Jurista critica "consciência conservadora" que coloca propriedade acima da dignidade
Gilberto Costa
Repórter da Agência Brasil
Brasília - A terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) fez reaparecer fantasmas que há décadas atormentam a história política brasileira.
A principal crítica ao programa, escrito após discussão pública de dois anos, é que ele ameaça a Lei da Anistia (Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979) e permite que pessoas que atuaram na “repressão política” da ditadura militar (1964-1985) sejam processadas, julgadas e condenadas por seus crimes.
Setores militares criticaram o programa afirmando que o documento poderia levar o país a um clima de revanchismo. O principal foco das discussões recaía sobre a criação da Comissão da Verdade cujo intuito é apurar crimes que teriam ocorrido durante o período militar.
Para pôr fim à polêmica, o governo decidiu não usar a expressão “repressão política” na parte que trata da apuração de casos de violação de direitos no contexto do regime militar. Assim, o texto do decreto abre a possibilidade de que sejam investigadas violações de direitos humanos praticadas tanto por militares quanto por outros agentes do período.
O texto do programa recebeu ainda críticas da Igreja Católica, por causa dos trechos relativos ao aborto; dos meios de comunicação, que afirmam que o documento favorece a censura; e do setor agrícola, que acredita em aumento da violência no campo com a criação de uma câmara de conciliação para mediar conflitos durante ocupações de terra.
As críticas ao PNDH levaram o jurista Fábio Konder Comparato, 73 anos, a se manifestar publicamente contra quem critica o programa e contra qualquer revés na luta pelos direitos humanos no Brasil.
O advogado e escritor também assina no Supremo Tribunal Federal (STF) uma arguição sobre a Lei da Anistia e tem expectativa que a principal Corte do país reveja este ano a impunidade sobre os abusos da época da ditadura. A seguir os principais trechos de sua entrevista à Agência Brasil.
Agência Brasil: O governo resolveu o imbróglio em torno do PNDH 3 e editou um novo decreto sobre a criação da chamada Comissão da Verdade no qual não consta a expressão “repressão política”, existente no texto original e criticada pelos setores militares. O que o senhor achou dessa solução?
Fábio Konder Comparato: Foi um evidente recuo do presidente da República. De certa maneira, esse recuo era esperado. O presidente Lula jamais enfrentou a oposição do poder econômico e do poder militar. Mas isso não deixa de ser surpreendente porque em toda a história republicana do Brasil ele é o presidente que contou com a maior aprovação popular. A impressão é que estamos onde sempre estivemos: uma espécie de cena política em que o povo, na melhor das hipóteses, é mero figurante. Isso é muito grave, nós não podemos simplesmente nos desolar diante de mais essa demonstração de que o povo não conta na política brasileira. A solução a longo prazo é a educação política do povo. A democracia é o único regime político que o povo precisa ser educado para agir. Nós temos uma democracia de fachada que mal esconde a oligarquia.
ABr: Em um artigo publicado esta semana o senhor escreve que os militares, ao afirmar que o PNDH 3 quer revogar a Lei da Anistia, estão assumindo que aquela lei é contrária aos direitos humanos ou sustenta graves violações. Por que os setores militares ainda têm dificuldade em lidar com esse passado?
Comparato: Porque os militares no Brasil gozaram de absoluta impunidade no que diz respeito ao cometimento de atos criminosos contra o povo e contra a ordem política. Nunca ninguém pensou em pô-los no banco dos réus. O general [Ernesto] Geisel [presidente da República entre 1974 e 1979] admitiu a tortura, mas um militar que hoje exerce as funções de deputado federal [Jair Bolsonaro, PP-RJ] disse em público que o grande erro dos militares na época que eles comandavam ostensivamente o país foi torturar, deveriam ter matado os opositores políticos! E o Ministério Público Federal ficou de braços cruzados... Isso é um escândalo! O Ministério Público Federal está colaborando com a criminalidade por parte dos militares.
ABr: O senhor assina a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que questiona o Supremo Tribunal Federal quanto à interpretação de que a Lei da Anistia mantém impune torturadores e mandantes de crimes comuns, como sequestro, tortura, assassinato e estupro, praticados contra presos políticos durante a ditadura militar. O senhor tem expectativa que esse assunto se resolva este ano?
Comparato: Espero que sim. Afinal de contas, a Procuradoria-Geral da República está em mora [em atraso no cumprimento de uma obrigação]. Pela lei que rege esse processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, quando o Ministério Público não é o autor da arguição ele tem cinco dias para se manifestar. A Procuradoria-Geral da República foi intimada a se manifestar em 2 de fevereiro de 2009. Daqui a uns dias completará um ano que a Procuradoria se debruçou sobre os autos e até agora não produziu nenhum parecer.
ABr: O senhor vê algum motivo para isso?
Comparato: Houve claro descumprimento da lei e o Ministério Público como qualquer órgão público no Estado de direito tem que obedecer à lei e à Constituição. Não existem donos da lei.
ABr: A Confederação Nacional de Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) divulgou nota afirmando que, apesar do novo decreto presidencial sobre o PNDH 3 que institui o grupo de trabalho para criar o projeto de lei sobre a Comissão da Verdade, “foram mantidas as ameaças às instituições democráticas, ao estado de direito e à liberdade de expressão”. Qual a razão da queixa do setor rural?
Comparato: Os dois programas de direitos humanos aprovados durante o governo Fernando Henrique Cardoso [assinados em 1996 e 2002, respectivamente] foram muito mais incisivos do que este programa no governo Lula. Não me parece que os proprietários de terra, ou melhor, perdão, os agricultores - como quer o ministro Reinhold Stephanes [ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento] - tenham rasgado e queimado a roupa e posto a cinza na cabeça diante desse cerceamento de sua liberdade. Tudo isso é ridículo, tudo isso é falso e tudo isso mostra que não vivemos em um Estado republicano, democrático e de direito. Qual a única ambição do Programa Nacional de Direitos Humanos do presidente Lula? A atualização dos índices de produtividade. Por que? Porque a Constituição proíbe a desapropriação para fins de reforma agrária das terras produtivas. Como é que se afere a produtividade? Evidentemente por índices técnicos. Ora, os índices que estão em vigor datam de 1975, há mais de três décadas.
ABr: Período que houve uma revolução na produtividade do campo...
Comparato: O que o programa de direitos humanos do governo Lula está pedindo é absolutamente razoável: o cumprimento da Constituição. Os dois programas do governo Fernando Henrique eram a esse respeito muito mais sérios. Seguindo, aliás, uma proposta que eu fiz sendo membro do Conselho Nacional de Defesa de Direitos da Pessoa Humana, os programas exigiam que se substituísse a norma do Código de Processo Civil segundo a qual as ações de manutenção e reintegração de posse, a expedição do mandato, podem ser feitam sem ouvir o réu. Está em causa a questão da função social da propriedade. Não é possível, em face da Constituição, dizer que a função social da propriedade é secundária. Os maiores crimes para a consciência conservadora brasileira não são contra a vida e a integridade pessoal, mas contra a propriedade. A propriedade está acima da dignidade da pessoa humana.
ABr: Vários veículos de comunicação disseram e repetiram que o PNDH 3 revoga a Lei da Anistia. Por que houve uma reação tão contundente da mídia contra o programa?
Comparato: A democracia exige a educação política do povo. Numa sociedade de massa essa educação se faz pelos meios de comunicação de massa. Eles ocupam um espaço público (rádio e televisão). O público significa espaço do povo não é do Estado nem de particulares. Nós conseguimos essa proeza no Brasil: esse espaço público foi apropriado por empresários. Eles são donos da televisão, donos do rádio e, por conseguinte, do espaço de comunicação pública. A Constituição exige, por exemplo, que toda a concessão pública seja precedida de licitação. Eu gostaria que você me lembrasse qual foi o caso de licitação de rádio e televisão aqui no Brasil. Politicamente, a grande arma que tem o empresariado nacional é a posse praticamente exclusiva desse espaço com o povo e do povo entre si. Então, não pode haver educação política. Toda vez que se fala em regulamentar o artigo 220 da Constituição [que no capítulo 5 trata da Comunicação Social] gritam que estão sendo massacrados pelo Estado e falam de censura. Esse é o principal problema da democracia hoje no Brasil. O país é o único do mundo onde não há lei de imprensa.
ABr: O senhor avalia que o momento pré-eleitoral também reverbera nas discussões sobre o PNDH?
Comparato: Provavelmente. Eu não vejo outra razão. Os pontos polêmicos do programa já constavam nas edições anteriores do PNDH e eram tratados de maneira mais incisiva e abrangente. Eu não me lembro que tivesse havido tanta celeuma, não houve nenhuma aliás, quando da publicação dos dois programas do governo Fernando Henrique. Isso está cheirando à campanha eleitoral antecipada.
ABr: Essa antecipação explicaria o recuo do governo?
Comparato: É bem provável. Isso eu não posso suportar. Francamente, eu acho que presidente da República não pode negociar quando se trata da dignidade humana. Acho isso gravíssimo e mesmo sob o aspecto eleitoral não é ele o candidato. Ele não pode pretender, para fazer seu sucessor, negociar com questões que são inegociáveis. Isso é contrário ao espírito da Constituição e às normas mais elementares de ética política.
Edição: Lílian Beraldo
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