" Ainda é cedo para se falar em um colapso para o futuro próximo, mas os conflitos sociais e a recessão tendem a aumentar nesse continente e no mundo após a crise do euro, pontua o sociólogo James Petras. China e Brasil emergem como potencialidades nesse cenário. "
Reproduzido da Revista IHU
James Petras é professor emérito de Sociologia na Universidade Binghamton, em Nova York. Cursou a graduação na Universidade de Boston e o doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley. É autor de mais de 62 livros, publicados em 29 línguas, entre os quais citamos A mudança social na América Latina (2000), Globalização: O imperialismo do século XXI (2001), Sistema em crise (2003) e Multinacionais Trial (2006). Entre 1973 e 1976, foi membro do Tribunal Bertrand Russel sobre a repressão na América Latina. Atualmente, escreve uma coluna semanal para o jornal mexicano, La Jornada.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as perspectivas apontadas pelo governo Obama diante deste cenário de crise do euro?
James Petras - Em primeiro lugar, penso que é importante lembrarmos que a globalização significa integração de todas as economias, pelo menos as que estão profundamente incorporadas no mercado mundial. Assim, tudo aquilo que acontece na Europa, particularmente a crise do euro, afeta fundamentalmente os Estados Unidos de diversas maneiras. Afeta a capacidade dos exportadores americanos competirem com os europeus, pois o baixo preço do euro torna os exportadores europeus muito mais competitivos. Inevitavelmente, se o euro cria uma crise de grande proporção, também afeta os Estados Unidos, que investiram pesado na Europa, particularmente nas linhas de crédito imobiliário. Dessa forma, a crise espalha-se do sul da Europa para o norte, e do norte europeu para os Estados Unidos, levando a uma “recessão dupla” (Double dip recession), que é a reversão da recuperação, que tem demonstrado alguns sinais, retornando a uma recessão, a um crescimento negativo.
Uma terceira coisa é que já estamos percebendo, nos Estados Unidos e no norte da Europa, mas, particularmente, na Grécia, Espanha e Portugal, um processo de reversão dos ganhos sociais. Isso é um efeito dominó em que as tentativas dos governos para impor o custo da crise na classe trabalhadora, nos sindicatos, causam um efeito profundo nos padrões de vida. Eu não consigo ver como isso pode não acabar aumentando os conflitos sociais. Agora, os principais conflitos estão nas áreas diretamente afetadas. Na Grécia, há uma greve geral afetando em torno de 60% do efetivo, 90% do efetivo público em Atenas, e já atingiu o setor privado. Essa é a expressão militante mais visível de uma rejeição intensa.
Autoritarismo capitalista
Na Espanha, há sinais de greve geral. Em Portugal os sindicatos rejeitaram o plano de Sócrates , de cortes nas áreas sociais. E eu acho que há uma possibilidade de que, de acordo com os desdobramentos de programas como estes, no restante da Europa, as relações de capital de trabalho serão afetadas num futuro não tão distante. Além disso, virtualmente, não há sindicatos nos Estados Unidos. Temos 93% de trabalhadores no setor privado que não são filiados a sindicatos, e os sindicatos do setor público são legalmente proibidos de aderirem a greves. Então, virtualmente, não há resistência organizada contra estes programas nos Estados Unidos. É muito similar a um modelo autoritário, onde o capital faz o que bem entende, o governo faz o que bem entende. A manifestação nos Estados Unidos é muito confusa. É feita de forma que o descontentamento social não se expressa muito em um protesto social ou movimentos em massa. Porque o que temos de organizações trabalhistas é dirigido por milionários dirigentes dos sindicatos. Eu não sei se vocês sabem aí no Brasil, mas praticamente todos os líderes sindicais ganham mais de U$350 mil por ano. Então eles não possuem qualquer interesse em ter engajamento nestas atividades. O que acontece nos Estados Unidos é que as pessoas expressam sua irritação através de processos políticos, principalmente as eleições. Paradoxalmente, e por isso eu acho um pouco ruim, eles estão expressando isto através da rejeição dos que buscam os cargos administrativos na política, não importando se são republicanos ou democratas. Em muitos casos, suportam candidatos de direita que estão utilizando um red alert [expressão utilizada para uma “chamada de atenção”, originalmente utilizada para avisos de ataques aéreos iminentes] antipolítico. Assim, nos Estados Unidos, diferentemente de qualquer outro país, o descontentamento da classe trabalhadora – descontentamento popular –, está sendo direcionado à extrema direita. Vemos isso nas eleições primárias ocorridas na semana passada, onde houve candidatos que usam um red alert anti-Washington, e não oferecem uma solução social real. Na verdade, suas posições são geralmente mais de direita do que a do Obama, que representa, pode-se dizer, uma posição de centro-direita. Temos essas consequências, hoje, no que se refere ao euro. Você começa com uma crise no sul da Europa que se amplia para a União Europeia, vai além do domínio monetário e, por fim, acaba afetando os Estados Unidos.
Agora, a única ressalva é a discussão de se isto afetará a Ásia, que, nos últimos 18 meses, desenvolveu uma espécie de autonomia, diferente da vista nos Estados Unidos e Europa. A China ainda cresce, como a Índia, Coreia e Taiwan. A China está desenvolvendo laços com a América Latina, o que é um fator muito importante em países como o Brasil e a Argentina, para saírem da recessão de forma muito rápida por causa da dinâmica das novas parcerias entre a América Latina e a Ásia.
IHU On-Line - Em quais aspectos o modelo chinês pode indicar novos caminhos a partir da crise da moeda europeia?
James Petras - Bem, há varias coisas a serem ditas, tanto negativas quanto positivas, a respeito do modelo chinês. Primeiro, o modelo chinês demonstra que uma economia diversificada, especialmente arraigada no setor produtivo: indústria, agricultura e campos relacionados à construção e infraestrutura, tem claramente demonstrado sua superioridade em relação a um modelo centralizado no sistema financeiro. Em segundo, o modelo chinês demonstra que a atividade do mercado é muito mais eficaz na distribuição de recursos do que os estruturados sobre as forças armadas, como os Estados Unidos e seus aliados na Europa. Bem, os Estados Unidos estão gastando mais de um trilhão de dólares nas guerras do Afeganistão e no Iraque, e nos atritos bélicos com o Irã, Somália, Iêmen etc. Os chineses investiram mais de 130 bilhões de dólares no Irã, novos projetos na África e empreendimentos conjuntos com o Brasil. Então, vemos estes aspectos positivos do modelo chinês. O que há de negativo, e que está criando contradições sociais, é a ampliação da diferença entre as classes, entre os ricos e os pobres, entre a costa e o interior do país. E isso é o que está criando grande descontentamento, e sendo demonstrado em greves e mobilizações populares. A não ser que o governo chinês saiba lidar com a fragilidade da divisão social, verá que a estabilidade, que é necessária, ficará em perigo.
IHU On-Line - Se as economias britânica e europeia entrarem em colapso, quais os rumos da situação econômica e financeira mundial?
James Petras - Na verdade, não vejo um colapso em um futuro próximo. Eu vejo possibilidades de recessão e possibilidades de aumento nos conflitos sociais. Mas um colapso completo, penso que talvez ocorra em algum momento num futuro distante. Presumindo isto, acredito que haverá uma reorganização da política em um espectro bem polarizado entre a direita e a esquerda, com a direita utilizando um plano racista anti-imigrante, culpando os imigrantes pelos problemas, talvez até encorajando fomentos contra supostos inimigos. Mas eu penso que o problema central, em relação à direita, hoje, e as classes governantes, é o fato de que o elo fraco são os países do Leste Europeu, como Letônia e Romênia, que possuem 25% de desemprego, e estão propondo cortes de 30% nos salários e pensões, e onde um descontentamento está começando a aparecer. Fato semelhante se dá no Sul Europeu, em que a Grécia entrou num período de alto endividamento. Estas quitações são empréstimos, não são presentes ou doações. É impossível visualizar a Grécia quitando tais dívidas com os bancos do norte europeu. E esse é o ponto! Se os bancos não forem pagos, a Grécia terá que reorganizar todos os seus pagamentos ou optar pela inadimplência da dívida. E isto traria repercussões em toda a Europa e nos Estados Unidos.
O setor financeiro é o que pode detonar uma profunda crise econômica em um momento como este. E o problema da Grã-Bretanha é o excesso de déficit fiscal, o acúmulo de dívidas aparecendo. Inevitavelmente, haverá cortes realizados pelo novo governo de coalizão conservadora e liberal-democrata. Refiro-me a grandes cortes em saúde, educação e congelamento de salários. Acho que veremos uma renovação nas atividades sindicais da Inglaterra. Então, penso que estamos entrando num período de deterioração econômica na Europa. Paralelamente, haverá um pequeno boom nas exportações, causado pela desvalorização do euro. Exportações podem aumentar enquanto a crise financeira aprofunda, pelo menos por um curto prazo.
IHU On-Line - Os estados europeus de bem-estar social, tão afetados pelo endividamento e pelos déficits, serão capazes de resgatar suas finanças públicas e reformar suas economias sociais de mercado?
James Petras - Bem, a economia social de mercado está mais para o mercado do que para o social. Como mencionei anteriormente, houve ataques violentos à pensão, as idades mínimas para direito às pensões foram aumentadas, valores das pensões congelados, salários rebaixados, e os desempregados receberam ofertas de trabalho com salários bem menores do que os salários que ganhavam anteriormente. Portanto, está havendo uma regressão geral que piorou o estado de bem-estar social, ao invés de melhorá-lo. O que acho, e deve ser dito, é que o “mercado social”, que surgiu na década de 60 e se desenvolveu até os anos 90, está fazendo o sentido inverso.
A segunda coisa é que, quando se fala da recuperação econômica, acho necessário colocar, no contexto, que há uma enorme transferência de riqueza através destes subsídios às empresas privadas e, em contrapartida, uma certa dureza para com as empresas. Então temos uma substituição enorme, através da agência do governo, de income shares, de salários, a lucros, rendas, royalties etc. E este tipo de recuperação me lembra um pouco do que disse o General Médici: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Penso que devemos entender que o crescimento do capital, hoje, o mínimo que seja, está sendo amplamente financiado por uma batalha entre os salários e o bem-estar.
IHU On-Line - Quais as consequências sociais da redução do estado de bem-estar social? Qual sua análise de uma possível revolta social?
James Petras - As revoltas sociais hoje estão focalizadas em países específicos. Isso precisa ser enfatizado. Não há uma revolta social geral. Há muito protesto na Grécia, uma movimentação social latente na Espanha, em Portugal e no leste europeu, particularmente, na Romênia e na Letônia, onde há indicações de possíveis movimentações sociais. Temos que colocar isto dentro do contexto: estas são lutas defensivas [protetivas]. São lutas para manter o status quo. Os trabalhadores estão empenhados em movimentos massivos para evitar o regresso. Estas não são lutas ofensivas para levar adiante interesses de trabalhadores, mas são para defender os salários, padrão de vida, pensões, empregos etc. O paradoxo é que eles utilizam medidas radicais para manter o status quo. Os capitalistas estão utilizando medidas legais para destruir o status quo e impor regras exclusivamente capitalistas sobre estes países. Se, ao longo do tempo, esse processo continuar, é difícil de imaginar que não haverá uma radicalização das lutas, passando de protestos pacíficos para confrontos mais violentos. Mas isto deve ser pensado ao longo de um bom tempo. Devemos lembrar que estamos falando de décadas de adaptação entre capital e trabalho. Falamos de décadas em que trabalhadores e funcionários, especialmente funcionários públicos, trabalharam através dos partidos, negociações e barganha. Portanto, isso está incorporado na consciência e na ideia de revoluções. Revoltas não são parte desta atuação. É um processo gradual em que as formas antigas já não têm mais efeito, e as novas formas ainda têm que ser colocadas em prática.
IHU On-Line - Em que aspectos o fim da terceira via aponta na direção de uma possível transição para um esvaziamento da política?
James Petras - Penso que a terceira via já chegou ao seu limite, especialmente na Europa e particularmente onde tudo começou, na Inglaterra. Vimos a saída do Partido Trabalhista e o colapso bancário, do sistema financeiro. A terceira via não era realmente uma terceira via. Era uma forma de liberdade de mercado capitalista com aumento nos gastos sociais, sem a realização de mudanças estruturais. Então, quando a crise financeira veio, teve um impacto muito grande. Pois, incorporado à realização das políticas, estavam as ideias de que o sistema financeiro deveria ser poupado acima de tudo. Portanto, nada foi feito para alterar as estruturas. Como resultado disso, temos uma segunda onda de tentativas de resgate do setor financeiro à custa dos trabalhadores e dos sistemas produtivos. Portanto, temos, no resgate financeiro, uma situação de caráter desagradável para com o público. Acredito que a terceira onda de gastos sociais e de liberdade de mercado é um dilema. A liberdade de mercado não está funcionando, e os gastos sociais estão acabando. Na verdade, estamos tendo uma retratação dos gastos sociais. Portanto, a terceira via morreu na Inglaterra, talvez até na França e no restante do continente.
A terceira via na América Latina
Tendo dito isto, vejamos a América Latina e o que está acontecendo nela. A terceira via está muito evidente nas práticas de algumas novas formas de governo de classe média, com governos como Lula e Evo Morales, que são essencialmente desenvolvimentistas. Não são reformadores, mas governos concentrados em encorajar a maximização de investimentos privados, investimentos estrangeiros, capitalistas nacionais etc, e combinam isto com os gastos sociais, particularmente nos chamados programas sociais. Não tocaram em nenhuma estrutura fundamental, como as bancárias, industriais, agrominerais, mas reforçaram-nas e as ampliaram. Portanto, a terceira via está em atividade no Brasil e na América Latina, neste momento. Mas, ao mesmo tempo em que há grande ênfase em encorajar investimentos privados e gastos com programas sociais, mantém-se os salários baixos. A chave dos programas desenvolvimentistas é a estabilidade social através da exploração da classe trabalhadora para pagar os programas para os pobres, enquanto se incentiva o grande capital. A diferença da terceira via no Brasil e na América Latina, é que ela está menos dependente do sistema financeiro do que estava na Inglaterra e nos Estados Unidos. Portanto, há uma diferença na composição da parceria entre o Estado e diferentes tipos de capital. Mas a ênfase unilateral no capitalismo, crescimento e investimento está presente, ao mesmo tempo em que a ausência de qualquer redistribuição significativa do produto social é muito evidente.
IHU On-Line - Podemos relacionar o fim da terceira via e a ruína do trabalhismo inglês com o colapso das finanças públicas europeias? O que esses dois fatos dizem sobre uma mudança de paradigma econômico e social?
James Petras - Bem, nós já temos uma mudança. Há o colapso dos sistemas financeiros, orçamentos e um tremendo endividamento. Aqui podemos ter uma tentativa de criar um novo modelo em que o Estado possui um papel importante e crescente de regular a economia. Isto é, regular no sentido de restaurar as operações do sistema financeiro. As pessoas dizem que o Estado está mais envolvido agora do que esteve no passado, e isso é diferente. Mas temos que nos perguntar: que tipo de aumento na intervenção do Estado? Existe qualquer reequilíbrio da economia entre finanças e produção, indústria etc.? Não há qualquer reequilíbrio, mesmo nos Estados Unidos ou na Europa. Há mais intervenção do Estado, mais gastos estatais, mas estão sendo canalizados para as classes que criaram a crise. Nesta nova abordagem, temos capital financeiro do Estado como uma força motora. E nada tem realmente sido alterado em relação aos fundamentos. Ainda temos uma base econômica muito precária para qualquer tipo de renovação dos objetivos. E eu acho que o futuro do trabalho está apenas se direcionando no sentido de se tornar um desafio para os governos existentes. Quando digo governos, refiro-me aos liberais, conservadores, social-democratas, republicanos e democratas... Nenhuma destas opções demonstra qualquer capacidade de repensar o passado, e dizer: vejam, os modelos de desenvolvimento baseados no sistema financeiro: o turismo no sul, o bancário na Inglaterra, a dependência do financiamento das dívidas no leste europeu etc., não funcionam! Temos que repensar e voltar aos fundamentos da economia política, da necessidade de investimentos públicos, de propriedade pública, de maior grau de participação social na economia etc. Nada disto está nos planos. Acho que estes são planos futuros para a classe trabalhadora.
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James Petras já concedeu outra entrevista à IHU On-Line. Confira:
• ''A esquerda não pode ser um mero salva-vidas do capitalismo''. Revista IHU On-Line, número 287, de 30-03-2009