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domingo, 31 de janeiro de 2010

Vladimir Safatle: certos setores da sociedade querem apagar a ditadura da história do Brasil

Há um esforço de setores da sociedade em apagar a ditadura da história do país, diz filósofo

Gilberto Costa

Repórter da Agência Brasil

Brasília - Após a Segunda Guerra Mundial, os judeus sobreviventes revelaram que seus carrascos asseguravam que ninguém acreditaria no que havia ocorrido nos campos de concentração. A história, no entanto, não cumpriu o destino previsto pelos nazistas, muitos foram condenados e o episódio marca a pior lembrança da humanidade.

Crimes cometidos em outros momentos de exceção também levaram violadores de direitos humanos a serem interrogados em comissões da verdade e punidos por tribunais, como na África do Sul, em Ruanda, na Argentina, no Uruguai e Paraguai.

Para filósofo Vladimir Safatle, professor da Universidade de São Paulo (USP), há um lugar que resiste à memória do horror e a fazer justiça às vítimas: o Brasil. Nenhum agente do Estado ditatorial (1964-1985), envolvido em crimes como sequestro, tortura, estupro e assassinato de dissidentes políticos, foi a julgamento e preso.

Em março, será lançado o livro O Que Resta da Ditadura (editora Boitemço), organizado por Safatle e Edson Teles. A obra tenta entender como a impunidade se forma e se alimenta no Brasil. Para Safatle,o Brasil continua uma democracia imperfeita por resistir a uma reavaliação do período da ditadura militar (1964-1985) e por manter uma relação complicada entre os Três Poderes.


Agência Brasil: O Brasil tem alguma dificuldade com o seu passado?

Vladimir Safatle: Existe um esforço de vários setores da sociedade em apagar a ditadura, quase como se ela não tivesse existido. Há leituras que tentam reduzir o período à vigência do AI-5 [Ato Institucional nº 5], de 1968 a 1979. E o resto seria uma espécie de democracia imperfeita, que não se poderia tecnicamente chamar de ditadura. Ou seja, existe mesmo no Brasil um esforço muito diferente de outros países da América Latina, que passaram por situações semelhantes, que era a confrontação com os crimes do passado. É a ideia de anular simplesmente o caráter criminoso de um certo passado da nossa história.

ABr: Há quem diga que o Brasil não teve de fato uma ditadura clássica depois de 1964, mas sim uma "ditabranda" se comparada à da Argentina e a do Uruguai, por exemplo.


Safatle: Essa leitura é do mais clássico cinismo. É inadmissível para qualquer pessoa que respeite um pouco a história nacional. Afirmar que uma ditadura se conta pela quantidade de mortes que consegue empilhar numa montanha é desconhecer de uma maneira fundamental o que significa uma ditadura para a vida nacional. A princípio, a quantidade de mortes no Brasil é muito menor do que na Argentina. Mas é preciso notar como a ditadura brasileira se perpetuou. O Brasil é o único país da América Latina onde os casos de tortura aumentaram após o regime militar. Tortura-se mais hoje do que durante aquele regime. Isso demostra uma perenidade dos hábitos herdados da ditadura militar, que é muito mais nociva do que a simples contagem de mortes.

ABr: Qual o reflexo disso?


Safatle: Significa um bloqueio fundamental do desenvolvimento social e político do país. Por outro lado, existe um dado relevante: a ditadura de certa maneira é uma exceção. Ela inaugurou um regime extremamente perverso que consiste em utilizar a aparência da legalidade para encobrir o mais claro arbítrio. Tudo era feito de forma a dar a aparência de legalidade. Quando o regime queria de fato assassinar alguém, suspender a lei, embaralhava a distinção entre estar dentro e fora da lei. Fazia isso sem o menor problema. Todos viviam sob um arbítrio implacável que minava e corroía completamente a ideia de legalidade. É um dos defeitos mais perversos e nocivos que uma ditadura pode ter. Isso, de uma maneira muito peculiar, continua.

ABr: Então, a semente da violência atual do aparato policial foi plantada na ditadura?


Safatle: Não é difícil fazer essa associação, pois nunca houve uma depuração da estrutura policial brasileira. É muito fácil encontrar delegados que tiveram participação ativa na ditadura militar, ainda em atividade. No estado de São Paulo, o ex-governador Geraldo Alckmin indicou um delegado que era alguém que fez parte do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna]. Teve toda uma discussão, mas esse debate não serviu sequer para ele voltasse atrás na nomeação. Se você levar em conta esse tipo de perenidade dos próprios agentes que atuaram no processo repressivo, não é difícil entender por que as práticas não mudaram.

ABr: Estamos atrás de outros países, como Argentina e África do Sul, na investigação e julgamento de crimes cometidos pelo Estado?


Safatle: Estamos aquém de todos os países da América Latina. Nosso problema não é só não ter constituído uma comissão de verdade e justiça, mas é o de que ninguém do regime militar foi preso. Não há nenhum processo. O único processo aceito foi o da família Teles contra o coronel [Carlos Alberto Brilhante] Ustra, que foi uma declaração simplesmente de crime. Ninguém está pedindo um julgamento e sim uma declaração de que houve um crime. Legalmente, sequer existiram casos de tortura, já que não há nenhum processo legal. E levando em conta o fato de que o Brasil tinha assinado na mesma época tratados internacionais, condenando a tortura, nossa situação é uma aberração não só em relação à Argentina e à África do Sul, mas em relação ao Chile, ao Paraguai e ao Uruguai.

ABr: Que expectativa o senhor tem quanto ao funcionamento da Comissão Nacional da Verdade, prevista no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), para apurar crimes da ditadura?


Safatle: Uma atitude como essa é a mais louvável que poderia ter acontecido e merece ser defendida custe o que custar. O trabalho feito pelo ministro Paulo Vannuchi [secretário dos Direitos Humanos, da Presidência da República] e pela Comissão de Direitos Humanos é da mais alta relevância nacional. Acho que é muito difícil falar o que vai acontecer. A gente está entrando numa dimensão onde a memória nacional, a política atual e o destino do nosso futuro se entrelaçam. Existe uma frase no livro 1984, de George Orwell, que diz: “Quem controla o passado controla o futuro”. Mexer com esse tipo de coisa é algo que não diz respeito só à maneira que o dever de memória vai ser institucionalizado na vida nacional, mas à maneira com que o nosso futuro vai ser decidido.

ABr: Mas, antes mesmo da criação da Comissão da Verdade, os debates já estão muito acalorados.


Safatle: O melhor que poderia acontecer é que se acirrassem de fato as posições e cada um dissesse muito claramente de que lado está. O país está dividido desde o início. Veja a questão da Lei da Anistia. O programa do governo [PNDH 3] em momento algum sugeriu uma forma de revisão ou suspensão da lei. O que ele sugeriu foi que se abrisse espaço para a discussão sobre a interpretação da letra da lei. Porque a anistia não vale para crimes de sequestro e atentados pessoais. A confusão que se criou demonstra muito claramente como a sociedade brasileira precisa de um debate dessa natureza, o mais rápido possível. Não dá para suportar que certos segmentos da sociedade chamem pessoas foram ligadas a esses tipos de atividades de “terroristas”. É sempre bom lembrar que no interior da noção liberal de democracia, desde John Locke [filósofo inglês do século 17], se aceita que o cidadão tem um direito a se contrapor de forma violenta contra um Estado ilegal. Alguns estados nos Estados Unidos também preveem essa situação.

ABr: O termo “terrorista” é usado por historiadores que não têm qualquer ligação com os militares e até mesmo por pessoas que participaram da luta armada. Usar a palavra é errado?


Safatle: Completamente. É inaceitável esse uso que visa a criminalizar profundamente esse tipo de atividade que aconteceu na época. A ditadura foi um estado ilegal que se impôs através da institucionalização de uma situação ilegal. Foi resultado de um golpe que suspendeu eleições, criou eleições de fachada com múltiplos casuísmos. Podemos contar as vezes que o Congresso Nacional foi fechado porque o Executivo não admitia certas leis. O fato de ter aparência de democracia porque tinham algumas eleições pontuais, marcadas por milhões de casuísmos, não significa nada. No Leste Europeu também existiam eleições que eram marcadas desta mesma maneira.Um Estado que entra numa posição ilegal não tem direito, em hipótese alguma, de criminalizar aqueles que lutam contra a ilegalidade. Por trás dessa discussão, existe a tentativa de desqualificar a distinção clara entre direito e Justiça. Em certas situações, as exigências de Justiça não encontram lugar nas estruturas do Direito tal como ele aparecia na ditadura militar. Agora, existem certos setores que tentam aproximar o que aconteceu no Brasil do que houve na mesma época na Europa, com os grupos armados na Itália e na Alemanha. As situações são totalmente diferentes porque nenhum desses países era um Estado ilegal. E não há casos no Brasil de atentado contra a população civil. Todos os alvos foram ligados ao governo.

ABr: Os assaltos a banco não seriam atentados às pessoas comuns que estavam nas agências?


Safatle: Todos os que participaram a atentados a bancos não foram contemplados pela Lei da Anistia e continuaram presos depois de 1979. Pagaram pelo crime. Isso não pode ser utilizado para bloquear a discussão. Dentro de um processo de legalidade, de maneira alguma o Estado pode tentar esconder aquilo que foi feito por cidadãos contra eles, como se fossem todos crimes ordinários. Se um assalto a banco é um crime ordinário, eu diria que a luta armada, a luta contra o aparato do Estado ilegal, não é. Isso faz parte da nossa noção liberal de democracia.

ABr: Que democracia é a nossa que tem dificuldades de olhar o passado?


Safatle: É uma democracia imperfeita ou, se quisermos, uma semidemocracia. O Brasil não pode ser considerado um país de democracia plena. Existe uma certa teoria política que consiste em pensar de maneira binária, como se existissem só duas categorias: ditadura ou democracia. É uma análise incorreta. Seria necessário acrescentar pelo menos uma terceira categoria: as democracias imperfeitas.

ABr: O que isso significa?


Safatle: Consiste em dizer basicamente o seguinte: não há uma situação totalitária de estrutura, mas há bloqueios no processo de aperfeiçoamento democrático, bloqueios brutais e muito visíveis. Existe uma versão relativamente difundida de que a Nova República é um período de consolidação da democracia brasileira. Diria que não é verdade. É um período muito evidente que demonstra como a democracia brasileira repete os seus impasses a todo momento. O primeiro presidente eleito recebeu um impeachment, o segundo subornou o Congresso para poder passar um emenda de reeleição e seu procurador-geral da República era conhecido por todos como “engavetador-geral”, que levou a uma série de casos de corrupção que nunca foram relativizados. O terceiro presidente eleito muito provavelmente continuou processos de negociação com o Legislativo mais ou menos nas mesmas bases. Chamar isso de consolidação da estrutura democrática nacional é um absurdo. Os poderes mantêm uma relação problemática, uma interferência do poder econômico privado nas decisões de governo. Um sistema de financiamento de campanhas eleitorais que todos sabem que é totalmente ilegal e é utilizado por todos os partidos sem exceção.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Eduardo Galeano: Os pecados do Haiti

por Eduardo Galeano,

A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto

Para apagar as pegadas da participação estado-unidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas mais poder do que Préval tem qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito nem sequer com um voto.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem ordenando-lhe:

– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico

Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha explicou-lhe, em Port-au-Prince, qual é o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, com El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objectivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar-se a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis da invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até à cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos haviam conquistado antes a sua independência, mas tinha meio milhão de escravos a trabalhar nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém nascida foi condenada à solidão. Ninguém lhe comprava, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolíver, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar havia podido reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano havia-lhe entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pénis. Por essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perdão por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.

Fonte: Resistir.info, originalmente publicado em Resumen Latinoamericano

domingo, 17 de janeiro de 2010

Imprensa monopolizada: violência simbólica e moral

CASO BORIS CASOY: Arrogância, cinismo e fascismo social na mídia grande

No Observatório da Imprensa

Por Jaime Amparo-Alves

em 12/1/2010

Na noite do dia 31 de dezembro, Boris Casoy fechou em grande estilo o jornalismo da mídia gorda em 2009. Para os padrões éticos da imprensa nacional, não poderia ter sido um fechamento melhor. No intervalo do Jornal da Band, o apresentador deixou escapar uma daquelas verdades guardadas no closet e disfarçadas sob o moralismo dirigido comum aos representantes da meia dúzia de redações do eixo Rio-São Paulo que comandam o jornalismo do país. Sob risos, Boris disparou: "Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho."

Ainda que o comentário, por si só, deixe transparecer o que pensa um dos mais respeitados âncoras do jornalismo brasileiro sobre os garis, a infeliz frase de Casoy apenas expressa a ponta de um complexo emaranhado ideológico que sustenta as distinções/hierarquias sociais em nosso meio e que tem na mídia um dos seus principais instrumentos. Mais do que ofender os garis e os telespectadores/as do Jornal da Band – e foi uma ofensa seriíssima –, a frase é expressão do jornalismo hegemônico que consumimos, que por sua vez deve ser contextualizado no campo das nossas relações sociais.

A inteligentsia brasileira já tentou explicar essa arrogância social, esse desqualificar de certos grupos, a partir de uma antropologia do jeitinho brasileiro – destaque para o famoso: "Você sabe com quem está falando?" Tal antropologia, que tem Roberto Da Matta como seu maior expoente, identificou o desprezo às normas e às estratégias interpessoais de legitimação de poder e distinções sociais como regras da vida cotidiana. Marilena Chauí e Paulo Sérgio Pinheiro identificam na herança do Brasil autoritário (a primeira, no mito fundacional do país; o segundo, nos períodos de estado de exceção) certo autoritarismo socialmente implantado que faz com que as dominações de gênero, raça e classe social sejam sistematicamente reproduzidas em nossa sociedade e encontrem eco mesmo entre as "vítimas" preferenciais da nossa tradição violenta.

Roupagem moralista

Se o jornalismo, como prática social, é reflexo da sociedade, então é razoável crer que o fazer jornalístico também carrega em si as mazelas e vícios sociais do seu tempo. É razoável, mas poucos têm reconhecido esse pertencimento/afinidade jornalística com os padrões perversos de reprodução das desigualdades e hierarquias. Nas redações, a autocrítica nestes termos é quase impensável. Desde a faculdade, jornalistas são semi-deuses/semi-deusas com o dedo em riste, prontos para – a serviço dos patrões – destruir biografias, criminalizar movimentos sociais, negar a existência do racismo, investir no caos...

É a arrogância jornalística que entra em discussão aqui, não apenas no sentido da arrogância editorial de um veículo se portando como detentor da "verdade", mas também na postura dos/das figurões da mídia gorda – âncoras, comentaristas, apresentadores – que emprestam a cara aos editoriais dos veículos que representam. Seria ingenuidade não considerar um aspecto central neste contexto: o controle dos patrões sobre a atividade jornalística. No entanto, os figurões em questão só o são porque representam bem o discurso dos proprietários dos meios onde trabalham. Todos os dias eles/elas estão aí com o seu moralismo dirigido e sua arrogância – no horroroso jornalismo policial de fim de tarde da Band, na estética dissimulada/sofisticada dos editoriais dos telejornais da televisão brasileira – sem falar nos comentários arrepiantes de um tal Arnaldo Jabor no Jornal Nacional... E por aí não pára.... vide os textos indigestos dos colunistas de jornalões como Folha, O Globo e Estado, replicados na imprensa regional Brasil afora.

Boris Casoy não está só no que pensa sobre os pobres. O seu insidioso comentário tem muito a nos dizer também sobre o que pensam os nomes da mídia grande sobre sua função social. O desprezo pelos pobres e a intimidade com os centros de prestígio e de poder não encontra eco apenas no plano político partidário, onde uma certa afinidade com o discurso dominante orienta a prática "jornalística" contra os partidos de orientação mais à esquerda. Também no plano social, o preconceito de raça e de classe recebe roupagem moralista e aparece explícito na criminalização dos movimentos sociais, dos moradores das áreas urbanas pobres, das pessoas em situação de rua... Quem não se lembra das capas históricas da revista Veja sobre o MST (matéria de capa "A tática da baderna", de 10/05/2000, por exemplo)?

Violência simbólica e moral

"Dois lixeiros desejando felicidades do alto da suas vassouras. O mais baixo na escala do trabalho." Tá aí... Boris Casoy bebe da mesma fonte que sustenta o nosso fascismo social – como empregado por Boaventura de Souza Santos – e que é amplamente difundido na humilhação diária a que são submetidos jovens negros no jornalismo policial e seus repórteres com suas justificativas cínicas às mortes de supostos "bandidos" nos "confrontos" em ações da polícia, na adjetivação preconceituosa dos protestos urbanos por moradia ou na criminalização das mobilizações pela reforma agrária, na difamação da luta dos afrobrasileiros por ações afirmativas.

Assim como o presidente-metalúrgico agride a sensibilidade depurada dos nossos gatekeepers dos jardins, ao escandalizar Casoy, o gari – "o mais baixo na escala do trabalho" – de certa forma expõe de onde falam os formadores de opinião da mídia gorda. A crítica dissimulada que fazem do poder a partir de uma retórica humanista cínica e vazia não esconde o lugar social e os valores que representam.

Aperte o cinto: concentrado em meia dúzia de redações no eixo Rio-São Paulo, o jornalismo hegemônico segue firme na sua promessa cretina para 2010. A contar pela maneira como Casoy iniciou o seu ano de trabalho, não há tréguas: as redações continuarão sendo lugar privilegiado para a legitimação de padrões de dominação. A não ser que a sociedade reaja – junto com as/os jornalistas conscientes da sua responsabilidade social – em um movimento amplo pela democratização dos meios de comunicação e pelo controle social da atividade jornalística por meio de um Conselho Federal de Jornalistas – garis, domésticas, nordestino/as, negro/as continuarão sendo objetos da violência simbólica e moral de quem deveria zelar pela dignidade humana. Isso é uma vergonha!

sábado, 16 de janeiro de 2010

Os estudantes, os antropólogos, os poliglotas salvarão o mundo, não os soldados.

Relato de segunda mão

Estudantes, não soldados, fazem a diferença, no Haiti


15-17/1/2010, Evan Knappenberg*, Counterpunch


Minha irmã Jonna sempre viveu protegida na vida de casa, praticamente desde que a vi nascer. Tipicamente, eu fui o irmão mais velho que ‘fez a vida’: alistei-me no exército, fui à guerra, voltei, converti-me em militante ativista pela paz. De modo geral, sempre me senti bem, no comando da nossa cena familiar ‘normal’. Tudo isso mudou na tarde de ontem, na capital do Haiti.

Minha irmãzinha, sempre progressista compassiva, calma, dedicada, estava no Haiti trabalhando com uma ONG, Haiti 2015, dedicada à assistência social aos haitianos, quando houve o terremoto. Jonna e Landon, seu namorado, formaram-se em jornalismo na universidade William and Mary, no estado de Virginia; os dois falam francês e os dois estão começando seus estudos de antropologia. Os dois estão em viagem de pesquisa pelo Haiti, para reunirem dados que lhes permitam planejar seus estudos futuros. Só ontem, depois de uma noite de desespero, sem dormir, sem notícias deles, é que consegui interligar tudo: o que fazem lá, o trabalho deles naquele desastre terrível, e o meu trabalho numa guerra ainda mais desastrosa.

Quando me alistei no exército, em 2003, não tinha qualquer dúvida de que estaria ajudando a salvar o povo do Iraque, se invadíssemos o país. Era praticamente um adolescente, e os iraquianos pareciam-me gente pobre, insegura, assustadiça. Eu, cidadão jovem da classe média-alta da maior potência da terra, lá cheguei e fiz pose, com meu fuzil M-16, estendendo a mão aos iraquianos – um gesto de força, não de solidariedade. Lembro de ter discutido com minha irmã (já pacifista), de ter-lhe dito que a abordagem dela (a velha abordagem liberal) era insuficiente, ante a solução militar. As pessoas não precisam de solidariedade, disse eu, precisam de ordem; e só norte-americanos armados como John Wayne podem levar ordem ao mundo. Por mais que eu aspirasse, como irmão mais vel ho, a ser exemplo de coragem e compaixão para minha irmã menor, minha experiência no exército ensinou-me que soldados do exército e da marinha podem ter bem menos coragem e compaixão que uma moça de 22 anos.

Quando aconteceu o terremoto, repentino, minha irmã e o namorado estavam entrevistando haitianos em Port Au Prince. Estavam vivendo numa favela, longe das áreas de turismo e das instalações da ONU. Já há, aí, profundo contraste com a minha experiência no Iraque, eu, numa base protegida por guardas armados contratados da empresa KBR-Halliburton e lojas de fast-food, na qual se encontram todas as amenidades da vida modernas, embaladas e fornecidas por gente que vive, lá, com salários de terceiro mundo. Quando encontrei iraquianos, eu sempre estava em uniforme completo, com colete de cerâmica blindada e minha pistola automática engatilhada; ou estava atrás de uma escrivaninha, e os iraquianos estavam à minha frente, de olhos vendad os, os pés sem sapatos, à espera de serem interrogados. Diferentes de 90% do pessoal militar dos EUA no Iraque, os voluntários que trabalham no Haiti com minha irmã falam a língua local. Diferentes dos meus pares das chamadas “unidades de inteligência” da 4a. Divisão de Infantaria do Exército dos EUA, os companheiros de minha irmã conhecem a história, a política, a religião locais. O orçamento anual total do Projeto Haiti 2015 equivale a menos do que custa só um dos milhares de veículos blindados que são usados no Iraque e no Afeganistão.

Com o terremoto, Jonna e Landon foram jogados ao chão e viram os prédios desabar sobre centenas de pessoas à volta deles. Tudo o que os dois possuíam – exceto a roupa do corpo, uma câmera fotográfica e o que tinham nas mochilas – está perdido. Mas os dois, em segundos, estavam de pé, escavando os escombros e ajudando as vítimas. Cito, de uma mensagem rápida, que recebemos de Landon:

Minha roupa está em farrapos, porque fui arrancando pedaços para fazer curativos. Só temos o que está nas mochilas. Tentei reunir os feridos da parte que alcançamos num espaço aberto, em delmas 17, ruelle verna. Mandei Jonna até a ONU pelas 8 da noite, para avisar onde os feridos estavam reunidos e quando saí, para sinalizar o local, pelas 10 da noite, já havia 200 feridos reunidos e a notícia se espalhara, de que as pessoas deveriam ir para lá. Um estudante de medicina, chamado Samuel, fazia o que podia. Muita gente morreu. Encontrei Jonna perto do prédio da ONU, onde estamos agora, acho que eram 10h40 da noite passada.

Como veterano de guerra, sei que a coragem daqueles dois, face a um desastre inesperado e de proporções inimagináveis é maior do que qualquer coisa que eu tenha visto no exército. Há coragem de heroísmo no que fizeram, suficiente para matar de vergonha o exército dos EUA. De fato, posso dizer que eu, pessoalmente, em um ano de serviço no Iraque, jamais tive de levantar sequer um dedo para ajudar algum civil. Minha irmãzinha, liberal, relativista culturalista, e seu namorado, mostraram mais coragem e compaixão e capacidade de lutar pela vida, deles e dos próximos, numa noite, do que toda a minha companhia armada, no Iraque, nas três vezes que fui mandado para lá.

Enquanto dois alunos de antropologia e um aluno de medicina recolhiam mortos e feridos e confortavam os agonizantes durante horas de escuridão, com a terra ainda tremendo sob os pés, o maior, mais poderoso e mais caro exército do mundo... onde estava, que ninguém o viu?! Bom… ninguém o viu, com certeza, senão depois de 15 horas, quando um helicóptero da guarda costeira foi visto sobrevoando a cidade:

Os EUA mandaram um avião da guarda-costeira para sobrevoar a cidade e chegaram “quatro generais da República Dominicana. A base da ONU aqui montou uma pequena área de triagem, e estou ajudando como tradutor, porque … 99,9999% desses felas-da-puta da ONU não falam a língua local.

Com todo o dinheiro que gastamos nesses jatos de combate caríssimos, em navios de transporte de caças e armamento de alta tecnologia… O Departamento de Defesa estima que o custo de mandar um soldado para o Iraque ou Afeganistão por um ano é superior a um milhão de dólares. Compare-se isso com os 2 mil dólares que custam alguns estudantes que, sim, ajudam quando é preciso ajudar. Não quero soar ingrato: a guarda costeira dos EUA provavelmente trará minha irmã para casa; mas quanto aos generais e escolas militares com seu bilhões de dólares e mísseis hellfire, há solução tão mais simples para os problemas do mundo, e que não envolve tantos homens esconderem-se atrás de metralhadoras e bombas. Se minha irmãzinha e o namora do ensinaram tamanha lição a um veterano calejado de guerras como eu, em matéria de coragem e compaixão, o que resta dos chamados “valores do nosso militarismo”?

Não sei quando Joanna e Landon voltarão para casa. Landon já disse que ficará lá para ajudar aquelas pessoas das quais se aproximou tanto em tempos de dor e morte. Quando embarquei no jato que me traria de volta do Iraque para os EUA, lembro de sentimento muito diferente que tomava conta de todos os soldados. Os soldados batiam as botas no chão, para limpá-las de qualquer pó do Iraque que houvesse nelas. Todos pensávamos “Até nunca mais!”

Comparem-se esses sentimentos tão contrastantes, entre jovens de praticamente a mesma idade, criados em famílias parecidas, e vê-se facilmente qual abordagem levou à derrota e qual poderá criar pontes de fraternidade. Acho que é hora de os EUA decidirem entre essas duas abordagens. Se mais não for, podemos aprender de dois jovens americanos que enfrentaram o medo da morte, a escuridão, a mais completa incerteza sobre a própria sobrevivência, sem água e sem comida e que, ainda assim, souberam o que fazer para ajudar o próximo.

Se minha irmã estivesse aqui, em casa, em segurança, eu lhe diria que ela é “o meu herói”. Diria que todas as medalhas, fitas, condecorações, bandeiras e cartazes de “apoiem nossos soldados” nada valem, ante a coragem dela. Se eu pudesse falar com minha irmã que está lá, naquele Haiti caótico, eu lhe diria o quanto me orgulho dela e o quanto me envergonho do meu serviço militar. Os grandes atos são atos de compaixão, respeito e não-violência. Ocupação e vigilância nada são e nada podem ante o poder da bondade e da solidariedade. Os estudantes, os antropólogos, os poliglotas salvarão o mundo, não os soldados.

Tradução: Caia Fittipaldi


*Evan Knappenberger é veterano da guerra do Iraque, sofre de Stresse Pós-Trauma e Depressão e vive em Bellingham Washington.
Sua irmã, Jonna Knappenberger estuda jornalismo e vive no estado de Virgínia.

Pesquisadores da Unicamp no Haiti e seus relatos sobre a situação do país

Reproduzo uma das postagem do blog de pesquisadores da Unicamp, dentre eles o professor Omar Ribeiro Thomaz, especialista em Moçambique, e que se encontram no Haiti desde novembro de 2009.

Os relatos são muito doloridos, mas creio que ele nos dá a dimensão daquilo que as estatísticas não conseguem transmitir.

Leiam e acessem o blog para ler os demais relatos: LACITADELLE

O CHEIRO DA RUA



Mais estranho do que sobreviver ao tremor foi sobreviver às imagens nas quais fomos jogados. Um homem sem pele correndo, as pessoas desesperadas cantando sua fé, poeira encobrindo as esquinas, chamas erguendo-se a um quarteirão de nós. Muitas construções vieram abaixo, Caminhávamos em meio aos mesmos escombros que hoje exalam um odor de morte.

Durante todos esses dias a população não teve onde sepultar seus mortos. Os defuntos foram deixados na rua, enquanto o rádio instruía que os cadáveres deveriam ser tratados com cloro e vinagre, embalados em sacos plásticos e deixados em lugares secos. Os cadáveres que puderam ser retirados dos escombros foram tratados dessa maneira. Nas esquinas da cidade apareciam corpos que as moscas disputavam.

Muitos mortos, no entanto, não puderam ser retirados dos escombros. A população, que hoje nos chama para reclamar de abandono da comunidade internacional, foi se afastando desses lugares – com o calor os corpos parecem ter fermentado. Fato é que o espaço foi envolvido num vapor fétido.

Hoje, pela primeira vez os mortos começaram a sumir das esquinas. Os montes de defuntos, que aguçaram a imaginação de um jornalista fanático por barricadas e protestos, estão sendo recolhidos por tímidos caminhões brancos.

Os corpos sob os escombros, no entanto, continuam intocáveis. Nesse cenário caminham homens e mulheres de uma força que me deixou envergonhado. Nós, que estamos numa casa inteira fomos indagados com preocupação se estávamos bem.

Uma família em frente a uma casa arruinada fazia piada conosco, chamava-nos para conversar, queria mostrar-nos o lugar onde viveram. Outros nos viam com câmeras e pediam para mandar um recado para o mundo dizendo que estavam abandonados.

Não é a destruição que mais assusta aqui, é o abandono. Não sabemos até quando essa harmonia pode durar sem água e sem comida para todos. Muitos estão morrendo por falta de cuidados, outros reúnem numa toalha medicamentos e materiais médicos para ajudar os compatriotas. São poucos os que têm remédios e muitos são os que precisam de ajuda.


Numa esquina em que viramos, fomos surpreendidos por um grupo de homens jogando pedras na parte de trás de um caminhão. Assustamo-nos e queríamos voltar, mas o lugar para onde íamos pedia que passássemos por ali. Um haitiano que percebeu nosso dilema nos disse – não tem problema, aquele é o caminhão que recolhe os mortos. Ele, no entanto, está deixando de recolher os defuntos que estão naquela esquina e as pessoas estão muito revoltadas. Estávamos há um quarteirão e o cheiro da esquina já nos tocava.

Passamos em paz pelo caminho, mais a frente um homem passou carregando um cadáver e as pessoas nos saldavam ou compravam flores para seus mortos. A vida tenta continuar – que a comunidade internacional entenda que sem ela isso não durará muito tempo.

Depois de sobreviver a uma tragédia é preciso reaprender a viver. Essas pessoas me parecem grandes professores.

Marcos Magalhães Rosa

Fábio Konder Comparato critica a 'consciência conservadora" que privilegia a propriedade em detrimento da dignidade

15 de Janeiro de 2010

Jurista critica "consciência conservadora" que coloca propriedade acima da dignidade

Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil


Brasília - A terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) fez reaparecer fantasmas que há décadas atormentam a história política brasileira.

A principal crítica ao programa, escrito após discussão pública de dois anos, é que ele ameaça a Lei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979) e permite que pessoas que atuaram na “repressão política” da ditadura militar (1964-1985) sejam processadas, julgadas e condenadas por seus crimes.

Setores militares criticaram o programa afirmando que o documento poderia levar o país a um clima de revanchismo. O principal foco das discussões recaía sobre a criação da Comissão da Verdade cujo intuito é apurar crimes que teriam ocorrido durante o período militar.

Para pôr fim à polêmica, o governo decidiu não usar a expressão “repressão política” na parte que trata da apuração de casos de violação de direitos no contexto do regime militar. Assim, o texto do decreto abre a possibilidade de que sejam investigadas violações de direitos humanos praticadas tanto por militares quanto por outros agentes do período.

O texto do programa recebeu ainda críticas da Igreja Católica, por causa dos trechos relativos ao aborto; dos meios de comunicação, que afirmam que o documento favorece a censura; e do setor agrícola, que acredita em aumento da violência no campo com a criação de uma câmara de conciliação para mediar conflitos durante ocupações de terra.

As críticas ao PNDH levaram o jurista Fábio Konder Comparato, 73 anos, a se manifestar publicamente contra quem critica o programa e contra qualquer revés na luta pelos direitos humanos no Brasil.

O advogado e escritor também assina no Supremo Tribunal Federal (STF) uma arguição sobre a Lei da Anistia e tem expectativa que a principal Corte do país reveja este ano a impunidade sobre os abusos da época da ditadura. A seguir os principais trechos de sua entrevista à Agência Brasil.

Agência Brasil: O governo resolveu o imbróglio em torno do PNDH 3 e editou um novo decreto sobre a criação da chamada Comissão da Verdade no qual não consta a expressão “repressão política”, existente no texto original e criticada pelos setores militares. O que o senhor achou dessa solução?
Fábio Konder Comparato: Foi um evidente recuo do presidente da República. De certa maneira, esse recuo era esperado. O presidente Lula jamais enfrentou a oposição do poder econômico e do poder militar. Mas isso não deixa de ser surpreendente porque em toda a história republicana do Brasil ele é o presidente que contou com a maior aprovação popular. A impressão é que estamos onde sempre estivemos: uma espécie de cena política em que o povo, na melhor das hipóteses, é mero figurante. Isso é muito grave, nós não podemos simplesmente nos desolar diante de mais essa demonstração de que o povo não conta na política brasileira. A solução a longo prazo é a educação política do povo. A democracia é o único regime político que o povo precisa ser educado para agir. Nós temos uma democracia de fachada que mal esconde a oligarquia.

ABr: Em um artigo publicado esta semana o senhor escreve que os militares, ao afirmar que o PNDH 3 quer revogar a Lei da Anistia, estão assumindo que aquela lei é contrária aos direitos humanos ou sustenta graves violações. Por que os setores militares ainda têm dificuldade em lidar com esse passado?
Comparato: Porque os militares no Brasil gozaram de absoluta impunidade no que diz respeito ao cometimento de atos criminosos contra o povo e contra a ordem política. Nunca ninguém pensou em pô-los no banco dos réus. O general [Ernesto] Geisel [presidente da República entre 1974 e 1979] admitiu a tortura, mas um militar que hoje exerce as funções de deputado federal [Jair Bolsonaro, PP-RJ] disse em público que o grande erro dos militares na época que eles comandavam ostensivamente o país foi torturar, deveriam ter matado os opositores políticos! E o Ministério Público Federal ficou de braços cruzados... Isso é um escândalo! O Ministério Público Federal está colaborando com a criminalidade por parte dos militares.

ABr: O senhor assina a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questiona o Supremo Tribunal Federal quanto à interpretação de que a Lei da Anistia mantém impune torturadores e mandantes de crimes comuns, como sequestro, tortura, assassinato e estupro, praticados contra presos políticos durante a ditadura militar. O senhor tem expectativa que esse assunto se resolva este ano?
Comparato: Espero que sim. Afinal de contas, a Procuradoria-Geral da República está em mora [em atraso no cumprimento de uma obrigação]. Pela lei que rege esse processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, quando o Ministério Público não é o autor da arguição ele tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria-Geral da República foi intimada a se manifestar em 2 de fevereiro de 2009. Daqui a uns dias completará um ano que a Procuradoria se debruçou sobre os autos e até agora não produziu nenhum parecer.

ABr: O senhor vê algum motivo para isso?
Comparato: Houve claro descumprimento da lei e o Ministério Público como qualquer órgão público no Estado de direito tem que obedecer à lei e à Constituição. Não existem donos da lei.

ABr: A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) divulgou nota afirmando que, apesar do novo decreto presidencial sobre o PNDH 3 que institui o grupo de trabalho para criar o projeto de lei sobre a Comissão da Verdade, “foram mantidas as ameaças às instituições democráticas, ao estado de direito e à liberdade de expressão”. Qual a razão da queixa do setor rural?
Comparato: Os dois programas de direitos humanos aprovados durante o governo Fernando Henrique Cardoso [assinados em 1996 e 2002, respectivamente] foram muito mais incisivos do que este programa no governo Lula. Não me parece que os proprietários de terra, ou melhor, perdão, os agricultores - como quer o ministro Reinhold Stephanes [ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] - tenham rasgado e queimado a roupa e posto a cinza na cabeça diante desse cerceamento de sua liberdade. Tudo isso é ridículo, tudo isso é falso e tudo isso mostra que não vivemos em um Estado republicano, democrático e de direito. Qual a única ambição do Programa Nacional de Direitos Humanos do presidente Lula? A atualização dos índices de produtividade. Por que? Porque a Constituição proíbe a desapropriação para fins de reforma agrária das terras produtivas. Como é que se afere a produtividade? Evidentemente por índices técnicos. Ora, os índices que estão em vigor datam de 1975, há mais de três décadas.

ABr: Período que houve uma revolução na produtividade do campo...

Comparato: O que o programa de direitos humanos do governo Lula está pedindo é absolutamente razoável: o cumprimento da Constituição. Os dois programas do governo Fernando Henrique eram a esse respeito muito mais sérios. Seguindo, aliás, uma proposta que eu fiz sendo membro do Conselho Nacional de Defesa de Direitos da Pessoa Humana, os programas exigiam que se substituísse a norma do Código de Processo Civil segundo a qual as ações de manutenção e reintegração de posse, a expedição do mandato, podem ser feitam sem ouvir o réu. Está em causa a questão da função social da propriedade. Não é possível, em face da Constituição, dizer que a função social da propriedade é secundária. Os maiores crimes para a consciência conservadora brasileira não são contra a vida e a integridade pessoal, mas contra a propriedade. A propriedade está acima da dignidade da pessoa humana.

ABr: Vários veículos de comunicação disseram e repetiram que o PNDH 3 revoga a Lei da Anistia. Por que houve uma reação tão contundente da mídia contra o programa?

Comparato: A democracia exige a educação política do povo. Numa sociedade de massa essa educação se faz pelos meios de comunicação de massa. Eles ocupam um espaço público (rádio e televisão). O público significa espaço do povo não é do Estado nem de particulares. Nós conseguimos essa proeza no Brasil: esse espaço público foi apropriado por empresários. Eles são donos da televisão, donos do rádio e, por conseguinte, do espaço de comunicação pública. A Constituição exige, por exemplo, que toda a concessão pública seja precedida de licitação. Eu gostaria que você me lembrasse qual foi o caso de licitação de rádio e televisão aqui no Brasil. Politicamente, a grande arma que tem o empresariado nacional é a posse praticamente exclusiva desse espaço com o povo e do povo entre si. Então, não pode haver educação política. Toda vez que se fala em regulamentar o artigo 220 da Constituição [que no capítulo 5 trata da Comunicação Social] gritam que estão sendo massacrados pelo Estado e falam de censura. Esse é o principal problema da democracia hoje no Brasil. O país é o único do mundo onde não há lei de imprensa.

ABr: O senhor avalia que o momento pré-eleitoral também reverbera nas discussões sobre o PNDH?

Comparato: Provavelmente. Eu não vejo outra razão. Os pontos polêmicos do programa já constavam nas edições anteriores do PNDH e eram tratados de maneira mais incisiva e abrangente. Eu não me lembro que tivesse havido tanta celeuma, não houve nenhuma aliás, quando da publicação dos dois programas do governo Fernando Henrique. Isso está cheirando à campanha eleitoral antecipada.

ABr: Essa antecipação explicaria o recuo do governo?

Comparato: É bem provável. Isso eu não posso suportar. Francamente, eu acho que presidente da República não pode negociar quando se trata da dignidade humana. Acho isso gravíssimo e mesmo sob o aspecto eleitoral não é ele o candidato. Ele não pode pretender, para fazer seu sucessor, negociar com questões que são inegociáveis. Isso é contrário ao espírito da Constituição e às normas mais elementares de ética política.

Edição:
Lílian Beraldo

Haiti: como se produz um país incapacitado

Antes e depois do terremoto: A incapacitação do Haiti

por Ashley Smith, no Counterpunch

15 de janeiro de 2010

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Um terremoto devastador, o pior em 200 anos, atingiu Porto Príncipe na terça-feira, destruindo a cidade e matando um número não definido de pessoas. O terremoto mediu 7 pontos na escala Richter e detonou mais de 30 tremores secundários, todos de magnitude 4.5, durante a noite ou na manhã de quarta-feira.

O terremoto destruiu casas construídas pobremente, hotéis, hospitais e mesmo os prédios políticos mais importantes da cidade, inclusive o palácio presidencial. O colapso de tantas estruturas causou uma nuvem gigantesca no céu, que flutuou sobre a cidade, causando uma chuva de poeira sobre as áreas devastadas.

De acordo com algumas estimativas, mais de 100 mil pessoas podem ter morrido em uma metrópole de 2 milhões de pessoas. Aqueles que sobreviveram estão morando nas ruas, com medo de retornar aos edifícios que permaneceram em pé.

Em todo o mundo, haitianos lutam para contatar suas famílias e amigos no país devastado. A maioria não conseguiu chegar a seus amados, uma vez que as linhas telefônicas no país cairam.

* * *

Enquanto a maioria das pessoas reagiu à crise tentando encontrar um jeito de ajudar ou de doar dinheiro, o fanático da direita cristã Pat Robertson [pastor televangelista dos Estados Unidos] deu novos passos na profundidade do racismo. Ele explicou que os haitianos foram amaldiçoados por terem feito um pacto com o diabo quando se libertaram da escravidão francesa na revolução do Haiti de dois séculos atrás.

A mídia corporativa pelo menos noticiou que foi o movimento das placas tectônicas na falha geológica que fica sob Porto Príncipe que causou o terremoto -- e que a incapacidade do governo Préval tornou o desastre muito pior. Mas não foi além da superfície.

"A cobertura do terremoto é marcada pelo divórcio entre o desastre e a história política e social do Haiti", o ativista canadense Yves Engler disse em uma entrevista. "Ela apenas repete que o governo estava completamente despreparado para lidar com a crise. É verdade. Mas não explicaram os motivos".

Por que 60% dos edifícios de Porto Príncipe foram mal construídos e eram inseguros em condições normais, de acordo com o prefeito da cidade? Por que não há regulamentos para a construção em uma cidade que fica sobre uma falha geológica? Por que Porto Príncipe inchou de uma cidade de 50 mil habitantes no anos 50 para 2 milhões de pessoas desesperadamente pobres hoje? Por que o estado foi completamente incapaz de lidar com o desastre?

Para entender esses fatos, temos de olhar para uma segunda falha geológica -- a política imperial dos Estados Unidos em relação ao Haiti. O governo dos Estados Unidos, as Nações Unidas e outros poderes ajudaram a elite do Haiti a submeter o país a planos econômicos neoliberais que empobreceram as massas, causaram deflorestamento, destruiram a infraestrutura e incapacitaram o governo.

Esta "falha" do imperialismo dos Estados Unidos interagiu com a falha geológica para transformar um desastre natural em uma catástrofe social.

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos apoiaram as ditaduras de Papa Doc Duvalier e depois de Baby Doc Duvalier -- que governaram o país de 1957 a 1986 -- como um contrapeso anticomunista à Cuba de Castro, que fica por perto.

Sob a direção de Washington, Baby Doc Duvalier abriu a economia do Haiti para o capital dos Estados Unidos nos anos 70 e 80. A enchente de produtos agrícolas dos Estados Unidos destruiu a agricultura camponesa. Como resultado, centenas de milhares de pessoas fugiram para as favelas de Porto Príncipe para trabalhar por salários baixíssimos nas zonas de processamento de exportação para os Estados Unidos.

Nos anos 80, massas de haitianos se levantaram para expulsar os Duvaliers do poder -- mais tarde, elegeram o reformador Jean-Bertrand Aristide para ser o presidente em uma plataforma de reforma agrária, ajuda aos camponeses, reflorestamento, investimento em infraestrutura para o povo, aumentos de salários e direitos sindicais para os trabalhadores.

Os Estados Unidos, por sua vez, apoiaram o golpe que tirou Aristide do poder em 1991. Eventualmente o presidente eleito foi restaurado ao poder em 1994, quando Bill Clinton mandou tropas dos Estados Unidos para as ilhas -- com a condição de que ele implementasse um plano neoliberal. Os haitianos chamaram a ideia de "plano da morte".

Aristide resistiu a partes do programa dos Estados Unidos para o Haiti, mas implementou outras, enfraquecendo as próprias reformas que propunha. Eventualmente, no entanto, os Estados Unidos se tornaram impacientes com o fracasso de Aristide de obedecer completamente, especialmente quando ele pediu 21 bilhões de dólares em reparações em seu ano final no poder. Os Estados Unidos impuseram um embargo econômico contra o país, levando os camponeses e trabalhadores a uma pobreza ainda maior.

Em 2004, Washington colaborou com a elite do Haiti, que apoiou esquadrões da morte que derrubaram o governo, sequestraram e deportaram Aristide. As Nações Unidas mandaram tropas para ocupar o país e o governo fantoche de Gérard Latortue foi instalado para continuar os planos neoliberais de Washington.

O breve regime de Latortue era completamente corrupto -- ele e seu bando embolsaram grandes porções dos 4 bilhões de dólares mandados para o país pelos Estados Unidos e outros poderes quando acabou o embargo. O regime desmantelou as frágeis reformas de Aristide. Assim, o padrão de empobrecimento e degradação da infraestrutura do país acelerou.

Nas eleições de 2006, as massas haitianas votaram num aliado de longa data de Aristide, René Préval, para presidente. Mas Préval tem sido uma figura fraca, que colaborou com os planos dos Estados Unidos e fracassou na tentativa de enfrentar a crescente crise social.

De fato, os Estados Unidos, a ONU e outros poderes imperiais efetivamente deram a volta no governo Préval e jogaram dinheiro nas ONGs. "O Haiti tem agora a maior presença per capita de ONGs no mundo", diz Yves Engler. O governo Préval se tornou uma ficção, atrás da qual as decisões reais são tomadas pelos poderes imperiais e implementadas através das ONGs escolhidas".

* * *

O verdadeiro poder estatal não é do governo Préval, mas da ocupação dos Estados Unidos apoiada pelas Nações Unidas. Sob liderança brasileira, as forças da ONU protegeram os ricos e colaboraram com -- ou pelo menos fecharam os olhos -- para os esquadrões da morte da direita que aterrorizaram os apoiadores de Aristide e do Partido Lavalas.

As forças de ocupação não fizeram nada para enfrentar a pobreza, a infraestrutura detonada ou o deflorestamento maciço que exacerbou os efeitos de uma série de desastres naturais -- furacões severos em 2004 e 2008 e agora o terremoto em Porto Príncipe.

Em vez disso, elas meramente policiam uma catástrofe social e, ao fazer isso, cometem os crimes normais, característicos de toda força policial. Como Dan Baeton escreveu em uma relatório da NACLA, "a missão de estabilização da ONU no Haiti (Minustah), que começou em junho de 2004, foi marcada por escândalos de assassinatos, estupros e outros casos de violência das tropas desde o início".

Primeiro o governo Bush e agora o governo Obama usaram o golpe e as crises social e natural para expandir os planos econômicos neoliberais dos Estados Unidos.

Sob Obama, os Estados Unidos deram um alívio de 1,2 bilhão de dólares na dívida do Haiti, mas não cancelaram toda a dívida -- o país ainda paga grandes somas para o Banco Interamericano de Desenvolvimento. O alívio é para disfarçar a verdadeira política de Obama para o Haiti, que é a mesma velha política.

Em colaboração próxima com o enviado especial das Nações Unidas para o Haiti, o ex-presidente Bill Clinton, Obama apóia um programa econômico familiar para todo o resto do Caribe -- turismo, fábricas têxteis (sweatshops) e o enfraquecimento do controle do estado sobre a economia através da privatização e da desregulamentação.

Em particular, Clinton orquestrou um plano para transformar o norte do Haiti num parque turístico, bem longe das favelas de Porto Príncipe. Clinton atraiu a empresa de cruzeiros Royal Caribbean para investir 55 milhões de dólares na construção de um pier na costa de Labadee, que foi alugada pela empresa até 2050.

De lá, a indústria de turismo do Haiti espera promover expedições à fortaleza montanhosa Citadelle e ao palácio de Sans Souci, ambos construídos por Henri Cristophe, um dos líderes da revolução de escravos do Haiti.

De acordo com o Miami Herald:

O plano de 40 milhões de dólares envolve transformar a pequena cidade de Milot, que sedia a Citadelle e o Palácio de Sans Souci, num vila turística vibrante, com mercados de artes e artesanato, restaurantes e ruas de pedra. Os visitantes seriam poupados do congestionamento de Cap-Haïtien, levados para uma baía e depois transportados de ônibus através do campo. Uma vez em Milot, ele poderiam escalar ou ir a cavalo até a Citadelle, nomeada uma herança da Humanidade desde 1982. Ecoturismo, expedições arqueológicas e visitas a rituais de Vodoo estão sendo vendidos pela indústria de turismo de boutique do Haiti e a Royal Caribbean planeja trazer para o país seus maiores navios, criando a demanda por excursões.

Então, enquanto Pat Roberton denuncia a grande revolução escrava do Haiti como um pacto com o diabo, Clinton está ajudando a reduzí-la a uma armadilha turística.

Ao mesmo tempo, os planos de Clinton para o Haiti incluem a expansão da indústria têxtil para tirar vantagem do trabalho barato das massas urbanas. Os Estados Unidos deram isenção fiscal para a indústria têxtil do Haiti para facilitar a volta dos sweatshops ao país.

Clinton celebrou as possibilidades de desenvolvimento dos sweatshops durante um tour de uma fábrica operada e de propriedade do infame Cintas Corp. Ele anunciou que George Soros tinha oferecido 50 milhões de dólares para um novo parque industrial de sweatshops que criaria 25 mil empregos na indústria de roupas. Clinton explicou em uma entrevista que o governo do Haiti poderia criar "mais empregos se reduzisse o custo de fazer negócios, inclusive o custo dos aluguéis".

Como o fundador da TransAfrica, Randall Robinson, explicou ao Democracy Now!, "esse não é o tipo de investimento de que o Haiti precisa. Precisa de investimento de capital. Precisa de investimento para se tornar autosuficiente. Precisa de investimento com o qual possa se alimentar".

Uma das razões pelas quais Clinton pode celebrar os sweatshops de forma tão aberta é que o golpe apoiado pelos Estados Unidos reprimiu toda e qualquer resistência. Livrou o Haiti de Aristide e de seu hábito de aumentar o salário mínimo. Baniu-o do país, aterrorizou seus aliados e barrou o seu partido político, Fanmi Lavalas, o mais popular do país, de disputar o poder. O golpe também atacou organizadores sindicais dentro dos sweatshops.

Como resultado, Clinton pode dizer a empresários: "Seu risco político no Haiti é o menor de toda a minha vida".

Assim, como presidentes anteriores dos Estados Unidos fizeram, o governo Obama tem trabalhado para ajudar a elite do Haiti, patrocinando corporações internacionais que querem tirar vantagem do trabalho barato e enfraquecendo a capacidade do estado do Haiti de regulamentar a sociedade, além de reprimir qualquer resistência política à sua agenda.

* * *

Essas políticas levaram diretamente à incapacitação do estado no Haiti, à infraestrutura dilapidada, aos prédios construídos de forma improvisada, à pobreza desesperada, combinada com furacões e agora com o terremoto, que transformaram desastres naturais em catástrofes sociais.

Enquanto todos devem apoiar a atual tentativa de dar ajuda ao Haiti, ninguém deveria fazê-lo com uma venda nos olhos.

Como disse Engler:

Ajuda ao Haiti sempre foi usada para avançar os interesses imperiais. Isso é óbvio quando você vê como os Estados Unidos e o Canadá trataram o governo de Aristide em contraste com o regime golpista. Os Estados Unidos e o Canadá tiraram quase toda a ajuda de Aristide. Mas depois do golpe eles abriram a torneira de dinheiro para algumas das forças mais reacionárias da sociedade do Haiti.

Devemos portanto agitar contra qualquer tentativa dos Estados Unidos e de outros poderes de usar essa crise para impor seu programa a um país prostrado.

Deveríamos ficar atentos ao papel das ONGs internacionais. Enquanto várias ONGs estão tentando enfrentar a crise, os Estados Unidos e outros governos estão dando dinheiro a elas como forma de enfraquecer o direito do Haiti à autodeterminação. As ONGs internacionais não prestam contas ao estado do Haiti ou à população do Haiti. Assim, o dinheiro da ajuda enviado através delas enfraquece o controle que os haitianos tem sobre sua própria sociedade.

O governo Obama deveria imediatamente suspender o banimento de Aristide do Haiti, assim como do partido dele, o Fanmi Lavalas, de participar do processo eleitoral. Afinal, um conhecido traficante de drogas e golpista, Guy Philippe, e seu partido, a Frente para a Reconstrução Nacional (FRN), foram autorizados a participar do processo eleitoral. Aristide e seu partido, em contraste, são ainda a força política mais popular do país e deveriam tem direito de participar de eleições livres e justas.

Os Estados Unidos também deveriam suspender as deportações de haitianos que fugiram do país por causa da crise e dar a eles status temporário de refugiados. Isso permitiria a qualquer haitiano que fugiu do país por causa da crise política e social desde o golpe, os furacões e agora o terremoto a permanecer legalmente nos Estados Unidos.

Além disso, devemos exigir que os Estados Unidos parem de impor seu planos neoliberais. Os Estados Unidos dilapidaram a sociedade do Haiti por décadas. Em vez do Haiti dever aos Estados Unidos, outros países e instituições financeiras internacionais, o reverso é verdadeiro. Os Estados Unidos, a França, o Canadá e as Nações Unidas devem ao povo do Haiti reparações pelo ataque imperial ao país.

Com esses fundos e espaço político, os haitianos seriam finalmente capazes de começar a construir seu próprio futuro político e econômico -- o sonho da grande revolução dos escravos de 200 anos atrás.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Críticos do PNDH3 ou uma aliança do CCC com a OPUS DEI

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Casoy e Gandra: CCC e Opus Dei unidos

por Altamiro Borges, em seu blog

O “âncora” da TV Bandeirantes, Boris Casoy, resolveu assumir de vez o seu direitismo raivoso. Depois de humilhar os garis que desejaram feliz ano novo - “Que merda. Dois lixeiros desejando felicidades... do alto de suas vassouras... Dois lixeiros... O mais baixo da escala do trabalho” – e de receber uma bateria de duras críticas, ele decidiu radicalizar as suas posições. Nesta semana, Casoy acionou o jurista Ives Gandra, notório militante da seita fundamentalista Opus Dei, para falar sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos, de autoria do ministro Paulo Vannuchi.

Logo na abertura do Jornal da Band, o âncora, que é metido a dono da verdade, dá a sua opinião tendenciosa. “O novo decreto de direitos humanos do governo é criticado pela sociedade e até por ministros de estado. A lei estabelece censura aos meios de comunicação, é contra o direito de propriedade e de liberdade religiosa. Especialistas consideram o projeto o primeiro passo para um regime ditatorial”. Casoy mente descaradamente ao tratar plano como uma imposição autoritária do presidente, já que ele será debatido no parlamento. Quanto aos tais especialistas, ele ouve somente uma “personalidade” ligada à ditadura, ao latifúndio e aos setores mais reacionários da sociedade.

Visão tendenciosa e eleitoreira

Na sequência, um narrador em off reforça a visão preconceituosa e mentirosa. “A nova lei que o presidente Lula assinou sem ler passou pelo crivo direto da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, virtual candidata do PT à presidência da República, e dos ministros da Justiça, Tarso Genro, da Comunicação, Franklin Martins, e dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi. É um emaranhado de artigos e parágrafos que muitas vezes ataca a Constituição”. O objetivo, nesta narração, é nitidamente eleitoreiro, como palanque do tucano José Serra, o candidato da mídia hegemônica.

Criado o cenário para o desgaste do governo, o repórter Sandro Barboza inicia a entrevista com “um dos mais conceituados juristas internacionais”, Ives Gandra. O “jornalista”, que também não esconde suas posições direitistas nas perguntas, apenas deixa de informar aos telespectadores que o bajulado especialista participou da campanha presidencial de Geraldo Alckmin (o tucano que é seguidor do Opus Dei) e defende tudo o que é há de mais retrógrado e conservador na sociedade brasileira. Apesar da ânsia de vômito, vale à pena conhecer a grotesca “entrevista”:

As idéias de um direitista convicto

Jornal da Band: O projeto prevê que o proprietário rural que tiver uma fazenda invadida não poderá mais recorrer ao Judiciário.

Gandra: O que eles tão pretendendo é dar direito àquele que invadir qualquer terra fazer com que uma vez que for invadido o direito de propriedade deixa de ser do proprietário, passa a ser do invasor.

JB: A lei quer evitar a divulgação de símbolos religiosos.

Gandra: Se não pode mais haver símbolos religiosos nós temos que mudar o nome da cidade de São Paulo e todas as cidades que tem nomes de santos não poderão mais ter.

JB: Será criada uma comissão para controlar o conteúdo dos meios de comunicação.

Gandra: No momento em que se elimina a liberdade de imprensa nós estamos perante efetivamente o início de uma ditadura.

JB: Um novo imposto sobre grandes fortunas seria instituído.

Gandra: É um imposto que afasta investimentos porque aquele que formou um patrimônio depois é tributado em todas as operações e ainda vai ser tributado no seu patrimônio pessoal.

JB: As prostitutas contariam com direitos trabalhistas e carteira assinada.

Gandra: Isso não é profissão. Na prática o verdadeiro direito humano é tirar essas moças de onde elas estão e dar profissões dignas a elas.

JB: Os responsáveis pelas torturas durante a ditadura militar seriam julgados. Já os guerrilheiros que também torturaram ficariam livres de qualquer punição.

Gandra: Torturador de esquerda é um santo. Torturador de direita é um demônio. É um decreto preparatório para um regime ditatorial.

O novo “comando do terror”

Com mais esta “reporcagem” no seu currículo, Boris Casoy elimina qualquer ilusão sobre a sua neutralidade e imparcialidade jornalística. O blog Cloaca News, inclusive, conseguiu descobrir a revista Cruzeiro, de 9 de novembro de 1968, que denunciou Casoy como ativista do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). Tem até a foto dele mais jovem. Intitulada “CCC ou comando do terror”, a matéria comprova que este agrupamento promoveu vários atentados terroristas nos anos 1960/1970, inclusive contra os artistas do Teatro Roda Vida e contra os estudantes da USP.

Agora, o âncora fecha o ciclo e se une ao Opus Dei para criar um novo “comando do terror”. Para quem não conhece esta seita religiosa, reproduzo trechos de três artigos de minha autoria:

O Opus Dei (do latim, Obra de Deus) foi fundado em outubro de 1928, na Espanha, pelo padre Josemaría Escrivá. O jovem sacerdote de 26 anos diz ter recebido a “iluminação divina” durante a sua clausura num mosteiro de Madri. Preocupado com o avanço das esquerdas no país, este excêntrico religioso, visto pelos amigos de batina como um “fanático e doente mental”, decidiu montar uma organização ultra-secreta para interferir nos rumos da Espanha. Segundo as suas palavras, ela seria “uma injeção intravenosa na corrente sanguínea da sociedade”, infiltrando-se em todos os poros de poder. Deveria reunir bispos e padres, mas, principalmente, membros laicos, que não usassem hábitos monásticos ou qualquer tipo de identificação.

Reconhecida oficialmente pelo Vaticano em 1947, esta seita logo se tornou um contraponto ao avanço das idéias progressistas na Igreja. Em 1962, o papa João 23 convocou o Concílio Vaticano II, que marca uma viragem na postura da Igreja, aproximando-a dos anseios populares. No seu fanatismo, Escrivá não acatou a mudança. Criticou o fim da missa rezada em latim, com os padres de costas para os fiéis, e a abolição do Index Librorum Prohibitorum, dogma obscurantista do século 16 que listava livros “perigosos” e proibia sua leitura pelos fiéis. “Este concílio, minhas filhas, é o concílio do diabo”, garantiu Escrivá para alguns seguidores, segundo relato do jornalista Emílio Corbiere no livro “Opus Dei: El totalitarismo católico”.

O poder no Vaticano

Josemaría Escrivá faleceu em 1975. Mas o Opus Dei se manteve e adquiriu maior projeção com a guinada direitista do Vaticano a partir da nomeação do papa polonês João Paulo II. Para o teólogo espanhol Juan Acosta, “a relação entre Karol Wojtyla e o Opus Dei atingiu o seu êxito nos anos 80-90, com a irresistível acessão da Obra à cúpula do Vaticano, a partir de onde interveio ativamente no processo de reestruturação da Igreja Católica sob o protagonismo do papa e a orientação do cardeal alemão Ratzinger”. Em 1982, a seita foi declarada “prelazia pessoal” – a única existente até hoje –, o que no Direito Canônico significa que ela só presta contas ao papa, que só obedece ao prelado (cargo vitalício hoje ocupado por dom Javier Echevarría) e que seus adeptos não se submetem aos bispos e dioceses, gozando de total autonomia.

O ápice do Opus Dei ocorreu em outubro de 2002, quando o seu fundador foi canonizado pelo papa numa cerimônia que reuniu 350 mil simpatizantes na Praça São Pedro, no Vaticano. A meteórica canonização de Josemaría Escrivá, que durou apenas dez anos, quando geralmente este processo demora décadas e até séculos, gerou fortes críticas de diferentes setores católicos. Muitos advertiram que o Opus Dei estava se tornando uma “igreja dentro da Igreja”. Lembraram um alerta do líder jesuíta Vladimir Ledochowshy que, num memorando ao papa, denunciou a seita pelo “desejo secreto de dominar o mundo”. Apesar da reação, o papa João Paulo II e seu principal teólogo, Joseph Ratzinger, ex-chefe da repressora Congregação para Doutrina da Fé e atual papa Beto 16, não vacilaram em dar maiores poderes ao Opus Dei.

Vários estudos garantem que esta relação privilegiada decorreu de razões políticas e econômicas. No livro “O mundo secreto do Opus Dei”, o jornalista canadense Robert Hutchinson afirma que esta organização acumula uma fortuna de 400 bilhões de dólares e que financiou o sindicato Solidariedade, na Polônia, que teve papel central na débâcle do bloco soviético nos anos 90. O complô explicaria a sólida amizade com o papa, que era polonês e um visceral anticomunista. Já Henrique Magalhães, numa excelente pesquisa na revista A Nova Democracia, confirma o anticomunismo de Wojtyla e relata que “fontes da Igreja Católica atribuem o poder da Obra a quitação da dívida do Banco Ambrosiano, fraudulentamente falido em 1982”.

O vínculo com os fascistas

Além do rigoroso fundamentalismo religioso, o Opus Dei sempre se alinhou aos setores mais direitistas e fascistas. Durante a Guerra Civil Espanhola, deflagrada em 1936, Escrivá deu ostensivo apoio ao general golpista Francisco Franco contra o governo republicano legitimamente eleito. Temendo represálias, ele se asilou na embaixada de Honduras, depois se internou num manicômio, “fingindo-se de louco”, antes de fugir para a França. Só retornou à Espanha após a vitória dos golpistas. Desde então, firmou sólidos laços com o ditador sanguinário Francisco Franco. “O Opus Dei praticamente se fundiu ao Estado espanhol, ao qual forneceu inúmeros ministros e dirigentes de órgãos governamentais”, afirma Henrique Magalhães.

Há também fortes indícios de que Josemaría Escrivá nutria simpatias por Adolf Hitler e pelo nazismo. De forma simulada, advogava as idéias racistas e defendia a violência. Na máxima 367 do livro Caminho, ele afirma que seus fiéis “são belos e inteligentes” e devem olhar aos demais como “inferiores e animais”. Na máxima 643, ensina que a meta “é ocupar cargos e ser um movimento de domínio mundial”. Na máxima 311, ele escancara: “A guerra tem uma finalidade sobrenatural... Mas temos, ao final, de amá-la, como o religioso deve amar suas disciplinas”. Em 1992, um ex-membro do Opus Dei revelou o que este havia lhe dito: “Hitler foi maltratado pela opinião pública. Jamais teria matado 6 milhões de judeus. No máximo, foram 4 milhões”. Outra numerária, Diane DiNicola, garantiu: “Escrivá, com toda certeza, era fascista”.

Escrivá até tentou negar estas relações. Mas, no seu processo de ascensão no Vaticano, ele contou com a ajuda de notórios nazistas. Como descreve a jornalista Maria Amaral, num artigo à revista Caros Amigos, “ao se mudar para Roma, ele estimulou ainda mais as acusações de ser simpático aos regimes autoritários, já que as suas primeiras vitórias no sentido de estabelecer o Opus Dei com estrutura eclesiástica capaz de abrigar leigos e ordenar sacerdotes se deram durante o pontificado do papa Pio XII, por meio do cardeal Eugenio Pacelli, responsável por controverso acordo da Igreja com Hitler”. Outro texto, assinado por um grupo de católicas peruanas, garante que a seita “recrutou adeptos para a organização fascista ‘Jovem Europa’, dirigida por militantes nazistas e com vínculos com o fascismo italiano e espanhol”.

Pouco antes de morrer, Josemaría Escrivá realizou uma “peregrinação” pela América Latina. Ele sempre considerou o continente fundamental para sua seita e para os negócios espanhóis. Na região, o Opus Dei apoiou abertamente várias ditaduras. No Chile, participou do regime terrorista de Augusto Pinochet. O principal ideólogo do ditador, Jaime Guzmá, era membro ativo da seita, assim como centenas de quadros civis e militares. Na Argentina, numerários foram nomeados ministros da ditadura. No Peru, a seita deu sustentação ao corrupto e autoritário Alberto Fujimori. No México, ajudou a eleger como presidente seu antigo aliado, Miguel de La Madri, que extinguiu a secular separação entre o Estado e a Igreja Católica.

Infiltração na mídia

Para semear as suas idéias religiosas e políticas de forma camuflada, Escrivá logo percebeu a importância estratégica dos meios de comunicação. Ele mesmo gostava de dizer que “temos de embrulhar o mundo em papel-jornal”. Para isso, contou com a ajuda da ditadura franquista para a construção da Universidade de Navarra, que possuí um orçamento anual de 240 milhões de euros. Jornalistas do mundo inteiro são formados nos cursos de pós-graduação desta instituição. O Opus Dei exerce hoje forte influência sobre a mídia. Um relatório confidencial entregue ao Vaticano em 1979 pelo sucessor de Escrivá revelou que a influência da seita se estendia por “479 universidades e escolas secundárias, 604 revistas ou jornais, 52 estações de rádio ou televisões, 38 agências de publicidade e 12 produtores e distribuidoras de filmes”.

Na América Latina, a seita controla o jornal El Observador (Uruguai) e tem peso nos jornais El Mercúrio (Chile), La Nación (Argentina) e O Estado de S.Paulo. Segundo várias denúncias, ela dirige a Sociedade Interamericana de Imprensa, braço da direita na mídia hemisférica. No Brasil, a Universidade de Navarra é comandada por Carlos Alberto di Franco, numerário e articulista do Estadão, responsável pela lavagem cerebral semanal de Geraldo Alckmin nas famosas “palestras do Morumbi”. Segundo a revista Época, seu “programa de capacitação de editores já formou mais de 200 cargos de chefia dos principais jornais do país”. O mesmo artigo confirma que “o jornalista Carlos Alberto Di Franco circula com desenvoltura nas esferas de poder, especialmente na imprensa e no círculo íntimo do governador Geraldo Alckmin”.

O veterano jornalista Alberto Dines, do Observatório da Imprensa, há muito denuncia a sinistra relação do Opus Dei com a mídia nacional. Num artigo intitulado “Estranha conversão da Folha”, critica seu “visível crescimento na imprensa brasileira. A Folha de S.Paulo parecia resistir à dominação, mas capitulou”. No mesmo artigo, garante que a seita “já tomou conta da Associação Nacional de Jornais (ANJ)”, que reúne os principais monopólios da mídia do país. Para ele, a seita não visa a “salvação das almas desgarradas. É um projeto de poder, de dominação dos meios de comunicação. E um projeto desta natureza não é nem poderia ser democrático. A conversão da Folha é uma opção estratégica, política e ideológica”.

A “santa máfia”

Durante seus longos anos de atuação nos bastidores do poder, o Opus Dei constituiu uma enorme fortuna, usada para bancar seus projetos reacionários – inclusive seus planos eleitorais. Os recursos foram obtidos com a ajuda de ditadores e o uso de máquinas públicas. “O Opus Dei se infiltrou e parasitou no aparato burocrático do Estado espanhol, ocupando postos-chaves. Constituiu um império econômico graças aos favores nas largas décadas da ditadura franquista, onde vários gabinetes ministeriáveis foram ocupados integralmente por seus membros, que ditaram leis para favorecer os interesses da seita e se envolveram em vários casos de corrupção, malversação e práticas imorais”, acusa um documento de católico do Peru.

A seita também acumulou riquezas através da doação obrigatória de heranças dos numerários e do dizimo dos supernumerários e simpatizantes infiltrados em governos e corporações empresariais. Com a ofensiva neoliberal dos anos 90, a privatização das estatais virou outra fonte de receitas. Poderosas multinacionais espanholas beneficiadas por este processo, como os bancos Santander e Bilbao Biscaia, a Telefônica e empresa de petróleo Repsol, tem no seu corpo gerencial adeptos do Opus.

Para católicos mais críticos, que rotulam a seita de “santa máfia”, esta fortuna também deriva de negócios ilícitos. Conforme denuncia Henrique Magalhães, “além da dimensão religiosa e política, o Opus Dei tem uma terceira face: da sociedade secreta de cunho mafioso. Em seus estatutos secretos, redigidos em 1950 e expostos em 1986, a Obra determina que ‘os membros numerários e supernumerários saibam que devem observar sempre um prudente silêncio sobre os nomes dos outros associados e que não deverão revelar nunca a ninguém que eles próprios pertencem ao Opus Dei’. Inimiga jurada da Maçonaria, ela copia sua estrutura fechada, o que frequentemente serve para encobrir atos criminosos”.

O jornalista Emílio Corbiere cita os casos de fraude e remessa ilegal de divisas das empresas espanholas Matesa e Rumasa, em 1969, que financiaram a Universidade de Navarra. Há também a suspeita do uso de bancos espanhóis na lavagem de dinheiro do narcotráfico e da máfia russa. O Opus Dei esteve envolvido na falência fraudulenta do banco Comercial (pertencente ao jornal El Observador) e do Crédito Provincial (Argentina). Neste país, os responsáveis pela privatização da petrolífera YPF e das Aerolineas Argentinas, compradas por grupos espanhóis, foram denunciados por escândalos de corrupção, mas foram absolvidos pela Suprema Corte, dirigida por Antonio Boggiano, outro membro da Opus Dei. No ano retrasado, outro numerário do Opus Dei, o banqueiro Gianmario Roveraro, esteve envolvido na quebra da Parlamat.

“A Internacional Conservadora”

O escritor estadunidense Dan Brown, autor do best seller “O Código da Vinci”, não vacila em acusar esta seita de ser um partido de fanáticos religiosos com ramificações pelo mundo. O Opus Dei teria cerca de 80 milhões de fiéis, muitos deles em cargos-chaves em governos, na mídia e em multinacionais. Henrique Magalhães garante que a “Obra é vanguarda das tendências mais conservadoras da Igreja Católica”. Num livro feito sob encomenda pelo Opus Dei, o vaticanista John Allen confessa este poderio. Ele admite que a seita possui um patrimônio de US$ 2,8 bilhões – incluindo uma luxuosa sede de US$ 60 milhões em Manhattan – e que esta fortuna serve para manter as suas instituições de fachada, como a Heights School, em Washington, onde estudam os filhos dos congressistas do Partido Republicano de George W.Bush.

Numa reportagem que tenta limpar a barra do Opus Dei, a própria revista Superinteressante, da suspeita Editora Abril, reconhece o enorme influência política desta seita. E conclui: “No Brasil, um dos políticos mais ligados à Obra é o candidato a presidente Geraldo Alckmin, que em seus tempos de governador de São Paulo costumava assistir a palestras sobre doutrina cristã ministradas por numerários e a se confessar com um padre do Opus Dei. Alckmin, porém, nega fazer parte da ordem”. Como se observa, o candidato segue à risca um dos principais ensinamentos do fascista Josemaría Escrivá: “Acostuma-se a dizer não”.

Os tentáculos no Brasil

No Brasil, o Opus Dei fincou a sua primeira raiz em 1957, na cidade de Marília, no interior paulista, com a fundação de dois centros. Em 1961, dada à importância da filial, a seita deslocou o numerário espanhol Xavier Ayala, segundo na hierarquia. “Doutor Xavier, como gostava de ser chamado, embora fosse padre, pisou em solo brasileiro com a missão de fortalecer a ala conservadora da Igreja. Às vésperas do Concílio Vaticano II, o clero progressista da América Latina clamava pelo retorno às origens revolucionárias do cristianismo e à ‘opção pelos pobres’, fundamentos da Teologia da Libertação”, explica Marina Amaral na revista Caros Amigos.

Ainda segundo seu relato, “aos poucos, o Opus Dei foi encontrando seus aliados na direita universitária... Entre os primeiros estavam dois jovens promissores: Ives Gandra Martins e Carlos Alberto Di Franco, o primeiro simpático ao monarquismo e candidato derrotado a deputado; o segundo, um secundarista do Colégio Rio Branco, dos rotarianos do Brasil. Ives começou a freqüentar as reuniões do Opus Dei em 1963; Di Franco ‘apitou’ (pediu para entrar) em 1965. Hoje, a organização diz ter no país pouco mais de três mil membros e cerca de quarenta centros, onde moram aproximadamente seiscentos numerários”.

Crescimento na ditadura

Durante a ditadura, a seita também concentrou sua atuação no meio jurídico, o que rende frutos até hoje. O promotor aposentado e ex-deputado Hélio Bicudo revela ter sido assediado duas vezes por juízes fiéis à organização. O expoente nesta fase foi José Geraldo Rodrigues Alckmin, nomeado ministro do STF pelo ditador Garrastazu Médici em 1972, e tio do atual presidenciável. Até os anos 70, porém, o poder do Opus Dei era embrionário. Tinha quadros em posições importantes, mas sem atuação coordenada. Além disso, dividia com a Tradição, Família e Propriedade (TFP) as simpatias dos católicos de extrema direita.

Seu crescimento dependeu da benção dos generais golpistas e dos vínculos com poderosas empresas. Ives Gandra e Di Franco viraram os seus “embaixadores”, relacionando-se com donos da mídia, políticos de direita, bispos e empresários. É desta fase a construção da sua estrutura de fachada – Colégio Catamarã (SP), Casa do Moinho (Cotia) e Editora Quadrante. Ela também criou uma ONG para arrecadar fundos: OSUC (Obras Sociais, Universitárias e Culturais). Esta recebe até hoje doações do Itaú, Bradesco, GM e Citigroup. Confrontado com esta denúncia, Lizandro Carmona, da OSUC, implorou à jornalista Marina Amaral: “Pelo amor de Deus, não vá escrever que empresas como o Itaú doam dinheiro ao Opus Dei”.

Ofensiva recente na região

Na fase recente, o Opus Dei está excitado, com planos ousados para conquistar maior poder político na América Latina. Em abril de 2002, a seita participou ativamente do frustrado golpe contra o presidente Hugo Chávez, na Venezuela. Um dos seus seguidores, José Rodrigues Iturbe, foi nomeado ministro das Relações Exteriores do fugaz governo golpista. A embaixada da Espanha, governada na época pelo neo-franquista Partido Popular (PP), de José Maria Aznar – cuja esposa é do Opus Dei –, deu guarita aos seus fiéis. Outro golpista ligado à seita, Gustavo Cisneiros, é megaempresário das telecomunicações no país.

Em dezembro do ano passado, o Opus Dei assistiu a derrota do seu candidato, Joaquim Laví, ex-assessor do ditador Augusto Pinochet, à presidência do Chile. Já em maio deste ano, colheu uma nova derrota com a candidatura de Lourdes Flores, declarada numerária do partido Unidade Nacional. Em compensação, a seita comemorou a vitória do narco-terrorista Álvaro Uribe na Colômbia, que também dispôs de milhões de dólares do governo George Bush. Já no México, outro conhecido simpatizante do Opus Dei, Felipe Calderon, ex-executivo da Coca-Cola, venceu uma das eleições mais fraudulentas da história deste país.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Comparato, na CartaCapital: Nem República, nem Democracia

Nem República, nem Democracia

08/01/2010 12:45:51

Gilberto Nascimento e
Wálter Fanganiello Maierovitch



No Brasil, hoje, não existe “nem República, nem democracia, nem Estado de Direito”, segundo o jurista Fábio Konder Comparato. Professor emérito da USP, doutor pela Sorbonne e Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, Comparato observa que a atual Constituição já foi remendada 68 vezes, mas em nenhuma dessas ocasiões o povo foi consultado.

O jurista tornou-se um crítico implacável do atual governo. “Lula não enfrentou os grandes problemas nacionais. E não o fez porque põe em primeiro lugar o seu poder e prestígio”, avalia.

Comparato diz ainda que Lula tenta exercer influência sobre ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) nomeados por ele. “Alguém do próprio Supremo me contou que o presidente, em alguns casos, antes do julgamento, chama os ministros que nomeou para dizer qual a vontade dele. Eu espero que eles não cumpram a vontade do presidente”, afirma.

CartaCapital: O fato de escândalos virem à tona hoje seria sinal de uma melhora no País? O sistema jurídico funciona a contento?
Fábio Konder Comparato: Eu descobri, num conto de Machado de Assis, a explicação que sempre procurava sobre o caráter nacional brasileiro. O conto é “O Espelho” e trata-se de alguém que numa roda de amigos afirma com espanto geral que cada um de nós tem duas almas. Tem uma alma externa que é aquela sempre mostrada ao público e, muitas vezes, é utilizada para nos julgarmos. E tem uma alma interna que é sempre escondida e serve para nós julgarmos o mundo de dentro para fora.

O nosso sistema jurídico político de fato tem duas almas, ele é dúplice em ambos os sentidos da palavra: é dobrado e dissimulado. Existe a alma externa que pode ser resumida no princípio de que todos são iguais perante a lei, mas existe a alma interna que não sustenta, mas está plenamente convencida de que há sempre alguns que são mais iguais do que os outros.

CC: O senhor poderia dar um exemplo?
FKC: Os exemplos abundam. Nesse particular, gostaria de lembrar mais um exemplo literário. Nas “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida, três senhoras vêm à casa do Major Vidigal, que era o chefe de polícia, para pedir a condescendência dele em relação a um jovem soldado. O major fecha a carranca e diz que não pode fazer nada porque existe uma lei. Uma das senhoras diz: “ora a lei, a lei é o que senhor major quiser”. Então, completa o Manuel Antonio de Almeida: “o major sorriu-se com cândida inocência”. É um pouco isto.

A lei existe, em princípio, igual para todos. Mas sabemos. Como no último caso do “Arrudagate” em Brasília, a lei penal dificilmente se aplica ou não se aplica a todos aqueles que estão no poder. É exatamente isso que explica o fato de termos uma Constituição modelar, mas a nossa vida política estar muito longe do modelo constitucional. A Constituição se abre com a declaração de que a República Federativa do Brasil é um estado democrático de Direito e, na verdade, nós não temos nem República, nem Democracia, nem Estado de Direito.

CC: Por que não?

FKC: No Brasil não existe a consciência de bens públicos. Quando um bem não é propriedade particular de alguém, ele não pertence a ninguém. Então, a grilagem de terras públicas e a utilização de canais de comunicação, com o espaço público usado para a defesa exclusiva de interesses privados, é a regra geral. Um outro exemplo que todos conhecem no exercício dos cargos públicos: existe uma regra de ouro (uma referência moral): ‘Mateus, primeiros aos teus’. Quanto à democracia, a nossa alma interior, para voltar à comparação inicial, é e sempre foi a oligarquia. Povo não existe porque, a rigor, ele só passa a ter consciência dele mesmo nas grandes disputas futebolísticas. Fora disso, o povo não tem consciência de que ele existe, de que é digno e merece ser tratado com respeito.

Numa democracia, a norma ou conjunto de normas supremas que é a Constituição, obviamente, tem que ser aprovada pelo soberano. A soberania do povo é o supremo poder de controle. Mas nenhuma Constituição brasileira, até hoje, foi aprovada pelo povo. A atual Constituição já foi remendada 68 vezes, o que dá a apreciável média de mais de três remendos por ano. Em nenhuma dessas ocasiões chegou-se sequer a pensar em consultar o povo. Já não digo pedir a aprovação. E o Estado de Direito? Vou dar um exemplo gritante: os controles jurídicos sobre os poderes do Estado, Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público são muito débeis, em alguns casos totalmente inexistentes.

Um exemplo atual com relação ao Ministério Público Federal: em outubro de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados de Brasil (OAB), por uma proposta minha, decidiu ingressar com uma argüição de descumprimento de preceito fundamental no STF objetivando a definição, pelo tribunal, sobre a abrangência da lei de anistia de 1979. Ela beneficia ou não os homicidas, torturadores, estupradores do regime militar? Pela lei que rege essa demanda, o Ministério Público, quando não é o arguente, tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria Geral da República foi intimada no dia 2 de fevereiro de 2009 a se manifestar e, até hoje, mais de dez meses depois, não devolveu os autos. Em agosto desse ano eu fiz uma petição ao relator, pedindo a ele que mandasse requisitar os autos. Essa petição não foi sequer despachada porque os autos não estavam no STF.

Ora, existe uma lei que regula os casos de improbidade administrativa. Um deles é deixar de praticar ato de ofício ou praticá-lo contra a disposição expressa de lei. Acontece que esta ação de improbidade administrativa é proposta unicamente pelo Ministério Público. Então, o que pode fazer a OAB? Representar à Procuradoria Geral da República dizendo que o seu chefe cometeu uma improbidade administrativa?

CC: Nesse caso, fala-se de 144 mortes sob tortura e 125 desaparecidos...
FKC: Exatamente. Mas essa insensibilidade é histórica. Durante quase quatro séculos nós tivemos uma escravidão. Foram escravizados cerca de cinco milhões de africanos e afro descendentes. O regime da escravidão era de uma crueldade exemplar. De tal maneira cruel, sobretudo no campo, que o escravo para sair da escravidão só tinha dois caminhos: o suicídio ou a fuga.

Hoje nenhuma escola fundamental do Brasil, pública ou privada, ensina aos jovens brasileiros o que foi o crime coletivo da escravidão. Nós, no dia 13 de maio de 1888, viramos a página. E é isso o que queremos fazer hoje com os horrores do regime militar. Está nos nossos costumes. O pior é que nos consideramos um povo bom, compassivo, generoso. Toda vez que falo o contrário, sou duramente criticado. Ou então acham que, como dizia a minha santa mãe, já nasci com mau humor.

CC: Por que não existem no Brasil mecanismos para revogar mandatos?
FKC: A ausência desses mecanismos de democracia efetiva tem origem no longo costume de dominação absoluta da qual a escravidão é um dos elementos. Para o povo em geral, quem está no poder pode praticar quaisquer crimes. Se ele for generoso, se for um benfeitor para o povo, está absolvido. O povo, de modo geral, não tem consciência de que tem direitos. Para ele, direito é uma vantagem que às vezes ele obtém, outras vezes não. Essa noção de que direito é uma exigência não entrou na mentalidade popular.

Acabei de ler Eça de Queiroz. Para ele, delegar poderes importa possuir direitos. Quem possui um direito e um poder e o delega, tem direito a retirá-lo. No caso contrário, a delegação era uma coisa ilusória. Não se diria chamar delegação, diria chamar-se abdicação. Pois bem, tenho também na minha passagem pelo conselho federal da OAB a satisfação de ter proposto e obtido a concordância do conselho para que se propusesse ao Congresso Nacional uma emenda da Constituição criando o recall. Isto foi feito em 2005, com a emenda constitucional numero 73, no Senado Federal.

Ela foi assinada em primeiro lugar pelos senadores Pedro Simon (PMDB-RS) e Eduardo Suplicy (PT-SP). Hoje, me dou conta de que, nessa proposta, criei condições muito difíceis para que o recall acontecesse por iniciativa popular. O proponente, o senador Simon, ultimamente resolveu fazer um aditivo no qual torna ainda mais exigente a condição prévia para que possa haver o recall. Qual o objetivo disso? Eles não querem o recall? Eles querem sim, mas como fachada. Exatamente o que acontece com o plebiscito e o referendo. Eles dirão que a nossa constituição prevê plebiscito e referendo só que essas manifestações da vontade soberana popular só podem existir com autorização do Congresso. Somos tão inventivos em matéria jurídica que criamos a figura do mandante, que depende da autorização do mandatário para poder exprimir a sua vontade.

CC: A respeito da censura, o que acontece quando veículos de comunicação passam a manipular informações?

FKC: Esse é um ponto fundamental para a nossa abertura. A verdadeira democracia republicana. Nós precisamos distinguir liberdades públicas das liberdades privadas. As liberdades públicas dependem de uma regulação legal ou constitucional. Toda vez que, por exemplo, as eleições não são reguladas, não existe a liberdade privada eleitoral. Foi o que aconteceu durante o regime militar. Em matéria de comunicação de massa estamos hoje enfrentando uma supressão da liberdade pública. Porque a liberdade pública significa uma regulação da manifestação social por esses veículos de comunicação social, no sentido de impedir que eles se utilizem desse instrumento da maior importância em beneficio próprio. Quando se diz, por exemplo, que o rádio e a televisão usam o espaço público, isso significa um espaço do povo, não é do Estado.

O Estado tem que administrar esse espaço que pertence ao povo. É exatamente por isso que não deveria haver, mas há, concessão de rádio e televisão sem que o Estado se manifeste, sem licitação pública. A concessão pública exige licitação e toda a renovação de concessão de rádio e televisão é feita sem licitação. Agora, me manifestei em nome do Conselho Federal da OAB na renovação da concessão do Canal 21 de Televisão. Essa rede pertence à Bandeirantes, mas foi arrendada. Porque ela ganha muito mais dinheiro arrendando do que usando. Isto é a demonstração daquilo que nós vínhamos falando antes. Não existe bens públicos quando alguém chega a ter a posse de alguma coisa que é pública, que é do povo. Ele considera isso propriedade dele. Então, pode vender, arrendar, fazer o que quiser.

CC: Com a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) essa situação pode mudar?
FKC: Tenho muita esperança. A Confecom foi o grande passo avante. Tanto que algumas entidades de rádio e televisão se retiraram. Ou seja, elas têm medo. O importante é levantar as idéias. Quando elas são justas, protegem a dignidade do povo, mais cedo ou mais tarde acabam sendo admitidas. A mídia impressa até metade do século XX era um contra-poder. Atuava para a manifestação de opinião livre. É exatamente por isso que não só o Estado como a Igreja procuraram censurar a imprensa, a edição de livros etc. Mas a partir de meados do século XX, houve uma mudança radical nesse panorama, criou-se um processo de concentração empresarial.

Não só dos órgãos de imprensa, mas também de rádios, televisão e internet, formando conglomerados. Nos Estados Unidos, no começo dos anos 1980, havia mais de 100 redes de televisão. Hoje, existem cinco apenas. Até 1996, os EUA foram um modelo de regulamentação dos meios de comunicação de massa para evitar a concentração. A maioria republicana conseguiu derrubar essa regulamentação. Agora, a concentração empresarial dos meios de comunicação de massa se espraia para o mundo todo. Hoje, os meios de comunicação de massa são aliados do poder. Os governos não querem de forma alguma entrar em choque com os grandes órgãos de comunicação. É aquela prudência de que falava Tancredo Neves ao aconselhar um jovem político mineiro: “meu filho, brigue com quem você quiser, menos com a Rede Globo”. Agora, a decisão do STF que considera revogada a lei de imprensa é um escárnio. Ela só faz aumentar abusivamente um poder que já não tem limites.

Por exemplo: fui qualificado carinhosamente pelo diretor de redação da Folha de S. Paulo, Otávio Frias Filho, de cínico e mentiroso. Eu tinha na época o direito de resposta e usei. Hoje, eu não poderia mais usar o direito de resposta. Vocês dirão: mas como, está na Constituição. O próprio acórdão do STF diz que o direito de resposta continua válido. Sim, mas sem regulamentação não há direito de resposta. Eu mando a minha resposta ao jornal e ele publica quando ele quiser, como ele quiser. Ele pode publicar a minha resposta e, logo em seguida, como fez a Folha de S. Paulo, escrever uma nota me insultando. Estamos hoje numa posição realmente critica.

CC: No Brasil, se criou um discurso de um órgão de controle externo do judiciário onde, na sua composição, a maioria dos controladores são magistrados. Como o senhor vê esse quadro de não participação do cidadão na Justiça?
FKC: É a ausência do Estado de direito. Os antigos diziam: “é preciso que haja governo das leis, não governo dos homens”. Hoje, nós consagramos no mundo inteiro o princípio da separação de poderes. Mas esquecemos que o principio da separação de poderes é uma das formas de controle do poder.

Existe uma outra forma que é a vertical, ou seja, do povo em relação àqueles que estão exercendo cargos públicos. Em relação ao Judiciário, os controles são mínimos, senão inexistentes. E o que é mais extraordinário para nós é verificar que a Constituição imperial de 1824 tinha uma ação popular criminal contra juízes de direito. Eu vou ler o artigo 157: “Por suborno, peita, peculato e concussão, haverá contra eles, juízes de direito, ação popular que poderá ser intentada dentro de ano e dia pelo próprio queixoso ou por qualquer do povo guardada a ordem do processo estabelecida na lei.”

Hoje, é obvio que precisamos instituir ouvidorias populares em relação ao funcionamento do Judiciário. Isso desde o município até os órgãos superiores. Uma das formas mais abusivas de manifestação dos magistrados é o fato de eles se considerarem livres para fazer quaisquer comentários sobre a situação política econômica e social do País e, até mesmo, sobre causas em curso. Propus ao conselho federal da OAB que se incluísse no código de ética da magistratura a proibição do magistrado dar entrevistas à imprensa. A declaração dele tem que ser nos autos. No momento em que o Judiciário brasileiro perde a confiança ou não adquire a confiança ele está sujeito a ratear. As questões mais importantes acabam não sendo decididas ou são decididas em função de interesses particulares.

CC: Cortes constitucionais na Europa têm juízes com mandatos de sete anos sem recondução. Poderia ser fixado um tempo de mandato?
FKC: Em princípio, sou a favor para os tribunais superiores. No meu projeto de constituição de 1985, eu previa isto. Previa também uma regra de estrito controle da atuação dos magistrados no que diz respeito à honestidade. O fundamental é estabelecer uma regra de nomeação que não passe pela Presidência da República. No Brasil, não temos um sistema presidencial de governo. Temos o presidencialismo. O presidente da República Federativa do Brasil tem mais poderes que o presidente dos Estados Unidos, sobretudo no caso de nomeação de juízes para os tribunais superiores. Sei o que é isso porque tenho acompanhado no conselho federal da OAB a disputa para obter as boas graças do presidente. E não é só para magistrados dos tribunais superiores. No caso de chefe do ministério público, é um absurdo total. Vejam agora o caso do governador José Roberto Arruda. É só o procurador geral de justiça do Distrito Federal que pode denunciá-lo. Mas ele foi nomeado pelo Arruda. Como vai denunciá-lo?

A mesma coisa acontece com os juízes do STF. Alguém do próprio Supremo me contou que o atual presidente da República em alguns casos, antes do julgamento, chama os ministros que nomeou para dizer qual a vontade dele. Eu espero que os ministros chamados não cumpram a vontade do presidente. Eu tive a ocasião de dizer ao Lula, em março de 2003, quando fui visitá-lo em Brasília e estava próxima a nomeação de um ministro do STF: “Lula, você tem que saber que o ministro do Supremo não é juiz do presidente da República. Ele não está ligado ao presidente. Ele é um juiz que deve gozar da confiança do povo. Você tem que escolher o melhor na sua apreciação, mas não necessariamente aquele que é mais ligado a você”. Naquela época, eu ainda tratava o ilustre presidente de você porque tinha um longo período de amizade.

CC: Havia uma regra de ouro (uma referência moral) de que, para uma função no Supremo, não se postula e também não se rejeita.
FKC: Foi dita por Afonso Pena, por ocasião da nomeação de Pedro Lessa (em 1907). Ele sugeriu o nome e o Pedro Lessa, que era um ilustre professor catedrático de filosofia de direito, mineiro, como o presidente Afonso Pena, tomou o trem e foi ao Rio de Janeiro. Disse ao presidente que ficava muito honrado com aquela lembrança do nome dele, mas que ele não poderia aceitar porque tinha um grande escritório de advocacia em São Paulo e era professor da faculdade de Direito. Afonso Pena ouviu tranquilamente e limitou-se a dizer: professor, eu cumpri meu dever, agora resta saber se o senhor vai cumprir o seu. E ele voltou para São Paulo e mandou um telegrama dizendo que aceitava.

CC: Um jurista disse recentemente que os primeiros seis meses de um ministro não podia ser levado muito em conta porque ele teria algumas obrigações com relação ao chefe do executivo que o tinha nomeado. Isso existe? É possível alguém com formação jurídica não saber que o juiz é independente?

FKC: Em muitos casos sim, tanto que eu soube do desconsolo do presidente em relação ao ministro por ele nomeado que votava contra os interesses do governo. E ele reclamou, com a linguagem elegante que lhe é peculiar, desse ministro. Alguém observou a ele que o ministro não era subordinado à Presidência. A respeito da independência, acho natural que haja um sentimento de gratidão. Entre vários concorrentes, se eu sou o escolhido e tenho certeza de que não fui pressionar aquele que me nomeou, sinto um respeito e gratidão pelo responsável pela nomeação. Mas é exatamente isso que não deve acontecer. Eu volto ao caso do procurador-geral da República e do procurador-geral de Justiça nos estados e no DF. Ele é nomeado e algum tempo depois recebe um inquérito em que o chefe do executivo está envolvido em corrupção. O que ele vai fazer?

Vai pedir uma audiência ao chefe do executivo e perguntar: “O senhor me permite que eu o denuncie?” Quais são os casos históricos de chefes de executivo que foram denunciados pelo chefe do Ministério Público? Eu só conheço um. É um grande mérito daquele que pôde assim proceder, o Dr. Aristides Junqueira Alvarenga (procurador-geral da República entre 1989 e 1995). Ele denunciou o então presidente Fernando Collor. Um outro aspecto que me leva a condenar a nomeação de juízes de tribunais superiores pelo presidente é que, praticamente, não há controle do Senado. Nos Estados Unidos, mais de 50 juízes indicados pelo presidente não foram aceitos pelo Senado. No Brasil só houve um caso.

CartaCapital: Nos últimos 40 anos, nunca se condenou um político no Brasil. Uma coisa é ser agradado, outra é ficar agradecido. Quando alguém é escolhido pelo presidente da República, evidentemente a pessoa se sente agradada por ter sido escolhida e por preencher as condições. Mas agradecido no sentido de dever favores e ter que prestigiar são coisas absolutamente diferentes.
FKC: No começo da República, a Constituição de 1891 tinha um sistema estranho de nomeação de ministros do Supremo Tribunal Federal. O ministro era nomeado pelo presidente, tomava posse e só depois havia o controle do Senado. Naquela época, o Floriano Peixoto estava em litígio com o Supremo devido às truculências de que ele era habitual. Era a época dos famosos habeas corpus, da extensão brasileira do habeas corpus que se deve a Rui Barbosa (jurista) e Pedro Lessa (ministro do STF nomeado em 1907). Então, o Floriano, quando abriu uma vaga no Supremo, disse: “Muito bem, agora eu quero ver como eles vão se comportar”. Ele nomeou o seu médico, o Dr. Barata Ribeiro. E aguardou. Passado um ano, o Senado rejeitou a nomeação. Todos disseram que todos que o Dr. Barata Ribeiro atuou muito bem, ele foi um excelente juiz.

Na época do Getúlio, o meu querido tio, Evandro Lins e Silva, que foi um dos maiores advogados criminalistas que esse país já conheceu, além de procurador-geral da República, atuou na época do infame Tribunal de Segurança Nacional na defesa de presos políticos. Ele impetrou mais de mil habeas corpus na época, sempre gratuitamente, seguindo a imagem de João Mangabeira (jurista, político e escritor), que ele auxiliava. E ele sempre me contou esse episódio: vagou um cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal e o Getúlio resolveu nomear o presidente do Tribunal de Segurança Nacional, Frederico de Barros Barreto e, no dia seguinte da nomeação (na época não havia Senado), o Evandro foi, como ele sempre fazia todos os dias de expediente, ao cartório do Tribunal de Segurança Nacional e ao chegar ele viu que o escrivão se levantou e veio ter com ele e disse: “Dr. Evandro, eu sou candidato ao Supremo Tribunal Federal porque reputação ilibada o senhor não há de me negar. E o notável saber jurídico vem no decreto”.

CC: E não temos um foro privilegiado para examinar de pronto violação de princípios fundamentais. Por outro lado, temos foro privilegiado para as autoridades, bem como prisão especial...
FKC: É porque nós não temos espírito republicano. Como eu dizia, o espírito republicano está nos costumes e na mentalidade social, de modo que nós temos que trabalhar nesse sentido. Como reformar a mentalidade social, como reformar os costumes? Eu tenho a grata satisfação de ter procurado contribuir modestamente nesse sentido e criei uma escola de governo, em São Paulo, e já conta com algumas filias fora de São Paulo.

É um trabalho lento, mas ele tem que ser feito no sentido de abrir a mentalidade para essa necessidade de se considerar que o bem comum do povo está sempre acima do interesse particular, seja de sindicatos, de partidos, de igrejas, da própria burocracia estatal. E isso significa que numa verdadeira sociedade republicana não há privilégios, ou seja, ninguém pode gozar de um direito especifico só para ele. A palavra privilégio vem do latim (privilegium, formado a partir de privus, privado, e lex, lei), ou seja, uma lei particular, além das leis gerais fazem-se leis específicas para beneficiar fulano ou sicrano.

CC: Quais as conseqüências de mais um escândalo, o do DEM em Brasília, para o País?
FKC: É mais uma vez um caso em que o povão dirá: “fulano roubou, o único erro dele é que não soube roubar. Ele não foi inteligente. Então, vou ser inteligente e vou roubar”. Essa é a consequência. Mas em relação ao caso Arruda, acho que poderíamos, desde logo, ensaiar algo que venho tentando há algum tempo. Está previsto na Constituição brasileira uma ação penal privada substitutiva da ação pública. Isto ninguém até hoje tentou fazer. Nós temos que ver, julgar e agir. Eu já mandei uma mensagem ao conselho seccional da OAB propondo que seja feita uma representação ao Ministério Público do DF apontando todos os crimes cometidos pelo governador e seus amigos do bolso.

Aguardemos a conclusão do inquérito policial. Apresentado o inquérito policial, se em cinco dias o Ministério Público não propuser a ação penal, qualquer um pode, como cidadão, propor uma ação penal substitutiva. Isso pode não dar certo, mas é um precedente e nós temos que multiplicar precedentes desse tipo. É a necessidade de uma cidadania ativa, até no campo judiciário. O cidadão não é alguém que recebe benefícios do governo e tem direito à bolsa-família. É alguém que participa do governo.

CC: O nosso Código de Processo Penal prevê prisão cautelar preventiva quando há indicativos de o acusado continua a operar como chefe de organização criminosa. Esse instrumento não pode ser aplicado ao caso Arruda? Afinal, ele continua a manipular o legislativo do DF, distribui verbas públicas...
FKC: Faz pressão sobre a polícia... A minha proposta ao Conselho Federal da OAB, que aceitou e foi ao judiciário, é a autonomia da polícia judiciária. A polícia judiciária não pode ficar submetida ao chefe do poder executivo porque ela tem que ter liberdade de investigar os crimes eventualmente cometidos pelo chefe do executivo e seus secretários ou ministros.

CC: Há quem defenda (no Supremo essa questão está pendente) que o Ministério Público não pode investigar.
FKC: Eu fiz a proposta de emenda constitucional e mantive contato com a Polícia Federal, tenho alguns amigos lá, e alguns aceitaram a idéia, mas no seio da Polícia Federal não prosperou por causa do segundo escalão. Eles não querem autonomia, querem continuar dentro do Executivo e, evidentemente, se não houver pressão dos órgãos policiais o Congresso não vai decidir.

CC: Por que no Brasil não há a punição dos responsáveis por mortes e torturas na ditadura?

FKC: Nós temos essa tradição da página virada. Não nos esqueçamos de que grande parte dos arquivos da escravidão foram eliminados no começo da República. Eu quero prestar uma homenagem à CartaCapital, que é um dos raros meios de comunicação que enfrenta esse problema. A grande maioria dos veículos quer que os horrores do regime militar continuem fechados a sete chaves.

CC: O STF pode vir a concluir que a anistia não beneficiou os torturadores?

FKC: O STF vai ter que mostrar a cara. Vai dizer perante o público, não só no Brasil, mas na América Latina e no mundo todo, se realmente os donos do poder podiam, antes de largarem o poder, absolver antecipadamente os homicidas, os torturadores e os estupradores que trabalharam para eles. Nós tivemos um terrorismo de Estado no Brasil. E a própria lei de 1979 diz que não são abrangidos pela anistia aqueles que cometeram atos de terrorismo. Uma razão a mais para o STF considerar que a lei não pode beneficiar esses criminosos. Eu encaro essa decisão do STF como um grande avanço e qualquer que seja a decisão o assunto não vai ser encerrado.

Se, na pior das hipóteses, que eu espero não acontecer, o STF julgar improcedente a arguição de descumprimento de preceito fundamental, eu, se ainda estiver em vida, ou vários outros militantes de direitos humanos e de outras organizações, inclusive a própria OAB, iremos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para fazer uma denúncia contra o Estado brasileiro. Acho muito difícil que a Corte Americana de Direitos Humanos absolva o Estado brasileiro porque nós somos o único país na América que se recusou, até hoje, a processar e julgar os criminosos que atuaram em defesa da ditadura.

CC: Como o senhor vê a posição do atual governo, que tem ministros contrários aos torturadores, como Paulo Vanucchi, e teve um advogado geral da União, José Antonio Toffoli, defendendo que a anistia perdoou esses criminosos?

FKC: Tenho muita dificuldade em aceitar isso do presidente da República. Ele não cumpre o seu dever de ofício. Ele tinha que manifestar sua posição como presidente num caso de dignidade nacional. Mas segue a sua linha política de conciliação e negociação. Ora, não se negocia com a dignidade humana. Eu disse isso na última conversa última que tive com ele. Quando lhe falei a respeito da política econômica e dos juros, que na época estavam sufocando a economia brasileira, ele disse que negociava com os banqueiros. Eu devia ter dito a ele: “Lula, você não é mais dirigente sindical, você é presidente da República, o presidente não negocia com banqueiros. Ele cumpre a Constituição e atua em beneficio do povo”.

CC: Qual a função da universidade nos dias de hoje?
FKC: No capitalismo, todos nós temos que venerar o Deus mercado e levamos a ele em seu altar algumas pessoas a serem sacrificadas, no caso são os trabalhadores, os consumidores, enfim, o povo pobre sofrido. O que acontece é que o padrão das universidades no Brasil caiu verticalmente com o regime militar, devido à privatização. A política do regime militar é a de isolar e fazer definhar as universidades públicas, porque considerava que eram focos, ninhos de revoltas contra os militares. Então deu todas as facilidades para o desenvolvimento das faculdades de fim de semana, das faculdades pague-passe e tornou isso a regra geral. E as próprias universidades públicas vêm sofrendo de uma doença terrível, que é a doença da alienação. Um dos aspectos da falta de espírito republicano.

Cada um só pensa em si. Isto é, o professor só que saber da sua carreira, o diretor do relatório final, o reitor idem e as universidades vão se afastando cada vez mais dos grandes problemas nacionais. Nós tivemos a redação de uma Constituição, de 1988, sem nenhuma participação expressiva do meio universitário, é como se isso não interessasse às universidades. Nós estamos agora com problemas de energia e as universidades são colocadas à margem desses problemas, chamam-se as grandes empresas, os empresários têm uma visão, segundo eles, muito mais aberta, atilada, dos problemas brasileiros. E no fundo, o meio estudantil sente isso. Ele sente que as universidades não abrem caminho para atuar naquilo que interessa, ou abrem um só caminho, que é aquilo que foi citado, que é o do mercado.

O espírito capitalista sempre existiu no Brasil, nós somos um dos primeiros países capitalistas do mundo - no século XVI totalmente capitalistas, de mentalidade e de instituições - e em relação a isso é preciso também um grande trabalho de educação. Uma das minhas críticas mais acerbas aos grupos religiosos, às igrejas cristãs em particular, é o fato de elas não enxergarem que o espírito do capitalismo é um espírito absolutamente antievangélico. Há uma frase de Jesus nos evangelhos que eu costumo citar e que a meu ver é definitiva: “não podeis servir a dois senhores porque ou odiareis um e amareis o outro ou vos afeiçoareis a um e desprezareis o outro”. Sempre aquela duplicidade semítica, não podeis servir a Deus e ao dinheiro.

CC: Qual a sua avaliação do governo Lula?
FKC: Sob vários aspectos, o governo Lula foi bem melhor do que o governo Fernando Henrique, porque o governo FHC foi o apogeu da privatização e do negocismo. E isso foi um crime, foi um crime contra o Brasil, nós ainda não temos consciência disso porque predomina entre nós esse espírito capitalista. Eu tive o orgulho de ser um dos autores de uma ação popular contra a venda na Bacia das Almas da Companhia Vale do Rio Doce e pude ver como o poder econômico exerce uma pressão absoluta sobre Executivo, Legislativo e como ele exerce uma pressão dificilmente resistível no Judiciário. Lula teve menos retrocessos.

Ao menos ele não retrocedeu à privataria do governo FHC. Esse período foi o apogeu da privatização e do negocismo. Mas o Lula não enfrentou os grandes problemas nacionais. E não o fez porque ele põe em primeiro lugar o seu poder e o seu prestígio. Ele é o maior talento demagógico que o Brasil já conheceu, muito superior ao de Jânio Quadros. Dificilmente, na história do Brasil nunca houve um governante que tivesse uma tal aprovação popular e ao mesmo tempo que tivesse toda a confiança dos proprietários, dos empresários, dos poderosos. Sob o aspecto de poder pessoal ele é um sucesso absoluto.

CC: Quais os principais desafios do próximo presidente?

FKC: Ele tem que enfrentar a crise mundial econômico-financeira, que não foi debelada e está sendo camuflada no Brasil graças às grandes habilidades do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Venho repetindo há quase 30 anos, como João Batista no deserto, que todos os países, sobretudo os subdesenvolvidos, devem ter um sistema de previsão e planejamento. É preciso criar no Brasil um órgão de planejamento independente do Executivo, com participação dos setores importantes da sociedade civil, dos empresários, mas também dos trabalhadores, de grupos sociais vulneráveis e das universidades.

O que acontece é que nós vivemos sempre da mão para a boca e de um dia para o outro. Existe um apagão, “ah, foi um imprevisto, um raio que caiu”. Como vai ser se amanhã se nós voltarmos a crescer, será que nós temos capacidade energética para crescer? Enfim, em planejamento o Brasil é um mistério, eu tenho impressão de que é quase um mistério sagrado, ninguém chega perto porque tem medo das consequências. E isso é fundamental.

É preciso criar um órgão que seja o cérebro desse país. Se tivéssemos planejamento e previsão, não dependeríamos do mandato do chefe do executivo. Por que nesse país nunca se faz uma obra com previsão de duração de mais de quatro anos? Porque ninguém quer fazer obras públicas para serem inauguradas pelo seu sucessor. Por que nunca se fez um programa sério de educação? Porque um programa sério de educação significa formar professores, os professores não se formam em quatro anos, e assim por diante. Não tenho mais confiança ou esperança em pessoas. Tenho em mudança institucional e de mentalidade. Se tivermos a chance de ter um presidente que crie um órgão de planejamento independente, aí vamos enxergar um caminho.

CC: E as empresas têm planejamento estratégico...
FKC: Mas os empresários são inteligentes, nós é que somos estúpidos. Eles são muito inteligentes, não existe grande empresa que não tenha planejamento estratégico. Mas eles não querem o planejamento do Estado, porque os empresários querem dominar o Estado.

CC: Diante das propostas dos partidos que se colocam hoje, qual é o melhor projeto político para o país?

FKC: Eles participam da mesma mediocridade, não conheço nenhum que seja importante. Se ele for importante, só para inglês ver. Perdão, para americano ver. Porque na verdade ele não é para valer.