Por Artur Araújo
O espectro de uma pergunta ronda as redações e, se formulada, desnudará o que realmente separa as duas principais candidaturas à presidência. Basta indagar de José Serra: “o senhor propõe parar o Brasil?”
Explico-me, a partir de três exemplos muito recentes: um artigo de Luis Carlos Mendonça de Barros, os 50 anos de Brasília e as manchetes sobre a orientação do FMI para que o Brasil reduza sua taxa de crescimento.
Em artigo publicado na FSP de 16/04, Mendonça de Barros , o ex-ministro de FHC de volta a sua vida de financista, revela o que é o centro da “economia política” do PSDB. Tido e havido como desenvolvimentista, anti-Malan, da escola de Sérgio Motta e José Serra, Mendonça expõe uma tese: “a euforia pelo crescimento nos levará a bater no muro das restrições econômicas; esse filme tem final triste”. E para quem esperava as clássicas formulações – sobre os gargalos de infraestrutura, a baixa taxa de expansão da capacidade instalada, a “gastança” em custeio que impede o investimento público – ele abre seu coração e surpreende:
“A maior parte da oferta na economia brasileira é constituída por bens e serviços que não podem ser importados. O mais importante deles é o mercado de trabalho e nele é que está a componente mais ameaçadora que vejo para a frente. [...] Poderemos chegar ao fim deste ano com uma taxa de desemprego da ordem de 6%, mantido o crescimento atual da geração de postos de trabalho. Em março, o número de empregos formais aumentou em 266 mil, número muito forte para o mês.
[...] A pressão sobre os salários desse segmento dos trabalhadores já está ocorrendo e deve se acelerar. [...] São evidências de instabilidade grave. Dou um exemplo: a produção de caminhões da Mercedes-Benz brasileira em março foi o dobro da matriz na Alemanha. Mesmo com a crise na Alemanha esse número é um aleijão para mim.”
Trocando em miúdos: crescer rápido é um “problema”, porque pode gerar aumentos salariais para os trabalhadores e reduzir a taxa corrente de lucros. A ótica do imediatismo salta aos olhos; nem mesmo de relance, o articulista se refere a um ciclo virtuoso, em que o crescimento real da massa salarial implica ampliação da demanda efetiva, cria as condições para expansão da capacidade produtiva (e da formação de mão-de-obra) e para a expansão da própria acumulação de capital, pelo crescimento do volume produzido e realizado.
O seu negócio é o aqui e agora, é o lucro já; e o futuro, provavelmente, nem a Deus pertence. O espantalho que agita é o da inflação de demanda, que se recusa a atacar pela via do choque de oferta, do mercado interno de massas e da expansão das exportações de maior valor agregado. Sua panacéia é o aumento dos juros.
Já na cobertura dos jornais paulistas sobre os 50 anos de Brasília, um velho espectro ressurgiu, explicitamente referido, por exemplo, em editorial de “O Estado de São Paulo”: Brasília, entre outras mil de suas supostas mazelas, estaria na origem da espiral inflacionária do início dos anos 1960. Sem, até hoje, compreender o que de fato Brasília operou, como meta-síntese do programa de desenvolvimento nacional de Juscelino, as vozes do passado afloram, opondo-se às obras públicas, à ação do Estado na criação de infraestrutura, na indução econômica e na integração democrática de todos os brasileiros e de todo o território nacional.
A rádio CBN tem apresentado uma ótima série de reportagens sobre a história da criação de Brasília. Em um dos programas, o tema era o debate na imprensa daquela época. A matéria narrava a campanha cerrada que o engenheiro da UDN Gustavo Corção, guru de Carlos Lacerda, movia contra a construção da cidade. Um de seus temas preferidos era o Lago Paranoá que, do alto de sua sapiência, o Dr. Corção garantia que nunca ficaria cheio, dados o regime de chuvas e as características do solo do cerrado.
No dia em que o lago ficou completo, JK, pleno de mineirice e bom humor, telegrafou para a redação do jornal em que Corção escrevia. Usou uma só palavra: “Encheu”.
O que Juscelino enfrentava era uma herança maldita, um Brasil litorâneo que só via a si mesmo, que desprezava mais de dois terços de seu território. A Marcha para o Oeste significou, muito além de Brasília, a experiência pioneira de Ceres, cidade-modelo agrícola implantada em Goiás, em que se desenvolveram as técnicas de correção de solo que permitiram a expansão agrícola, que hoje faz do Brasil um ator mundial em alimentos e biomassa para geração de energia. Significou, também, a abertura da rodovia Belém-Brasília (aquela que Jânio e a UDN chamavam de estrada para onça), articulando os eixos Norte e Oeste do noso desenvolvimento.
E significou, mais do que tudo, para todos os brasileiros, trabalhadores ou empresários, uma mudança de postura e ângulo; Brasília permitiu que olhássemos mais e melhor para os nossos próprios potenciais e capacidades.
O FMI, que não é daqui, ecoa a lógica de Mendonça. Seu mais recente relatório, diz a FSP em manchete, “vê economia brasileira ‘no limite’”. Forçado pelos fatos a revisar – para cima – sua estimativa de crescimento da economia do Brasil, o Fundo “aponta demanda ‘em estágio avançado’ e espera medidas para desacelerar crescimento de 5,5% neste ano para 4,1% em 2011.” Tanta coincidência, até nas palavras, é sintoma de um alinhamento automático, de um modo de ver e conduzir o país.
O PSDB de hoje, por vezes até mais que os “demos”, olha a economia e o Brasil com esse viés. O que o orienta é o mundo internacional das finanças e a propensão a pensar em pedaços, em satisfazer-se com políticas que incluem só um terço dos brasileiros – os mais ricos – e só uma parte de nosso território – o sul-sudeste. É a turma dos 30%.
Expansão de consumo, crescimento de salários, ampliação da produção, desenvolvimento da infraestrutura, inclusão e capacitação das pessoas, todos esses são temas ausentes de suas formulações – ou vistos como “aleijões”. Aumento continuado e real do salário mínimo, instituição de pisos salariais nacionais, redução de jornada de trabalho, diminuição de desemprego, PAC, PROUNI, são pautas que os levam à beira do pânico. Tudo que seja para todos é risco, não oportunidade.
Ainda que se dê a José Serra o benefício da dúvida, do quanto ainda preserva de seu suposto desenvolvimentismo, não é despropositado indagar como ele “resistiria” à pressão combinada do tucanato econômico, do udenismo paralisante e elitista e da banca mundial, falando pela boca do FMI. A experiência FHC não traz muitas esperanças quanto a isso. Um jornalista arguto qualificaria a pergunta que abre este texto e questionaria o que o candidato fará com a turma dos 30%, aqueles que, há décadas, estiveram do seu lado e sempre quiseram que o Brasil pudesse menos.
Fonte: Página 13
Explico-me, a partir de três exemplos muito recentes: um artigo de Luis Carlos Mendonça de Barros, os 50 anos de Brasília e as manchetes sobre a orientação do FMI para que o Brasil reduza sua taxa de crescimento.
Em artigo publicado na FSP de 16/04, Mendonça de Barros , o ex-ministro de FHC de volta a sua vida de financista, revela o que é o centro da “economia política” do PSDB. Tido e havido como desenvolvimentista, anti-Malan, da escola de Sérgio Motta e José Serra, Mendonça expõe uma tese: “a euforia pelo crescimento nos levará a bater no muro das restrições econômicas; esse filme tem final triste”. E para quem esperava as clássicas formulações – sobre os gargalos de infraestrutura, a baixa taxa de expansão da capacidade instalada, a “gastança” em custeio que impede o investimento público – ele abre seu coração e surpreende:
“A maior parte da oferta na economia brasileira é constituída por bens e serviços que não podem ser importados. O mais importante deles é o mercado de trabalho e nele é que está a componente mais ameaçadora que vejo para a frente. [...] Poderemos chegar ao fim deste ano com uma taxa de desemprego da ordem de 6%, mantido o crescimento atual da geração de postos de trabalho. Em março, o número de empregos formais aumentou em 266 mil, número muito forte para o mês.
[...] A pressão sobre os salários desse segmento dos trabalhadores já está ocorrendo e deve se acelerar. [...] São evidências de instabilidade grave. Dou um exemplo: a produção de caminhões da Mercedes-Benz brasileira em março foi o dobro da matriz na Alemanha. Mesmo com a crise na Alemanha esse número é um aleijão para mim.”
Trocando em miúdos: crescer rápido é um “problema”, porque pode gerar aumentos salariais para os trabalhadores e reduzir a taxa corrente de lucros. A ótica do imediatismo salta aos olhos; nem mesmo de relance, o articulista se refere a um ciclo virtuoso, em que o crescimento real da massa salarial implica ampliação da demanda efetiva, cria as condições para expansão da capacidade produtiva (e da formação de mão-de-obra) e para a expansão da própria acumulação de capital, pelo crescimento do volume produzido e realizado.
O seu negócio é o aqui e agora, é o lucro já; e o futuro, provavelmente, nem a Deus pertence. O espantalho que agita é o da inflação de demanda, que se recusa a atacar pela via do choque de oferta, do mercado interno de massas e da expansão das exportações de maior valor agregado. Sua panacéia é o aumento dos juros.
Já na cobertura dos jornais paulistas sobre os 50 anos de Brasília, um velho espectro ressurgiu, explicitamente referido, por exemplo, em editorial de “O Estado de São Paulo”: Brasília, entre outras mil de suas supostas mazelas, estaria na origem da espiral inflacionária do início dos anos 1960. Sem, até hoje, compreender o que de fato Brasília operou, como meta-síntese do programa de desenvolvimento nacional de Juscelino, as vozes do passado afloram, opondo-se às obras públicas, à ação do Estado na criação de infraestrutura, na indução econômica e na integração democrática de todos os brasileiros e de todo o território nacional.
A rádio CBN tem apresentado uma ótima série de reportagens sobre a história da criação de Brasília. Em um dos programas, o tema era o debate na imprensa daquela época. A matéria narrava a campanha cerrada que o engenheiro da UDN Gustavo Corção, guru de Carlos Lacerda, movia contra a construção da cidade. Um de seus temas preferidos era o Lago Paranoá que, do alto de sua sapiência, o Dr. Corção garantia que nunca ficaria cheio, dados o regime de chuvas e as características do solo do cerrado.
No dia em que o lago ficou completo, JK, pleno de mineirice e bom humor, telegrafou para a redação do jornal em que Corção escrevia. Usou uma só palavra: “Encheu”.
O que Juscelino enfrentava era uma herança maldita, um Brasil litorâneo que só via a si mesmo, que desprezava mais de dois terços de seu território. A Marcha para o Oeste significou, muito além de Brasília, a experiência pioneira de Ceres, cidade-modelo agrícola implantada em Goiás, em que se desenvolveram as técnicas de correção de solo que permitiram a expansão agrícola, que hoje faz do Brasil um ator mundial em alimentos e biomassa para geração de energia. Significou, também, a abertura da rodovia Belém-Brasília (aquela que Jânio e a UDN chamavam de estrada para onça), articulando os eixos Norte e Oeste do noso desenvolvimento.
E significou, mais do que tudo, para todos os brasileiros, trabalhadores ou empresários, uma mudança de postura e ângulo; Brasília permitiu que olhássemos mais e melhor para os nossos próprios potenciais e capacidades.
O FMI, que não é daqui, ecoa a lógica de Mendonça. Seu mais recente relatório, diz a FSP em manchete, “vê economia brasileira ‘no limite’”. Forçado pelos fatos a revisar – para cima – sua estimativa de crescimento da economia do Brasil, o Fundo “aponta demanda ‘em estágio avançado’ e espera medidas para desacelerar crescimento de 5,5% neste ano para 4,1% em 2011.” Tanta coincidência, até nas palavras, é sintoma de um alinhamento automático, de um modo de ver e conduzir o país.
O PSDB de hoje, por vezes até mais que os “demos”, olha a economia e o Brasil com esse viés. O que o orienta é o mundo internacional das finanças e a propensão a pensar em pedaços, em satisfazer-se com políticas que incluem só um terço dos brasileiros – os mais ricos – e só uma parte de nosso território – o sul-sudeste. É a turma dos 30%.
Expansão de consumo, crescimento de salários, ampliação da produção, desenvolvimento da infraestrutura, inclusão e capacitação das pessoas, todos esses são temas ausentes de suas formulações – ou vistos como “aleijões”. Aumento continuado e real do salário mínimo, instituição de pisos salariais nacionais, redução de jornada de trabalho, diminuição de desemprego, PAC, PROUNI, são pautas que os levam à beira do pânico. Tudo que seja para todos é risco, não oportunidade.
Ainda que se dê a José Serra o benefício da dúvida, do quanto ainda preserva de seu suposto desenvolvimentismo, não é despropositado indagar como ele “resistiria” à pressão combinada do tucanato econômico, do udenismo paralisante e elitista e da banca mundial, falando pela boca do FMI. A experiência FHC não traz muitas esperanças quanto a isso. Um jornalista arguto qualificaria a pergunta que abre este texto e questionaria o que o candidato fará com a turma dos 30%, aqueles que, há décadas, estiveram do seu lado e sempre quiseram que o Brasil pudesse menos.
Fonte: Página 13
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