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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A inútil guerra que destruiu o Iraque

CONFLITO NO ORIENTE

A inútil guerra que destruiu o Iraque

Um especialista do exército americano que havia colaborado estreitamente com o general David Petraeus, ex-chefe das tropas enviadas ao Iraque, garantia, em 2008, que a guerra civil acabaria quando os xiitas se conscientizassem de que haviam vencido e os sunitas que haviam perdido. Dito e feito.


por Nir Rosen, no Le Monde Diplomatique

Algumas semanas após o início do ataque estadunidense contra o Iraque, em março de 2003, milhares de pessoas se comprimiam diante da recém-fundada Associação dos Prisioneiros Libertados. A sede ficava em uma propriedade que acabara de ser confiscada de um antigo responsável do regime de Saddam Hussein. Nas paredes estavam fixadas as listas de nomes, classificados por ordem alfabética. A relação foi recuperada quando a população pilhou a sede dos serviços secretos. Desesperadas, as pessoas as percorriam com os dedos, na esperança de saber do destino reservado a parentes detidos pela polícia. Geralmente as notícias não eram boas.

Três anos mais tarde, o país mergulhava em uma guerra civil: as milícias e os esquadrões da morte reinaram nas ruas de Bagdá. As famílias faziam fila para procurar parentes – desta vez no necrotério, onde as vítimas estavam reunidas aguardando identificação.

Na verdade, não foi preciso muito tempo para que o Iraque entrasse em um caos incitado pelos conflitos entre as diferentes crenças. Certamente esses tumultos existiam antes de 2003, e parecia lógico que a queda do presidente Saddam Hussein conduziria a um reequilíbrio do poder em favor da maioria xiita1. Mas a compreensão bastante superficial das tensões existentes por parte de Washington contribuiu para atiçá-las. Os Estados Unidos, de fato, viram no partido Baas uma nova versão do partido nazista e o associaram, erroneamente, ao conjunto dos sunitas, classificados como “inimigo” – uma decisão que teve como consequência transformar rapidamente esta falsa hipótese em realidade.

Além disso, a presença das tropas de ocupação americanas impediu a implantação de um governo com uma real legitimidade popular. Ela agravou as relações entre as crenças quando grupos – essencialmente sunitas – em luta contra a presença estrangeira entraram em conflito com aqueles que acusavam de serem favoráveis a ela. Instalou-se um clima de anarquia generalizada, ao qual nem o poder iraquiano nem Washington puderam fazer frente. Após um período de pilhagem frenética, o vazio foi preenchido por homens armados, alguns usando turbantes de religiosos xiitas, outros lenços da resistência, mas que para muitos simplesmente pertenciam a bandos criminosos.

No mundo muçulmano, a mesquita sempre exerceu um papel de dimensões religiosas, sociais e políticas. Ecoando cinco vezes por dia pelos bairros, o chamado para a oração regula o ritmo do cotidiano e o ciclo da vida. Nesse local, os fiéis se reúnem para rezar, aprender, falar e se mobilizar; o sermão da sexta-feira, ou khoutba, é muitas vezes um apelo à ação; e, quer se trate de questões religiosas ou de assuntos internacionais, o imã que dirige a oração expõe os problemas referentes à comunidade. Nos Estados autoritários, é também do alto do minbar (o púlpito onde o religioso fala a seus fiéis) que se fazem ouvir as raras vozes que propõem uma alternativa ao discurso oficial. Foi assim que no Iraque, após a queda do Estado, a mesquita tornou-se a instituição mais importante do país, cumprindo a função de unir as comunidades: primeiro, garantindo os serviços sociais; em seguida, transformando-se ao mesmo tempo em depósito de armas, local de informação e ponto de reunião.

Diante da eclosão da guerrilha, os Estados Unidos agiram às cegas em um primeiro momento, prendendo ou matando dezenas de milhares de iraquianos. Levaram um tempo para compreender que estavam lidando com uma resistência organizada, e mais ainda, que havia começado uma guerra civil entre milícias sunitas e xiitas.

No final de 2004, após ter destruído a cidade de Faluja, dezenas de milhares de sunitas se instalaram no oeste de Bagdá, enquanto os xiitas se refugiaram em outros bairros, expulsando os sunitas que estavam ali. Diante da incapacidade tanto do governo como dos Estados Unidos para garantir a segurança ou os serviços sociais, foram as milícias que se encarregaram disso.

Foi preciso esperar 2006 para que Washington chegasse à conclusão que já deveria ter chegado em 2003: como a resistência se alimentava da presença americana, era preciso confiar ao governo iraquiano a responsabilidade da ordem pública. Tarde demais: as forças de segurança, com predomínio xiita, entraram na guerra civil religiosa.

Como a violência ameaçava caminhar para um conflito em nível regional, o poder americano mudou então sua política. Os partidários da contra-insurreição pediram o envio de novas forças ao país, principalmente para Bagdá. O presidente George W. Bush anunciou, em janeiro de 2007, a chegada ao Iraque de 20 mil soldados suplementares2. Essas novas tropas se espalharam pela capital e construíram imensos muros de concreto ao redor dos bairros, a fim de controlar seus habitantes. Efetuaram um recenseamento, trabalharam com milícias locais e deram assistência a uma população extenuada. Ao mesmo tempo, as forças de segurança atacaram os milicianos e os civis, e apoiaram a vitória dos xiitas na área. Muitos bairros se tornaram homogêneos, obrigando os sunitas a deixá-los. Arrancadas de suas casas, milhões de pessoas se deslocaram para as periferias, as zonas rurais ou para outros países do Oriente Médio – principalmente a Síria3e a Jordânia.

Provavelmente foi o anúncio da chegada dos novos militares que levou os grupos armados sunitas a modificar sua tática. Já em conflito com a Al-Qaeda, eles perceberam que os Estados Unidos não desejavam necessariamente ajudar os xiitas, e menos ainda os iraquianos. O enfraquecimento da Al-Qaeda, sob o ataque brutal do exército americano – em particular na província de Al-Anbar – permitiu a esses grupos sunitas munirem-se de segurança; receberam dinheiro americano sem, no entanto, se transformarem em mercenários. Uma vez que seus rivais da Al-Qaeda fossem eliminados e as tropas americanas tivessem deixado o país, eles esperavam vencer os xiitas – e com ainda mais facilidade se Washington obtivesse, do governo iraquiano, a integração de um quinto de seus efetivos nas forças governamentais.

Ao mesmo tempo, para as milícias xiitas, o tiro saiu pela culatra. Não apenas sua própria comunidade as via como simples grupos de desordeiros, como o primeiro-ministro Nouri Al-Maliki, ao constatar que elas ameaçavam sua autoridade, empenhou-se em destruí-las brutalmente – as tropas “oficiais” permaneceram, no entanto, dominadas pelos xiitas. Essas milícias decidiram então interromper suas atividades, contando retomá-las após a retirada dos soldados americanos.

Um dos elementos menos conhecidos da estratégia de contra-insurreição foi a ofensiva contra as bases principais, as áreas de apoio e os recursos vitais das milícias. Proteger as populações instalando-se no centro dos bairros e erguendo muros de concreto foram as medidas mais visíveis dessa política. Mas o exército americano também intensificou suas operações, tanto dentro como fora de Bagdá, contra as milícias xiitas: entre fevereiro e agosto de 2007, prendeu, em média, mil de seus membros por mês e matou um grande número deles. Pode-se dizer que, em 2008, os Estados Unidos haviam reconquistado o Iraque. A “limpeza étnica” já estava em grande parte concluída. E se a violência persistia, a guerra civil de fato havia terminado. Sinal desses novos tempos: os ricos saíam às ruas com seus carros luxuosos.

“Os refugiados eram os mais indicados para avaliar a situação local”, observa o responsável da Organização das Nações Unidas (ONU) no Iraque, Stefan de Mistura. “Seu retorno significa que a situação está se normalizando”. Entretanto, constata, “eles voltaram, mas não em número considerável. No Kosovo, por exemplo, dois milhões de pessoas voltaram e nós ficamos felizes – mas sobrecarregados.” Após as eleições regionais iraquianas de 2009, a situação ficou clara para ele: “Bagdá havia mudado de cor. Houve uma limpeza religiosa: a cidade era agora amplamente xiita...”

Não tinha volta. Um especialista do exército americano que havia colaborado estreitamente com o general David Petraeus, ex-chefe das tropas enviadas ao Iraque, garantia, em 2008, que a guerra civil acabaria quando os xiitas se conscientizassem de que haviam vencido e os sunitas que haviam perdido. Dito e feito.

De um lado, os iraquianos deslocados, geralmente sunitas, não voltaram para suas casas. De outro, quando as milícias sunitas não foram mais capazes de se unir e alguns de seus chefes acabaram assassinados pela Al-Qaeda, elas se confrontaram com a ofensiva governamental. Esta última chegou a provocar uma breve insurreição em Fadhil, em março de 2009, após a prisão de um chefe local. Mas não foi nenhum grande levante.

Em novembro de 2008, Washington confiou ao governo iraquiano o poder que ele detinha sobre cerca de cem mil combatentes pertencentes a grupos sunitas. Mas apenas 5% desses efetivos foram integrados nas forças armadas: seus principais chefes foram presos, assim como um bom número de combatentes; além disso, parte deles pediu para ser liberada e voltar para casa. Um processo “tranquilo”, que se seguiu para enfraquecer os últimos grupos capazes de rivalizar com o Estado.

Como guerrilheiros e como insurgentes, os grupos sunitas haviam mostrado sua eficácia ao operar clandestinamente e ao se misturar a uma população conquistada. Hoje, os ex-resistentes são conhecidos: seus nomes, endereços e dados biométricos encontram-se nas mãos dos governantes americanos e iraquianos. Muitos outros fugiram – às vezes para o exterior.

O atual governo iraquiano é corrupto, mas opressor e forte; confiando em sua vitória, mostra-se decidido a afirmar sua total autoridade. Os que acreditam em uma reconciliação inter-religiosa se enganaram: ela não acontecerá e não é necessária. Maliki está se tornando um novo Saddam, mesmo que seu poder pareça mais legítimo e mais popular que o anterior.

Os xiitas venceram em detrimento dos sunitas e dos laicos. Se estão divididos, dispõem de uma superioridade numérica e do peso crescente do Estado e de suas forças de segurança. Isso, claro, sem falar do apoio da superpotência que reina no mundo. Durante esse período, os Estados Unidos se engajaram mais na guerra no Afeganistão. A nova ordem estabelecida nesse país pode trazer de volta a tranquilidade, mas o balanço da guerra se revela muito pesado: centenas de milhares de mortos, milhões de pessoas deslocadas, um país devastado e toda a região desestabilizada.


*Nir Rosen é jornalista, pesquisador no Centro de Lei e Segurança da Universidade de Nova York, autor de In the Belly of the Green Bird: The Triumph of the Martyrs in Iraq, Fere Press, Nova York, 2006.


1 Nenhum número confiável referente à repartição entre as diversas comunidades – árabe, curda e principalmente turcomana; e nem sobre a proporção real de sunitas e xiitas, mas esses últimos evidentemente predominam – está disponível.

2 Ler Alain Gresh, “Os Estados Unidos vão ganhar a guerra no Iraque?”, Le Monde Diplomatique, março de 2008.

3 Ler Theodor Gustavsberg, “Silencioso exílio dos iraquianos na Síria”, Le Monde Diplomatique, setembro de 2008.

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