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sábado, 5 de junho de 2010

Hari: Quando mãos além-oceano são amarradas

Por Johann Hari

4/6/2010

Será que todos temos de nos calar contra agressões aos direitos humanos porque acontecem longe de nós, contra gente que não conhecemos, de cor diferente, cultura ou credo diferentes? Há movimento que diz que sim, crescendo no mundo; que qualquer torrente de solidariedade deveria ser cauterizada nas fronteiras nacionais.

O mundo é partilhado por diferentes culturas e uma não deveria olhar ou comentar criticamente a outra. Em vez disso, todos deveríamos “respeitar as diferenças”. Poderíamos criticar os nossos iguais, não o diferente, o estrangeiro, porque seria incomparavelmente diferente de nós. É o que se ouve hoje, de uma estranha associação de diferentes, tão diferentes entre si quanto o governo de Israel, ditadores e alguns multiculturalistas ocidentais – e todos trabalham hoje para tornar lei esse impedimento de criticar.

Consideremos por um momento como essas ideias se estão impondo em dois locais do mundo em que trabalhei como repórter: na Palestina/Israel e em Honduras.

Todo o mundo já sabe, sem dúvida possível, que a marinha de guerra de Israel cometeu um massacre, a tiros de metralhadora com mira a laser, em navio civil que navegava em águas internacionais e levava produtos de ajuda humanitária ao povo bloqueado por Israel em Gaza – dos quais autoridades israelenses disseram, jocosamente, que não estariam passando fome; Israel apenas os pusera “sob dieta rigorosa”. O barco que tentava chegar a Gaza levava filhos de sobreviventes do Holocausto, uma laureada com o Prêmio Nobel da Paz, além de comida, remédios, cimento para reconstruir casas destruídas na Operação Chumbo Derretido, de Israel contra Gaza, em 2008-9.

Alguns homens que viajavam nos barcos, ao perceberem que estavam sob mira de metralhadoras israelenses, pegaram o que encontraram, para defender-se e defender o barco, barras de metal, pedaços de pau. Um iemenita tirou da cintura sua faca jambarya que todos os iemenitas levam à cintura, de fato, desde crianças. E os comandos israelenses invadiram o barco, já atirando. O exército israelense divulgou fotos para “provar” que havia outras armas a bordo – fotos que todos já vimos pela internet incontáveis vezes, exatamente as mesmas, exibidas inúmeras vezes, sempre pra provar, as mesmas fotos, que “havia armas” num ou noutro lugar atacado por Israel. Em algumas das fotos exibidas ontem, se via até a datação eletrônica: 2003.

Mas quantos sabem que o governo israelense vem silenciosa e continuamente obstruindo a ação de organizações de direitos humanos dentro de Israel? Em todos os casos, são organizações de judeus que lutam para levar o país onde vivem para caminho menos doentio, mais seguro e mais saudável?

Israel abriga vários dos mais formidáveis movimentos pela paz que há no mundo – gente que aprendeu da história dos judeus e luta incansavelmente contra todos os abusos contra os direitos humanos que se cometem em seu país. Esses militantes pacifistas israelenses – como informa Daniel Sokatch, diretor do grupo pró-paz New Israel Fund – “enfrentam hoje violenta e persistente campanha para promover a discórdia e calar toda a comunidade dos direitos humanos dentro de Israel”.

Os ataques começaram em 2008. O governo de Israel e os militares recusaram-se a cooperar com as investigações da ONU sobre o ataque a Gaza no Natal e início do ano. Mas os grupos israelenses de defesa de direitos humanos insistiram em cooperar com os investigadores da ONU e cooperaram. Quando o Relatório Goldstone foi afinal publicado, assinado por juiz judeu, comprovou-se que a investigação acontecera, meticulosa a acurada, com farta documentação do que realmente acontecera; e também condenava o Hamás, pelos foguetes antiquados, que lançavam sem alvo, contra território israelense e várias vezes atingiram civis. Mas, em ver de dispor-se a examinar o que os governantes israelenses haviam feito, muitos cidadãos israelenses passaram a atacar o relatório e o autor; ouviu-se de várias fontes que o relatório seria obra de uma “5ª coluna”, jornalistas e colunistas de jornal que haviam “colaborado” com a ONU.

Os ataques – em que grupos de defesa dos direitos humanos foram pintados como demônios traidores infiltrados, ou corrompidos pelo Hamás – focaram-se num detalhe: aqueles grupos eram patrocinados ou recebiam ajuda financeira de governos europeus.

Esse ano, o governo israelense anunciou que esses patrocínios ou a ajuda financeira a esses grupos indicaria “inaceitável intromissão na autonomia de Israel”. Em audiência no Parlamento, um dos deputados que mais furiosamente criticara a ação dos grupos pacifistas perguntou: “Que direito têm eles de criticar o governo israelense?”

Aquele Parlamento israelense acaba de aprovar lei que impede todos os grupos não-governamentais de direitos humanos de receber um shekel, que seja, de governos estrangeiros, sob pena de perderem o status de isentos de impostos; e exige, sob penas legais, que se apresentem como agentes pagos por governos estrangeiros, cada vez que fizerem declarações públicas. Vários líderes desses movimentos foram presos e detidos incontáveis vezes. E há políticos em Israel hoje que querem limitar ainda mais a atuação dos grupos de direitos humanos em território israelense. Há aqui, claro, um ridículo, cômico paradoxo: Israel não existiria nem sobreviveria sem o dinheiro que chove lá, dos EUA. E ninguém cogita de proibir a entrada daquele dinheiro, sob o (mesmo) argumento de que implica inaceitável intromissão na soberania de Israel. (…)

No outro extremo do mundo, em Honduras, o mesmo argumento – gente de fora não pode criticar os “nacionais” – apareceu também. Há um ano, o presidente Manuel Zelaya foi sequestrado e expulso do país por claque de militares da extrema-direita, depois de cometer o imperdoável pecado de pensar em redistribuir, legalmente, uma pequena parte da riqueza da elite, para os mais pobres. Forjaram-se então eleições absolutamente ilegais, boicotadas por mais da metade dos eleitores. Hoje, os membros da organização pacifista não-armada Frente Nacional de Resistência Popular, estão sendo misteriosamente assassinados por todo o país, e também são assassinados os jornalistas que tentam denunciar os crimes.

São pessoas como Claudia Brizuela, jornalista, que mantinha um programa de tendência oposicionista, de esquerda, no rádio, assassinada com um tiro no rosto à frente dos dois filhos, de dois e oito anos. Porta-voz do governo hondurenho riu, ao ser perguntado sobre esse assassinato e disse que “a Resistência” mata seus membros, “para causar tumulto”. Críticos desses novos esquadrões da morte são descritos como “agentes de Hugo Chávez e Evo Morales”, governos estrangeiros que “não têm direito” de falar sobre Honduras.

Os mesmos argumentos pipocam nos lugares mais inesperados. Se escrevo em apoio aos direitos das mulheres muçulmanas em contextos de opressão, ou em apoio aos gays africanos, ou aos sindicalistas no Irã, logo vem o gás pimenta dos críticos, a clamar que eu não passaria de mais um “imperialista inglês”. Que nada sei da “nossa [deles] cultura”. Ele “não é muçulmano” nem “africano” nem “iraniano”. Há de tudo. Todos defendendo seus iguais contra os diferentes. São argumentos que, quase sempre, vêm de gente que se considera progressista, e que ficariam boquiabertos se descobrissem que estão usando argumentos idênticos aos da extrema-direita israelense e da ‘junta’ de generais hondurenhos.

Esse tipo de posição exagera ao absurdo as diferenças culturais.

Quando delegados de todo o mundo reuniram-se, imediatamente depois do Holocausto, para escrever a Declaração Universal dos Direitos do Homem, temiam que houvesse terrível dificuldade para definir os tais “direitos do homem”. Não houve dificuldade alguma.

Como logo se viu, as pessoas, em todos os cantos do mundo, aspiram a alguns direitos básicos – que em todas as culturas têm de ser defendidos contra um conjunto parecido de pessoas e interesses que se opõem à realização daqueles direitos, de fato, universais.

As diferenças culturais são muito menos importantes do que tantos ainda supõem. Nenhum ser humano quer ser torturado. Nenhum ser humano quer morrer de fome. Nenhum ser humano quer ser encarcerado sem julgamento e sem motivo. Mesmo em culturas em que esses atos são tornados ‘normais’ por alguns, as vítimas continuam a gritar e lutam. No momento em que a tortura começa, ou quando se fecha a porta da cela, todas as diferenças culturais desaparecem e só resta, da humanidade dos homens e mulheres, o desejo de recuperar a dignidade e a segurança roubadas. Isso é universal. Não há “cultura” na vítima de tortura, que a faça querer que a tortura prossiga.

Quem somos nós, então, para criticar governos de Israel ou Honduras? Somos pessoas que podemos – e devemos – nos opor aos crimes que aqueles governos cometem contra gente inocente. A isso se chama solidariedade.

É das poucas forças que ainda podem ajudar o povo de Gaza ou os dissidentes de Honduras, hoje. Em vez de nos fechar em nós mesmos, dentro de limites culturais e nacionais, temos, isso sim, de encher mais barcos e partir, levando comida, remédios e esperança a estranhos, completos estranhos, que sofrem.

Para ler o original, clique aqui: Johann Hari: When hands across the sea are tied

The Independent, UK

Tradução: Caia Fittipaldi

Um comentário:

SEAF disse...

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Abraço!
http://seaf-filosofia.blogspot.com/2010/06/premio-dardos.html