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domingo, 26 de setembro de 2010

A MÍDIA COMERCIAL EM GUERRA CONTRA LULA E DILMA

por Leonardo Boff

Sou profundamente a favor da liberdade de expressão em nome da qual fui punido com o “silêncio obsequioso”pelas autoridades do Vaticano. Sob risco de ser preso e torturado, ajudei a editora Vozes a publicar corajosamente o “Brasil Nunca Mais” onde se denunciavam as torturas, usando exclusivamente fontes militares, o que acelerou a queda do regime autoritário.

Esta história de vida, me avalisa fazer as críticas que ora faço ao atual enfrentamento entre o Presidente Lula e a midia comercial que reclama ser tolhida em sua liberdade. O que está ocorrendo já não é um enfrentamento de idéias e de interpretações e o uso legítimo da liberdade da imprensa. Está havendo um abuso da liberdade de imprensa que, na previsão de uma derrota eleitoral, decidiu mover uma guerra acirrada contra o Presidente Lula e a candidata Dilma Rousseff. Nessa guerra vale tudo: o factóide, a ocultação de fatos, a distorção e a mentira direta.

Precisamos dar o nome a esta mídia comercial. São famílias que, quando vêem seus interesses comerciais e ideológicos contrariados, se comportam como “famiglia” mafiosa. São donos privados que pretendem falar para todo Brasil e manter sob tutela a assim chamada opinião pública. São os donos do Estado de São Paulo, da Folha de São Paulo, de O Globo, da revista Veja na qual se instalou a razão cínica e o que há de mais falso e xulo da imprensa brasileira. Estes estão a serviço de um bloco histórico, assentado sobre o capital que sempre explorou o povo e que não aceita um Presidente que vem deste povo. Mais que informar e fornecer material para a discusão pública, pois essa é a missão da imprensa, esta mídia empresarial se comporta como um feroz partido de oposição.

Na sua fúria, quais desesperados e inapelavelmente derrotados, seus donos, editorialistas e analistas não têm o mínimo respeito devido à mais alta autoridade do pais, ao Presidente Lula. Nele vêem apenas um peão a ser tratado com o chicote da palavra que humilha.

Mas há um fato que eles não conseguem digerir em seu estômago elitista. Custa-lhes aceitar que um operário, nordestino, sobrevivente da grande tribulação dos filhos da pobreza, chegasse a ser Presidente. Este lugar, a Presidência, assim pensam, cabe a eles, os ilustrados, os articulados com o mundo, embora não consigam se livrar do complexo de vira-latas, pois se sentem meramente menores e associados ao grande jogo mundial. Para eles, o lugar do peão é na fábrica produzindo.

Como o mostrou o grande historiador José Honório Rodrigues (Conciliação e Reforma) “a maioria dominante, conservadora ou liberal, foi sempre alienada, antiprogresssita, antinacional e nãocontemporânea. A liderança nunca se reconciliou com o povo. Nunca viu nele uma criatura de Deus, nunca o reconheceu, pois gostaria que ele fosse o que não é. Nunca viu suas virtudes nem admirou seus serviços ao país, chamou-o de tudo, Jeca Tatu, negou seus direitos, arrasou sua vida e logo que o viu crescer ela lhe negou, pouco a pouco, sua aprovação, conspirou para colocá-lo de novo na periferia, no lugar que contiua achando que lhe pertence (p.16)”.

Pois esse é o sentido da guerra que movem contra Lula. É uma guerra contra os pobres que estão se libertando. Eles não temem o pobre submisso. Eles tem pavor do pobre que pensa, que fala, que progride e que faz uma trajetória ascedente como Lula. Trata-se, como se depreende, de uma questão de classe. Os de baixo devem ficar em baixo. Ocorre que alguém de baixo chegou lá em cima. Tornou-se o Presidene de todos os brasileiros. Isso para eles é simplesmente intolerável.

Os donos e seus aliados ideológicos perderam o pulso da história. Não se deram conta de que o Brasil mudou. Surgiram redes de movimentos sociais organizados de onde vem Lula e tantas outras lideranças. Não há mais lugar para coroneis e de “fazedores de cabeça” do povo. Quando Lula afirmou que “a opinião pública somos nós”, frase tão distorcida por essa midia raivosa, quis enfatizar que o povo organizado e consciente arrebatou a pretensão da midia comercial de ser a formadora e a porta-voz exclusiva da opinião pública. Ela tem que renunciar à ditadura da palavra escrita, falada e televisionada e disputar com outras fontes de informação e de opinião.

O povo cansado de ser governado pelas classes dominantes resolveu votar em si mesmo. Votou em Lula como o seu representante. Uma vez no Governo, operou uma revolução conceptual, inaceitável para elas. O Estado não se fez inimigo do povo, mas o indutor de mudanças profundas que beneficiaram mais de 30 milhões de brasileiros. De miseráveis se fizeram pobres laboriosos, de pobres laboriosos se fizeram classe média baixa e de classe média baixa de fizeram classe média. Começaram a comer, a ter luz em casa, a poder mandar seus filhos para a escola, a ganhar mais salário, em fim, a melhorar de vida.

Outro conceito innovador foi o desenvolvimento com inclusão soicial e distribuição de renda. Antes havia apenas desenvolvimento/crescimento que beneficiava aos já beneficiados à custa das massas destituidas e com salários de fome. Agora ocorreu visível mobilização de classes, gerando satisfação das grandes maiorias e a esperança que tudo ainda pode ficar melhor. Concedemos que no Governo atual há um déficit de consciência e de práticas ecológicas. Mas importa reconhecer que Lula foi fiel à sua promessa de fazer amplas políticas públicas na direção dos mais marginalizados.

O que a grande maioria almeja é manter a continuidade deste processo de melhora e de mudança. Ora, esta continuidade é perigosa para a mídia comercial que assiste, assustada, o fortalecimento da soberania popular que se torna crítica, não mais manipulável e com vontade de ser ator dessa nova história democrática do Brasil. Vai ser uma democracia cada vez mais participativa e não apenas delegatícia. Esta abria amplo espaço à corrupção das elites e dava preponderância aos interesses das classes opulentas e ao seu braço ideológico que é a mídia comercial. A democracia participativa escuta os movimentos sociais, faz do Movimento dos Sem Terra (MST), odiado especialmente pela VEJA faz questão de não ver, protagonista de mudanças sociais não somente com referência à terra mas também ao modelo econômico e às formas cooperativas de produção.

O que está em jogo neste enfrentamento entre a midia comercial e Lula/Dilma é a questão: que Brasil queremos? Aquele injusto, neocoloncial, neoglobalizado e no fundo, retrógrado e velhista ou o Brasil novo com sujeitos históricos novos, antes sempre mantidos à margem e agora despontando com energias novas para construir um Brasil que ainda nunca tínhamos visto antes.

Esse Brasil é combatido na pessoa do Presidente Lula e da candidata Dilma. Mas estes representam o que deve ser. E o que deve ser tem força. Irão triunfar a despeito das má vontade deste setor endurecido da midia comercial e empresarial. A vitória de Dilma dará solidez a este caminho novo ansiado e construido com suor e sangue por tantas gerações de brasileiros.

*teólogo, filósofo, escritor e representante da Iniciativa Internacional da Carta da Terra e nestas eleições declarou voto à Marina Silva
Este artigo foi reproduzido do Blog do Jornalista Rodrigo Vianna, O Escrevinhador

domingo, 19 de setembro de 2010

André Singer: A história e seus ardis

ELEIÇÕES

A história e seus ardis: O lulismo posto à prova em 2010
Por André Singer via google docs

RESUMO
André Singer aplica às eleições de 2010 sua tese do "realinhamento" do eleitorado brasileiro, caracterizado pela adesão das classes baixas ao "lulismo" (por verem em Lula a possibilidade de ascensão social sem confronto) e pelo afastamento da classe média tradicionalmente petista, após o escândalo do mensalão.


CONTA-SE QUE CERTA VEZ o engenheiro Leonel Brizola teria levado o metalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Lá chegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois de algumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem que liderou a Revolução de 1930: "Doutor Getúlio, este é o Lula", disse, ou algo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não se sabe a reação do petista.

Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora, estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira? Desconfio que não.

Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dos anos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o que restava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para Fernando Henrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado a durar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para o Brasil.

BRECHA

Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego no segundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência da República. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital, pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado de baixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça à ordem.1
Apesar da pacificação conquistada com a "Carta ao Povo Brasileiro" ter sido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Havia mais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco salários mínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás, sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem ser pequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do "povão" em relação ao radicalismo do PT.

Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o mais varguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais, pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul e o retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, o interesse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atende do banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentes tentam o mesmo milagre.

O que há de especificamente varguista é a ligação com setores populares antes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em ator político, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aos pobres que Getúlio encarnou.

BURGUESIA EM CALMA

Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever o enredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandato inicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadora nos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários, juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumo de FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.

De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setores progressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL. Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve ter morrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.

Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha um aumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003, dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço: o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junção das iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos juros praticados pelo Banco Central.

Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em 2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram a surtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno de massa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico.
Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta região amazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio de vida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passava despercebido para os "formadores de opinião".

PASSO DECISIVO

Quando sobrevém a tempestade do "mensalão" em 2005 -e, despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que fora vítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa a rondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.

Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares de camponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhe moviam a guerra de notícias: "Se eu for [candidato], com ódio ou sem ódio, eles vão ter que me engolir outra vez".

Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual. Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classe média. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte da esquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos mais necessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem.

Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua base se encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo que identificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto.

PLACAS TECTÔNICAS

Os setores mais sensíveis da oposição perceberam que fora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. A hipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviam entendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.

Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lula podia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social que a página fora virada: "Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nem farei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. O meu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek: paciência, paciência e paciência". Uma onda vinda de baixo sustentava a bonomia presidencial.

O Lula que emerge nos braços do povo, depois da crise, depende menos do beneplácito do capital. Daí a entrada de Dilma Rousseff e Guido Mantega em postos estratégicos, o que mudou aspectos relevantes da política macroeconômica. Os investimentos públicos, contidos por uma execução orçamentária contracionista, foram descongelados no final de 2005. O salário mínimo tem um aumento real de 14% em 2006.

POLARIZAÇÃO

Para o público informado, a constatação do que ocorrera ainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 para que ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certos ambientes de classe média "ninguém" votasse em Lula.

A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização social por ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinha fechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define o realinhamento iniciado quatro anos antes.

Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dado em 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento da classe média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto é pensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feição definitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e 1936.

SEGUNDO MANDATO

Assentado sobre uma correlação de forças com menor pendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maior desenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menos engessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão de obra, além de induzir ao investimento privado.

Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no ano anterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumento real de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conforme estimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação do governo desde então.

Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes no final de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. A transferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parede do tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu o ciclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundo alguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iria definhar.


COMPRAR SEM MEDO

Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massa ativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior. A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar sem medo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e a relançar a economia em tempo curto e velocidade alta.

Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre os automóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancos públicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentou a capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra a de Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa para impulsionar a produção local.

Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figura emblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir as orientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meio de grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico no Estado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada uma delas alavancará regiões inteiras.

Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempos passados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializa diante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixe mentir.

PROJETO PLURICLASSISTA

A candidatura Dilma representa o arco que o lulismo construiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adiante um projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até pouco tempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setores estratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES.

O povo lulista, que deseja distribuição da renda sem radicalização política, já dá sinais de que o alinhamento fechado em 2006 está em vigor. Em duas semanas de propaganda eleitoral na TV, Dilma subiu 9 pontos percentuais e Serra caiu 5. À medida que os mais pobres adquirem a informação de que ela é a candidata de Lula, o perfil do seu eleitorado se aproxima do que foi o de Lula em 2006. Ou seja, o voto em Dilma cresce conforme cai a renda, a escolaridade e a prosperidade regional.

A classe média tradicional, em que pese aprovar o governo, continuará a votar na oposição, como demonstram a dianteira de Serra em Curitiba e o virtual empate em São Paulo, municípios em que o peso numérico das camadas intermediárias é significativo.

Parte delas, sobretudo entre os jovens universitários, deverá optar por Marina Silva. Isso explica por que os que têm renda familiar mensal acima de cinco salários mínimos dão 12 pontos percentuais de vantagem para a soma de Serra e Marina sobre Dilma na pesquisa Datafolha concluída em 3/9.

O problema da oposição é que esse segmento reúne apenas 14% do eleitorado, de acordo com a amostra utilizada pelo Datafolha, enquanto os mais pobres (até dois salários mínimos de renda familiar mensal) são 48% do eleitorado. Nesse segmento, Dilma possui uma diferença de 22 pontos percentuais sobre Serra e Marina somados! Se vier a ganhar no primeiro turno, será graças ao apoio, sobretudo, dos eleitores de baixíssima renda, como ocorreu com Lula na eleição passada.

REALINHAMENTO

A feição popular da provável vitória de Dilma confirma, assim, a hipótese que sugerimos no ano passado a respeito da novidade que emergiu em 2006. Se estivermos certos, por um bom tempo o PSDB precisará aprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Não se trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos a vitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda que decorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos.

Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os que se deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina o andamento da política por um longo período. Num primeiro momento, trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos na mudança -o Partido Democrata nos EUA, o PT no Brasil.

Com o passar do tempo e as oscilações da conjuntura, os aderentes menos entusiastas podem votar em outro partido, mesmo sem romper o alinhamento inicial. Foi o que aconteceu com as vitórias do republicano Eisenhower (1952 e 1956) e dos democratas Kennedy (1960) e Johnson (1964).

Mas para isso a oposição não pode ser extremada, como bem o percebeu a hábil Marina Silva. Até certa altura da sua campanha, José Serra igualmente trilhou esse caminho. Foi a fase em que propôs cortar juros e duplicar a abrangência do Bolsa Família.

Depois, tragado pela lógica do escândalo, retornou ao caminho udenista da denúncia moral, que só garante os votos de classe média -o que, no Brasil, não ganha eleição. Convém lembrar que no ciclo dominado pelo alinhamento varguista, a UDN só conseguiu vencer com um candidato: Jânio Quadros, que falava a linguagem populista. Fora disso, resta o golpe, sombra da qual estamos livres.

DURAÇÃO

Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em 2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010? O realinhamento abrange, por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelo oposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quem sabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A resposta para o atual momento também deve contemplar a economia.

Por isso, as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimento médio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevação anual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Sem ele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobre a necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajuste fiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provável vencedora.

O capital financeiro -apelidado na mídia de "os mercados"- vai lhe cobrar o tradicional pedágio de quem ainda não "provou" ser confiável. Caso os reclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recurso de o BC -cuja direção deverá continuar com alguém como Henrique Meirelles, senão o próprio- aumentar os juros. O aumento real do salário mínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois o PIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante.

CABO DE GUERRA Convém notar que, no segundo mandato de Lula, ainda que de modo relutante, o BC foi obrigado a trabalhar com juros mais baixos. Mas o cabo de guerra será reiniciado no dia 3 de janeiro de 2011. Com os jogadores em posse de um estoque de fichas renovados pela eleição, uns apostarão em uma recuperação do espaço perdido, outros numa aceleração do caminho trilhado no segundo mandato.

O PMDB, elevado à posição de sócio importante da vitória, atribuiu-se, na campanha, o papel de interlocutor com o empresariado. O PT, possivelmente fortalecido por uma bancada maior, deverá, pela lógica, fazer-lhe o contraponto do ângulo popular. A escolha dos presidentes da Câmara e do Senado, em fevereiro, servirá de termômetro para o balanço das respectivas forças.
O futuro do lulismo dependerá de continuar incorporando, com salários melhores, os pobres ao mundo do trabalho formal. Em torno desse ponto é que se darão os principais conflitos e se definirá a extensão do ciclo. Alguns analistas da oposição alertam para a proximidade de um índice de emprego que começará a encarecer a mão de obra e gerar inflação. Como mostra Stiglitz,3 é a conversa habitual dos conservadores para brecar a expansão econômica.

Por fim, não se deve esquecer que uma palavra decisiva sobre esses embates virá de São Bernardo, onde residirá o ex-presidente, bem mais perto da capital do que foi, no passado, São Borja.

Aguardam-se os conselhos de Vargas e Brizola, dos quais poderemos tomar conhecimento naquelas mensagens psicografadas por Elio Gaspari.

Notas
1. Ver André Singer. "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", "Novos Estudos", 85, nov 2009. Link para o artigo em folha.com/ilustríssima
2. Ver João Sicsú. "Dois Projetos em Disputa". "Teoria e Debate", 88, mai/jun 2010.
3. Ver Joseph Stiglitz, "Os Exuberantes Anos 90", Companhia das Letras, 2003.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A democracia que não veio

O real desafio é criar mecanismos de ampliação da democracia direta

VLADIMIR SAFATLE, na Folha, via Se Discute

DESDE QUE a campanha eleitoral começou, vemos os candidatos mais bem posicionados ensaiarem a defesa da reforma política. Isso significa que, ao menos no discurso, todos reconhecem um certo déficit democrático nas estruturas de poder da sociedade brasileira.

No entanto, é interessante perceber como a maioria das propostas (quando elas, de fato, aparecem) resume-se à discussão de questões que não tocam o fundamento do problema.

Voto obrigatório ou facultativo, existência ou não do Senado, adoção ou não do voto distrital: todas essas questões, embora relevantes, não têm a força para desbloquear o processo de constituição de uma democracia efetiva entre nós.

Neste sentido, talvez fosse o caso de dirigir a atenção para dois pontos pouco explorados no debate eleitoral. Primeiro, vivemos um processo de esgotamento do chamado "presidencialismo de coalizão".

O Brasil deve ter o único Parlamento no mundo em que é impossível a um partido ter a maioria absoluta das cadeiras. Desde a redemocratização, apenas o PMDB de 1986 conseguiu alcançar essa marca.

Isso faz com que o Congresso seja um verdadeiro "balcão de negócios", no qual um Executivo sempre fragilizado (já que necessita de alianças heteróclitas com vários partidos para governar) sai perdendo.

Só seria possível mudar tal situação através de uma reforma política que permitisse situações eleitorais nas quais o vencedor leva tudo.

Isso pode significar que uma parte das cadeiras deva estar vinculada, necessariamente, ao partido vencedor, a fim de permitir que ele possa fazer maioria congressual mais facilmente (ou, ao menos, uma minoria qualificada).

No entanto, toda discussão a respeito de nosso deficit democrático deve partir da constatação da baixa participação popular nos processos decisórios de governo.

A democracia parlamentar liberal quer nos fazer acreditar que a participação popular deva se resumir, em larga medida, à criação de coeficientes eleitorais em épocas de eleição. Ela não percebe que o verdadeiro desafio democrático consiste na criação de mecanismos de ampliação da democracia direta, seja através da generalização de plebiscitos, seja através da regionalização dos processos de decisão sob a forma de conselhos populares.

Tal criação é a condição para o engajamento da população nas práticas sociais de gestão. Só uma patologia própria ao pensamento conservador pode defender que o aumento da participação popular equivale a um risco à democracia. Como se a boa democracia fosse aquela que conserva o povo a uma distância segura através dos mecanismos de representação.

Contra isto, talvez seja o caso de dizer claramente que a verdadeira democracia é medida pela possibilidade dada ao poder instituinte popular para manifestar-se, mesmo que seja criando novas regras e instituições.

Pois há uma plasticidade política própria à vida democrática que só aqueles que temem a construção de uma democracia efetiva compreendem como "insegurança jurídica".

VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

EUA: Dia de muito trabalho para os sindicatos


Por Katrina vanden Heuvel, no Washington Post

31/8/2010

O Dia do Trabalho – primeira 2ª-feira de setembro, nos EUA – virá vestido de luto, dia 6/9/2010.

Mais da metade dos trabalhadores nos EUA conheceram o medo do desemprego, viram seus salários reduzidos, foram forçados a aceitar empregos de meio-período ou outros tantos problemas que, por aqui, são a história da Grande Recessão. Ações em colapso e o preço das casas destruíram 1/5 da riqueza das famílias médias. Quase seis, de cada dez norte-americanos, cancelaram ou reduziram as férias. Nesse quadro, os trabalhadores cada vez menos buscam os sindicatos como resposta possível às suas inseguranças – apesar da evidência bem clara de que, de todas as instituições norte-americanas, os sindicatos quase sempre acertaram ao avaliar as grandes questões que o país enfrentaria e enfrenta, na disputa contra os consensos políticos bipartidários e das elites.

Os sindicatos vivem momentos difíceis. Representam menos de 13% da força de trabalho e menos de 8% dos empregados de empresas privadas. Os empregados sindicalizados ainda recebem salários maiores que os não sindicalizados e em maior número de casos conseguem obter seguro-saúde, pensões e licença-doença pagos pelo empregador.

Mas quando os sindicatos representavam mais de 30% de todos os empregados de empresas privadas, nos anos 1940s, eles lutavam por melhores salários para todos – e as empresas às quais os sindicatos não tinham acesso tinham de competir para encontrar boa mão de obra. Hoje, os sindicatos lutam quase exclusivamente para defender salários e benefícios. Ao longo da última década antes da Grande Recessão, a produtividade aumentou muito, os lucros dispararam, os salários e bônus para os altos executivos chegaram à estratosfera, mas a maioria dos empregados perderam terreno e poder.

Os sindicatos são alvo de repetidos ataques que vêm dos conservadores e das corporações. A mais recente campanha – construída como sempre para dividir os trabalhadores – tem atacado os salários e, sobretudo, as aposentadorias dos funcionários públicos. Por que mereceriam aposentadorias, quando tantos trabalhadores perdem tudo e, no máximo, conseguem algum plano de aposentadoria privada, se tiverem a sorte de continuarem empregados? De fato, em sociedades civilizadas, a pergunta certa deve ser exatamente o contrário dessa. Como criar programas de aposentadorias e pensões – além da Seguridade Social – para todos os trabalhadores de toda a economia, nivelando-os por cima, não por baixo?

A verdade é que, se tivéssemos dado ouvidos mais atentamente aos sindicatos no passado, os EUA não estaríamos vivendo a tragédia de hoje. Por muitos anos os sindicatos alertaram para os riscos dos déficits comerciais que nunca pararam de aumentar, a loucura de admitir que Japão e China e outros jogassem segundo suas próprias regras. Mas um consenso bipartidário, inventado em Wall Street e abraçado pelos dois presidentes, primeiro por Bush, depois por Clinton, conseguiu impor o ideário de acordos de livre-comércio definidos pelas grandes corporações e que só a elas interessava.

Os resultados foram calamitosos. Só na última década as perdas comerciais dos EUA alcalçaram $5,8 trilhões de dólares. No setor de manufatura nos EUA, desapareceu um de cada três postos de trabalho. O presidente do Federal Reserve Ben Bernanke observava que os desequilíbrios do comércio global ajudaram a inflar a bolha que fez despencar a economia global como caída despenhadeiro abaixo. Agora, novos e crescentes desequilíbrios impedem qualquer recuperação que arranque os EUA da Grande Recessão. O crescimento decepcionante de apenas 1,6% no último trimestre teria alcançado robustos 5%, não fosse o aumento no déficit comercial. Hoje até Andy Grove (da Intel) e Jeff Immelt (GE) concordam que foram temerários e incompetentes ao mandar para o exterior tantos empregos e tanta capacidade de produção da indústria de manufatura.

Na governança corporativa, o consenso bipartidário pregava o culto dos “altos executivos”, defendia que se associassem “pagamento e performance” e ações na Bolsa de Valores. Os sindicatos foram descartados, vistos como impedimento ao pleno desenvolvimento de “mercados de trabalho flexibilizado”. Os líderes sindicais argumentaram à exaustão, que era necessário responsabilizar as corporações por mais do que só pelos resultados financeiros do balanço do trimestre seguinte. Falaram o mais que puderam, sem qualquer sucesso, a favor de incluírem-se o trabalho e a comunidade, ao lado dos acionistas, de modo que tivessem mais peso nas práticas e decisões das corporações. Resultado, os altos executivos partiram para uma onda de crimes: Enron, WorldCom, Global Crossing, Adelphi. Centenas de corporações “refizeram” os relatórios de lucros, depois que os altos executivos foram tornados pessoalmente responsáveis. Dúzias de altos executivos foram apanhados na operação de adulterar datas de vencimento de opções de ações. Os grandes bancos apostaram cada vez mais alto, mais alto, com os contribuintes obrigados a cobrir todas as perdas. Altos executivos receberam incentivos pessoais multimilionários, para adulterar números; nem surpreende que tenham encontrado modos tão criativos para adulterá-los.

No plano das regulações, os sindicatos travaram batalha sem tréguas contra as privatizações e a desregulação, que os conservadores da era Reagan e os neodemocratas e neoliberais converteram em última moda. Hoje se vê que, nos EUA, numa área depois da outra e em praticamente todas, as privatizações foram fonte de mau uso e desperdício de bens públicos, de fraude e de roubo – da Halliburton à Blackwater. A desregulação contribuiu diretamente para a débâcle financeira e das grandes corporações, que derrubou a economia, com custos humanos visíveis do Golfo do México a Appalachia e até na qualidade dos ovos que os EUA comemos hoje.
Sábado passado em Washington, Glenn Beck tentou confiscar o movimento dos direitos civis. No mesmo dia, em Detroit, viu-se o mundo real: os sindicatos UAW[1], SEIU[2] e AFSCME[3] reunidos à Rainbow PUSH Coalition[4], à NAACP[5], à Urban League[6], organizações religiosas e ativistas dos direitos civis, em marcha por empregos e justiça social. O apoio dos sindicatos foi vital para organizar a marcha comandada pelo Reverendo Martin Luther King em Washington, há 47 anos. E o apoio dos sindicatos é vital para todos os movimentos de direitos civis – pela reforma das leis de imigração, tanto quanto pela igualdade de gêneros e salários iguais para homens e mulheres, na luta por empregos – hoje.

Com todos os defeitos que tenham, os sindicatos dão voz a todos os trabalhadores, aos empregados e aos desempregados, não só aos trabalhadores sindicalizados. A força democrática que têm os sindicatos, nascida de baixo para cima, é contrapeso vital contra os interesses da ‘grande finança’ que tanto mal fizeram e fazem à vida política nos EUA. Fazer reviver o movimento sindical é essencialmente importante para construir novas fundações para alguma nova economia que se reconstrua nos EUA, fundações que assegurem que os EUA voltem a dar certo para os que trabalham.

*Katrina vanden Heuvel é editora e publisher de The Nation e assina coluna semanal no Post.

[1] International Union, United Automobile, Aerospace and Agricultural Implement Workers of America (UAW) é dos maiores e mais diversificados sindicatos dos EUA, com membros em praticamente todos os setores de economia (aqui).

[2] Service Employees International Union (SEIU) (aqui).

[3] American Federation of State, County and Municipal Employees (AFSCME) (aqui).

[4] A Rainbow PUSH Coalition (RPC) é organização multirracial, pluralista, progressista internacional, que luta por mudança social. Foi criada em dezembro de 1996 pelo Reverendo Jesse L. Jackson, Sr., resultado da fusão de duas organizações também fundadas por ele, a People United to Serve Humanity (PUSH, 1971) e a Rainbow Coalition (1984) (aqui).

[5] A National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), fundada em 1909, é a mais antiga organização de defesa de direitos civis nos EUA (aqui).

[6] A Urban League reúne, nas cidades dos EUA, afro-americanos e outros não-brancos, na luta por direitos iguais para todos. Foi fundada em 1916. Para conhecer a Detroit Urban League, ver (aqui).

A inútil guerra que destruiu o Iraque

CONFLITO NO ORIENTE

A inútil guerra que destruiu o Iraque

Um especialista do exército americano que havia colaborado estreitamente com o general David Petraeus, ex-chefe das tropas enviadas ao Iraque, garantia, em 2008, que a guerra civil acabaria quando os xiitas se conscientizassem de que haviam vencido e os sunitas que haviam perdido. Dito e feito.


por Nir Rosen, no Le Monde Diplomatique

Algumas semanas após o início do ataque estadunidense contra o Iraque, em março de 2003, milhares de pessoas se comprimiam diante da recém-fundada Associação dos Prisioneiros Libertados. A sede ficava em uma propriedade que acabara de ser confiscada de um antigo responsável do regime de Saddam Hussein. Nas paredes estavam fixadas as listas de nomes, classificados por ordem alfabética. A relação foi recuperada quando a população pilhou a sede dos serviços secretos. Desesperadas, as pessoas as percorriam com os dedos, na esperança de saber do destino reservado a parentes detidos pela polícia. Geralmente as notícias não eram boas.

Três anos mais tarde, o país mergulhava em uma guerra civil: as milícias e os esquadrões da morte reinaram nas ruas de Bagdá. As famílias faziam fila para procurar parentes – desta vez no necrotério, onde as vítimas estavam reunidas aguardando identificação.

Na verdade, não foi preciso muito tempo para que o Iraque entrasse em um caos incitado pelos conflitos entre as diferentes crenças. Certamente esses tumultos existiam antes de 2003, e parecia lógico que a queda do presidente Saddam Hussein conduziria a um reequilíbrio do poder em favor da maioria xiita1. Mas a compreensão bastante superficial das tensões existentes por parte de Washington contribuiu para atiçá-las. Os Estados Unidos, de fato, viram no partido Baas uma nova versão do partido nazista e o associaram, erroneamente, ao conjunto dos sunitas, classificados como “inimigo” – uma decisão que teve como consequência transformar rapidamente esta falsa hipótese em realidade.

Além disso, a presença das tropas de ocupação americanas impediu a implantação de um governo com uma real legitimidade popular. Ela agravou as relações entre as crenças quando grupos – essencialmente sunitas – em luta contra a presença estrangeira entraram em conflito com aqueles que acusavam de serem favoráveis a ela. Instalou-se um clima de anarquia generalizada, ao qual nem o poder iraquiano nem Washington puderam fazer frente. Após um período de pilhagem frenética, o vazio foi preenchido por homens armados, alguns usando turbantes de religiosos xiitas, outros lenços da resistência, mas que para muitos simplesmente pertenciam a bandos criminosos.

No mundo muçulmano, a mesquita sempre exerceu um papel de dimensões religiosas, sociais e políticas. Ecoando cinco vezes por dia pelos bairros, o chamado para a oração regula o ritmo do cotidiano e o ciclo da vida. Nesse local, os fiéis se reúnem para rezar, aprender, falar e se mobilizar; o sermão da sexta-feira, ou khoutba, é muitas vezes um apelo à ação; e, quer se trate de questões religiosas ou de assuntos internacionais, o imã que dirige a oração expõe os problemas referentes à comunidade. Nos Estados autoritários, é também do alto do minbar (o púlpito onde o religioso fala a seus fiéis) que se fazem ouvir as raras vozes que propõem uma alternativa ao discurso oficial. Foi assim que no Iraque, após a queda do Estado, a mesquita tornou-se a instituição mais importante do país, cumprindo a função de unir as comunidades: primeiro, garantindo os serviços sociais; em seguida, transformando-se ao mesmo tempo em depósito de armas, local de informação e ponto de reunião.

Diante da eclosão da guerrilha, os Estados Unidos agiram às cegas em um primeiro momento, prendendo ou matando dezenas de milhares de iraquianos. Levaram um tempo para compreender que estavam lidando com uma resistência organizada, e mais ainda, que havia começado uma guerra civil entre milícias sunitas e xiitas.

No final de 2004, após ter destruído a cidade de Faluja, dezenas de milhares de sunitas se instalaram no oeste de Bagdá, enquanto os xiitas se refugiaram em outros bairros, expulsando os sunitas que estavam ali. Diante da incapacidade tanto do governo como dos Estados Unidos para garantir a segurança ou os serviços sociais, foram as milícias que se encarregaram disso.

Foi preciso esperar 2006 para que Washington chegasse à conclusão que já deveria ter chegado em 2003: como a resistência se alimentava da presença americana, era preciso confiar ao governo iraquiano a responsabilidade da ordem pública. Tarde demais: as forças de segurança, com predomínio xiita, entraram na guerra civil religiosa.

Como a violência ameaçava caminhar para um conflito em nível regional, o poder americano mudou então sua política. Os partidários da contra-insurreição pediram o envio de novas forças ao país, principalmente para Bagdá. O presidente George W. Bush anunciou, em janeiro de 2007, a chegada ao Iraque de 20 mil soldados suplementares2. Essas novas tropas se espalharam pela capital e construíram imensos muros de concreto ao redor dos bairros, a fim de controlar seus habitantes. Efetuaram um recenseamento, trabalharam com milícias locais e deram assistência a uma população extenuada. Ao mesmo tempo, as forças de segurança atacaram os milicianos e os civis, e apoiaram a vitória dos xiitas na área. Muitos bairros se tornaram homogêneos, obrigando os sunitas a deixá-los. Arrancadas de suas casas, milhões de pessoas se deslocaram para as periferias, as zonas rurais ou para outros países do Oriente Médio – principalmente a Síria3e a Jordânia.

Provavelmente foi o anúncio da chegada dos novos militares que levou os grupos armados sunitas a modificar sua tática. Já em conflito com a Al-Qaeda, eles perceberam que os Estados Unidos não desejavam necessariamente ajudar os xiitas, e menos ainda os iraquianos. O enfraquecimento da Al-Qaeda, sob o ataque brutal do exército americano – em particular na província de Al-Anbar – permitiu a esses grupos sunitas munirem-se de segurança; receberam dinheiro americano sem, no entanto, se transformarem em mercenários. Uma vez que seus rivais da Al-Qaeda fossem eliminados e as tropas americanas tivessem deixado o país, eles esperavam vencer os xiitas – e com ainda mais facilidade se Washington obtivesse, do governo iraquiano, a integração de um quinto de seus efetivos nas forças governamentais.

Ao mesmo tempo, para as milícias xiitas, o tiro saiu pela culatra. Não apenas sua própria comunidade as via como simples grupos de desordeiros, como o primeiro-ministro Nouri Al-Maliki, ao constatar que elas ameaçavam sua autoridade, empenhou-se em destruí-las brutalmente – as tropas “oficiais” permaneceram, no entanto, dominadas pelos xiitas. Essas milícias decidiram então interromper suas atividades, contando retomá-las após a retirada dos soldados americanos.

Um dos elementos menos conhecidos da estratégia de contra-insurreição foi a ofensiva contra as bases principais, as áreas de apoio e os recursos vitais das milícias. Proteger as populações instalando-se no centro dos bairros e erguendo muros de concreto foram as medidas mais visíveis dessa política. Mas o exército americano também intensificou suas operações, tanto dentro como fora de Bagdá, contra as milícias xiitas: entre fevereiro e agosto de 2007, prendeu, em média, mil de seus membros por mês e matou um grande número deles. Pode-se dizer que, em 2008, os Estados Unidos haviam reconquistado o Iraque. A “limpeza étnica” já estava em grande parte concluída. E se a violência persistia, a guerra civil de fato havia terminado. Sinal desses novos tempos: os ricos saíam às ruas com seus carros luxuosos.

“Os refugiados eram os mais indicados para avaliar a situação local”, observa o responsável da Organização das Nações Unidas (ONU) no Iraque, Stefan de Mistura. “Seu retorno significa que a situação está se normalizando”. Entretanto, constata, “eles voltaram, mas não em número considerável. No Kosovo, por exemplo, dois milhões de pessoas voltaram e nós ficamos felizes – mas sobrecarregados.” Após as eleições regionais iraquianas de 2009, a situação ficou clara para ele: “Bagdá havia mudado de cor. Houve uma limpeza religiosa: a cidade era agora amplamente xiita...”

Não tinha volta. Um especialista do exército americano que havia colaborado estreitamente com o general David Petraeus, ex-chefe das tropas enviadas ao Iraque, garantia, em 2008, que a guerra civil acabaria quando os xiitas se conscientizassem de que haviam vencido e os sunitas que haviam perdido. Dito e feito.

De um lado, os iraquianos deslocados, geralmente sunitas, não voltaram para suas casas. De outro, quando as milícias sunitas não foram mais capazes de se unir e alguns de seus chefes acabaram assassinados pela Al-Qaeda, elas se confrontaram com a ofensiva governamental. Esta última chegou a provocar uma breve insurreição em Fadhil, em março de 2009, após a prisão de um chefe local. Mas não foi nenhum grande levante.

Em novembro de 2008, Washington confiou ao governo iraquiano o poder que ele detinha sobre cerca de cem mil combatentes pertencentes a grupos sunitas. Mas apenas 5% desses efetivos foram integrados nas forças armadas: seus principais chefes foram presos, assim como um bom número de combatentes; além disso, parte deles pediu para ser liberada e voltar para casa. Um processo “tranquilo”, que se seguiu para enfraquecer os últimos grupos capazes de rivalizar com o Estado.

Como guerrilheiros e como insurgentes, os grupos sunitas haviam mostrado sua eficácia ao operar clandestinamente e ao se misturar a uma população conquistada. Hoje, os ex-resistentes são conhecidos: seus nomes, endereços e dados biométricos encontram-se nas mãos dos governantes americanos e iraquianos. Muitos outros fugiram – às vezes para o exterior.

O atual governo iraquiano é corrupto, mas opressor e forte; confiando em sua vitória, mostra-se decidido a afirmar sua total autoridade. Os que acreditam em uma reconciliação inter-religiosa se enganaram: ela não acontecerá e não é necessária. Maliki está se tornando um novo Saddam, mesmo que seu poder pareça mais legítimo e mais popular que o anterior.

Os xiitas venceram em detrimento dos sunitas e dos laicos. Se estão divididos, dispõem de uma superioridade numérica e do peso crescente do Estado e de suas forças de segurança. Isso, claro, sem falar do apoio da superpotência que reina no mundo. Durante esse período, os Estados Unidos se engajaram mais na guerra no Afeganistão. A nova ordem estabelecida nesse país pode trazer de volta a tranquilidade, mas o balanço da guerra se revela muito pesado: centenas de milhares de mortos, milhões de pessoas deslocadas, um país devastado e toda a região desestabilizada.


*Nir Rosen é jornalista, pesquisador no Centro de Lei e Segurança da Universidade de Nova York, autor de In the Belly of the Green Bird: The Triumph of the Martyrs in Iraq, Fere Press, Nova York, 2006.


1 Nenhum número confiável referente à repartição entre as diversas comunidades – árabe, curda e principalmente turcomana; e nem sobre a proporção real de sunitas e xiitas, mas esses últimos evidentemente predominam – está disponível.

2 Ler Alain Gresh, “Os Estados Unidos vão ganhar a guerra no Iraque?”, Le Monde Diplomatique, março de 2008.

3 Ler Theodor Gustavsberg, “Silencioso exílio dos iraquianos na Síria”, Le Monde Diplomatique, setembro de 2008.