Quinta, 12 de novembro de 2009
Sírio Possenti*
de Campinas (SP)
Lembrei uma entrevista de Michel Foucault que li há algumas décadas, supostamente na mesma época em que Caetano Veloso lia Lévi-Strauss, por causa da seguinte passagem: "Nós os franceses temos uma consciência hexagonal da cultura que faz com que paradoxalmente De Gaulle possa passar por um intelectual...".
Se Foucault vivesse entre nós, ficaria espantado com "nossos" intelectuais. Um dos mais notáveis é Caetano Veloso, nosso Aristóteles - ele opina sobre tudo. Aparece em todos os meios de comunicação - mostrando seu banheiro em Caras ou depondo sobre a importância de Lévi-Strauss na Folha de S. Paulo (o que é também uma ilustração de como a Folha explica).
A melhor demonstração de como Caetano (não) leu o antropólogo não aparece em sua resenha (ele já o tinha citado - mais ou menos como Gil citou a física quântica - em uma de suas letras). A prova de que Caetano, se leu, não entendeu nada de Levi-Strauss não é sua entrevista, embora patética. É sua declaração sobre a gramática de Lula.
Não discuto sua avaliação política, que esta, evidentemente, é livre, e ninguém precisa ser letrado nem ter lido O cru e o cozido para expressá-la, nas democracias. Desastrosas, analfabetas, são suas declarações sobre língua. Agora ele disse ao Estadão (sim os dois jornalões lhe deram espaço ¿ o que, nas democracias é proibido proibir, mas se pode lamentar -, elogiando Marina Silva, mas também Mangabeira Unger, e exatamente por seu ¿pensamento¿ sobre a Amazônia) que ela ¿é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é uma cabocla. É inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar" (Estadão de 6/11/2009). Bem, se elogia Marina e Unger, então também pode ter lido Lévi-Strauss, isto é, passado os olhos nas página de seus livros, e dizer o contrário de tudo o que ele diria. Ou não, acrescentaria Gilberto Gil, provavelmente achando que isso é que é dialética.
Como disse, a opinião é obviamente livre. Mas pode ser burra. De fato, "burro" não é antônimo de "livre", e, assim, os dois predicados podem coexistir. Se Caetano tivesse arranhado Lévi-Strauss, ou mesmo se só tivesse lido alguma coisa sobre o tipo de pensamento a que deu consistência ímpar, teria podido aprender que a maior novidade do pensamento do antropólogo é exatamente que não há culturas (portanto, línguas) erradas ou mesmo inferiores. Ou seja, não leu.
Se leu, não entendeu nada, ou pensa que Lévi-Strauss só se aplica aos índios - outra forma de não entender nada. Sua leitura do antropólogo deve ter sido como a que fez de Saussure, segundo informou em seu Obraemprogresso há algum tempo.
Uma das melhores piadas que já li é de Woody Allen. Conta que está fazendo um curso de leitura dinâmica: "Li Guerra e Paz em 2º minutos. Fala da Rússia". É o método Caetano de ler Lévi-Strauss.
Se aplicasse ao que faz profissionalmente os critérios que aplica à língua, ele teria que dizer que não sabe fazer música. Que faz música errada.
PS - Caetano mandou carta ao Estadão que foi comentada como "esclarecendo" sua entrevista. No que se refere a meu tema (Lula não sabe falar), nada muda. Não discuto a avaliação política que faz de Lula ou de Marina ou de FHC. Só discuto essa frase. E ela é de que não sabe...
Intelectuais, ainda
FHC desovou falação em que manifesta preocupações com o governo Lula, ou com o "lulismo", com o que ele acha que é autoritarismo. O Globo publicou o artigo, e a ilustração era um grande STOP. O que foi interpretado como insinuação golpista.
Duas coisas são curiosas no artigo: FHC diz que Lula escolheu a candidata à sucessão com um "dedaço". A avaliação, vinda de um tucano (lembram daquele jantar a quatro?), é de doer, independentemente do que se pense de Lula, de Dilma e de sua indicação. Compara o lulismo com o peronismo. Não sei se é detalhe ou não - acho que não é - mas agora é o sociólogo que está em questão. Não é análise sofisticada, nem do lulismo, nem do peronismo.
Diversos artigos leram o texto de FHC como golpista. Não seria a primeira vez. FHC já teve seus tempos de Zelaya, e foi bem sucedido: fez sua própria reeleição, um óbvio golpe, pelo menos para quem acha que Chávez e outros são golpistas. Agora, parece querer dias de Micheletti...
*Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso e Questões para analistas de discurso.
Original publicado em Terra Maganize
5 comentários:
Adorei esse texto. Muito bom!
Não é?
E vc viu a resposta do presidente ao comentário preconceituoso do Caetano?
Publiquei no www.mariafro.blogspot.com
abraços
Zélia, corrigindo o endereço do post com a resposta do presidente é:
http://mariafro.wordpress.com/2009/11/15/lula-tira-uma-com-a-cara-do-caetano/
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Caetano é "neguinha"
SÃO PAULO - "Marina é Lula e é Obama ao mesmo tempo. Ela é meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona falando, grosseiro." Diante da ira que provocou nos companheiros, Caetano Veloso voltou ontem às páginas de "O Estado de S. Paulo" para comentar esse trecho da entrevista que havia concedido.
O compositor lembrou que o próprio Lula se vangloria da sua fala pouco instruída e que é forte inclusive por isso. E avisou aos petistas: "Dizer que FH era mau governante e Lula é bom é maluquice. Ambos foram conquistas brasileiras importantes. Marina seria um passo à frente". Sobre esse último ponto, podemos brincar: "menas, menas".
De resto, os embates entre Caetano e a esquerda remontam aos anos febris do tropicalismo. É duvidoso que o lulismo seja de esquerda, mas Caetano, de novo, se põe à esquerda da esquerda, dando mais um nó no coro dos "progressistas": "Detesto essa mania de que nada se pode dizer que não seja adulação a Lula".
Quem teve a felicidade de ver seu show no fim de semana pôde presenciar a homenagem a Neguinho do Samba, negro semianalfabeto, um dos fundadores do Olodum na Bahia, morto há poucos dias: "Influenciou mais a mim e provavelmente a vocês da plateia do que a obra inteira de Lévi-Strauss. Isso é o que eu teria a dizer aqui sobre analfabetismo e preconceito".
O ápice, porém, foi a interpretação de "Eu Sou Neguinha?" -acompanhada no palco por uma gestualidade que valorizava de maneira ostensiva e lúdica a interrogação sobre a identidade sexual do cantor.
Caetano é um dos maiores artistas brasileiros -isso já é sabido. Mas é também um espírito livre e um intelectual incomum num sentido muito preciso (e talvez o único verdadeiramente precioso): sempre está no debate público de sua época sem subordinar convicções e ideias a cálculos táticos ou conveniências políticas. Ousar pensar pela própria cabeça, sem a tutela do grupo ou medo da patrulha da maioria: por que não? Por que não?
Ao/À anônimo/anônima.
Além de anônimo vc traz a experiência de um porta-voz tucano por excelência?
Ao menos expresse suas próprias idéias, não?
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