do automóvel foi capaz de nos dar a direção. Encontrávamos, assim, à noite, num breu imenso. Dava apenas para ouvir o barulho do mar, embora não soubéssemos a que distância estávamos dele. Tínhamos de dormir, armar as barracas, mas precisávamos de autorização que, para nossa sorte, foi concedida pelo administrador da fazenda de cocos que apareceu para averiguar o que fazíamos ali.
Enquanto nos alimentávamos e arrumávamos nossas barracas, o celular da equipe tocou. Era a minha filha ligando de São Paulo, capital, e eu consegui falar com ela! Pensem, meu celular muitas vezes não funciona na parte debaixo do sobrado onde vivo, no escritório da produtora onde trabalho na maior e mais rica cidade do Brasil e eu estava em Moçambique, nas proximidades de Quelimane, no que há cerca de 50 anos havia sido o maior coqueiral do mundo, na beira do Índico e consegui falar com a minha filha! O celular pegava numa região sem energia elétrica e água encanada.
Não é raro você estar em uma região no continente africano sem água encanada ou energia elétrica, em que as pessoas dançam e cantam em suas cerimônias sagradas ou profanas, em que as mulheres pilam seus grãos, vestem suas capulanas (esse é o nome dado em Moçambique para os panos coloridos usados por mulheres africanas de vários países de norte a sul do continente, que são importados até de Dubai ou produzidos em alguns países africanos, respeitando o gosto dos padrões de cada povo que os consome) e topar com aparelhos celulares, ipods e outros aparelhos eletrônicos.
Se não sabemos, por exemplo, que a capulana que veste uma Mbuti na Floresta de Ituri, na República Democrática do Congo, veio de Dubai, ao ver os pequenos Mbuti caçando, poderíamos facilmente achar que esse povo- coletor e caçador e uma das culturas humanas mais antigas no planeta Terra- parou no tempo.
Mas o que parou no tempo foram os nossos preconceitos, no sentido que criamos uma imagem cristalizada sobre o outro, seja este outro um povo que vive distante de nós, ou um grupo social que vive lado a lado conosco, mas que não faz parte de nossa classe, etnia ou outra diferença que nos separa.
É um pouco desta experiência de descobertas e de revisão de seus próprios preconceitos que a atriz multimídia Regina Casé fala no TED/SP. Ela fala sobre diferença, ou melhor, sobre o direito à diferença, tema tão bem trabalhado pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos.
Regina, no vídeo abaixo, explica que os considerados 'diferentes' cultural e socialmente podem ser tão bons quanto os estabelecidos como 'tradicionais'.
Suas viagens pelas periferias brasileiras visitando o funk carioca ou o forró eletrônico, assim como conhecendo manifestações culturais das periferias de outros países como México, França, Angola, Moçambique... lhe ensinaram que nossa ignorância em relação ao mundo é grande, perversa, excludente e eu diria, burra, porque nos impede de enriquecer nossa própria cultura.
No projeto “Minha Periferia é o Mundo”, Regina mostra que o diferente, ou independente, também produz ideias que merecem ser compartilhadas. E mais que isso, merecem ser legitimadas como projetos de sucesso que geram renda e qualidade de vida para as pessoas.
Para terminar, fiquem com a imperdível Chimamanda Adichie. A fala desta escritora nigeriana também foi proferida no TED Global em julho de 2009. Ela nos conta sobre o perigo da história única, ou seja, uma história construída na base de estereótipos que reduz as diferenças, não raramente de modo pobre e profundamente preconceituoso, mostrando um povo como uma 'coisa', como uma única 'coisa'.
Esta história única repete-se infinitamente e acaba por nos convencer que não há interesse em conhecer o outro, porque ele não tem nada a nos dizer.
É impossível falar de história única sem falar do poder. Chimamanda usa para definir a estrutura de poder no mundo o termo 'nkali', segundo ela:
"Nkali é um substantivo que livremente se traduz por 'ser maior que outro'. Como os nossos mundos econômico e político também as histórias se definem pelo princípio do nkali.
Como as histórias são contadas, quem as conta, quando são contadas, quantas são contadas, tudo isto está associado ao poder. O poder é a capacidade de não só contar a história de outro(a) pessoa/grupo/povo/lugar mas de torná-la a história definitiva desse(a) pessoa/grupo/povo/lugar. É assim que a história única torna-se uma poderosa criadora de estereótipos. "E o problema dos estereótipos não é eles serem mentira, mas eles serem incompletos".
São eles que transformam uma história particular em uma única história para todos, sem diferenciações, sem complexidade, sem contradições. A história única rouba, assim, a dignidade das pessoas, dos grupos, dos povos e torna difícil partilhar o reconhecimento de nossa humanidade.
As histórias (no plural) importam. Muitas histórias importam. As histórias, especialmente a história única produzida e recontada sobre povos com poder sobre os povos sem poder de contar as suas próprias histórias, têm sido usadas para desprover e tornar o 'outro' maligno. Mas as histórias 'balanceadas', com diferentes pontos de vista, podem também 'ser usadas para empoderar e para humanizar'.
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