Para além do oficialismo e do esquerdismo no movimento anti-racista
Por Dennis Oliveira, Revista Fórum
20/05/2013
No sábado, dia 18 de maio, foi realizado na Universidade de São Paulo, o seminário “10 anos da Lei 10639/03 – Balanço e Perspectivas”. Participaram do evento cerca de 120 pessoas, a esmagadora maioria profissionais de educação. O seminário compôs-se de mesas redondas e ateliês de práticas pedagógicas nas áreas de literatura, artes, história, gestão de conflitos, entre outros.
Mas o que chamou a atenção nos debates de sábado foi a presença de uma questão de fundo que permeia os movimentos sociais no momento em que vivemos. Como se deve dar a relação entre movimentos sociais e governo, principalmente quando se trata de governos com um cunho mais progressista. Discussão semelhante ocorreu na sexta-feira, durante um outro seminário que participei como expositor sobre “movimentos sociais na contemporaneidade”, organizado pelo IEA (Instituto de Estudos Avançados) e a EACH (Escola de Artes, Ciências e Humanidades) na USP campus zona Leste.
Na questão específica do movimento anti-racista, um autor citado na mesa redonda de sábado foi o sociólogo Clóvis Moura (autor de “Dialética radical do Brasil negro” e “Rebeliões da senzala”). Moura é, constantemente, desqualificado na academia e até por alguns dirigentes do movimento negro. Cobram dele uma “maior precisão nas informações e nos dados” (uma pessoa em uma banca de qualificação da qual participei na FFLCH-USP questionou, por exemplo, a ênfase dada por Moura para o Quilombo dos Palmares dizendo que se ele foi tão importante porque hoje não há “remanescentes como de outros quilombos”, esquecendo ou fingindo desconhecer que Palmares foi massacrado).
A qualificação de Moura não está, necessariamente, na precisão ou não das informações e dados. Isto é uma leitura superficial da obra dele. Quando Moura fala que a abolição que se faz em 13 de maio de 1888 tem um caráter inconcluso por não prever medidas de inclusão dos ex-escravizados e escravizadas no sistema social porque a luta “saiu dos quilombos e foi para a dimensão parlamentar” quis enfatizar os limites da ação institucional.
Outro pensador importante brasileiro, Jacob Gorender, defende que o escravismo colonial existente no Brasil era um modo de produção original, porque a utilização de mão de obra escravizada de africanos produzia valores que eram incorporados no sistema capitalista mercantil de então. Isto significa que há uma articulação na formação social capitalista nascente do modo de produção do escravismo colonial brasileiro.
Fazendo uma interpretação marxiana destas posições, tem-se que o Estado brasileiro foi formatado para possibilitar a vigência desta tipologia de acumulação de riquezas e de relações sociais de classe. As modulações do aparelho de Estado nos diversos momentos conjunturais não significam uma mudança estrutural na sua lógica, até porque se manteve o modo de produção local e sua articulação com a formação social capitalista global.
É exatamente este o raciocínio de Clóvis Moura quando identifica a opção de passagem do sistema escravista para o capitalista dependente (ver em “Sociologia do negro brasileiro” e “Dialética radical do Brasil negro”) como os limites estruturais de ação por dentro do aparelho institucional. Em outras palavras, a forma de abolição obtida em 13 de maio de 1888 foi o limite possibilitado pelo aparelho de Estado brasileiro voltado para a manutenção daquela ordem – patrimonialista, capitalista dependente e racista. E é também o aspecto que diferencia do projeto abolicionista dos movimentos abolicionistas radicais, como a Revolta dos Alfaiates, em que se desenhava uma outra perspectiva de sociedade e também de Estado.
Por isto, os eventuais espaços de participação nos aparelhos de Estado que tem crescido no Brasil nos últimos anos tem que ser observados dentro dos seus limites institucionais. O professor Juarez Tadeu de Paula Xavier, da Unesp, lembrou na sua fala no dia 18 de maio, da lógica do falecido pensador negro Milton Santos: os processo sociais tem a dimensão da fábula, da perversidade e da possibilidade. O que se percebe é que há uma ilusão com a fábula na perspectiva institucional de parcela da militância ou da repetição estéril da perversidade por parte de uma frustração esquerdista. Ambas, embora aparentemente opostas, se aproximam por partirem da ilusão das possibilidades da ação institucional (só se frusta quem um dia se iludiu). Ora, uma ação política pela transformação se situa na dimensão das possibilidades.
A contribuição epistêmica de Clóvis Moura é fundamental para se entender os limites e possibilidades de transformação com a aprovação de diversas leis importantes para o movimento anti-racista, como a Lei 10639/03. O diagnóstico da presença desta lei não é dos mais animadores. Problemas vários acontecem nas escolas e muitas vezes são identificados unica e exclusivamente como decorrentes de má formação ou incompreensão dos profissionais da educação. Esquece-se da natureza do Estado brasileiro – que vai além dos ocupantes pontuais dos cargos de governo, pois se espraia nas tradições e formatações institucionais consolidadas – já dito por vários pensadores: patrimonialista, excludente e racista.